quarta-feira, 25 de março de 2020

Em tempos de quarentena - ZÉ CARLOS ALBINO


fomes
tenho fome de ser gente
tenho fome de liberdades
tenho fome de companhias, boas ou más
tenho fome de carinhos de quem me ama
tenho fome de passear na minha terra, tal como ela sempre foi sendo
tenho fome de viajar, nem que curtas
tenho fome da oralidade em que somos o que somos
tenho fome de mim tal como venho sendo
tenho fome de inspirações variadas
tenho fome de encontros de surpresa
tenho fome de conversas sobre tudo e nada
tenho fome de tudo o que é viver

e da fome ao medo
é um pulo de pés juntos,
sendo o medo um quarto escuro e sem portas,
tenho medo de não voltar a ser eu em pleno
tenho medo que nos mantenhamos fechados
tenho medo que nada do que devia mudar no mundo, fique na mesma
tenho medo que voltemos a tempos antigos de misérias várias
tenho medo que a liberdades fiquem enfraquecidas
tenho medo de não resistir a tantas fomes e medos

mas vozes amigas lembram-me
que sempre fui um combatente
que os encaminhou para caminhos de emancipação
que já resisti a tantos desaires e a mortes batendo-me à porta,
ancorado nestas vidas passadas
vou tentar fazer das tripas coração
dando alimentos às fomes´
fazendo dos medos avisos para os conseguirmos combater,
transformando o sobreviver dos tempos actuais
em vidas, mesmo que curtas,
de caminhos vivos e esperançosos,
voltando a ser eu mesmo !

zé carlos albino,
Messejanana, 19-20-21-22 de Março de 2020.

Todos os textos publicados na rubrica EM TEMPOS DE QUARENTENA são da responsabilidade exclusiva dos autores e os direitos respectivos apenas a eles pertencem.

Em tempos de quarentena - FÁTIMA HORTA


ESPERANÇA

Sempre a acompanhar: Tenho comigo pensamentos e incertezas, sonhos que quero ver acabados.
Tenho comigo, nesta clausura forçada, o sabor amargo. Desejo ver o fim desta guerra desenfreada.

Tenho comigo lágrimas escondidas de noites mal dormidas. A luta é dura, todos somos soldados desta guerra fria.
O inimigo está escondido, avança sem tréguas, não escolhendo sexo, idade, classes sociais ou ideologia. Mas vamos ter força e coragem para que não nos tire a alegria.

O mundo está em mudança. 
A Primavera chegou triste, cinzenta, o medo perto de nós isola-nos.
O sol por vezes está escondido, mas que nunca desapareça em nós a esperança.

Assim, quero ter forças para voar como os passarinhos, ver o mundo sorrir,a primavera florir, as crianças a sorrir,os mais velhos com força para lutarem pela vida e a música e poesia como companhia.

Quero escutar o trinar da guitarra e viola com alegria e viver o fado da minha vida no meu dia a dia.

Nunca deixando de fazer minha poesia com magia, porque ela em mim nunca morrerá.
E a esperança pela vida me acompanhará.

Obrigada In-Finita por estarmos todos juntos.
Fátima Horta 23/03/2020

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terça-feira, 24 de março de 2020

Em tempos de quarentena - CLÁUDIA CAROLA


Mais cedo

Respira, sente a tua força interior
Não te deixes jamais levar pelo medo
Que não se instale na vida o terror
Só assim tudo terminará mais cedo

Mais cedo se mantiveres a esperança 
Mais cedo sim se mantiveres a fé 
Ter em nós e nos outros confiança 
Em breve estaremos juntos num café 

Sê realista, mas liberta o alarmismo
Sê criativo, deixando o conformismo 
Vamos todos regressar à nossa infância 

Regressar a quem somos, à essência 
Recuperar a serenidade e a paciência 
Deixar o ter, para voltar a ser substância 

Cláudia Carola 

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quinta-feira, 19 de março de 2020

ADRIANA FALA DE... OITO DIAS EM CASA


Oito dias em casa

Após os primeiros dias de excesso de trabalho devido a cancelamentos e adiamentos de eventos, incertezas e insegurança, entro na segunda semana um pouco mais tranquila. Com o trabalho reduzido, e com os prazos mais alargados, sobrou, em mais de dois anos, tempo para organizar roupas e armários, limpar com mais cuidado e atenção a casa, falar com a família e amigos do outro lado do oceano e aqueles mais próximos, ou além das fronteiras, que recebiam breves mensagens, devido à correria diária.

Sobrou mais tempo para ler os livros que se acumulavam na cabeceira da cama, ou aquela série da Netflix parada na metade. As pesquisas de museus, músicas e literatura, onde os links eram guardados para ver mais tarde.

Sobrou mais tempo para pensar na razão de tudo isso.

Sobrou mais tempo para acompanhar a evolução da pandemia causada pelo coronavírus e pensar, pensar e repensar.

Saí à rua quase deserta hoje pela manhã, para ir ao supermercado, e lamentei as cenas que vi e que não vale a pena descrever, pois são comentadas no noticiário da noite.

Saí à rua para sentir o sol, o vento, caminhar um pouco e deparei-me com o egoísmo, individualismo, falta de educação e consciência coletiva e da responsabilidade social que o momento exige. Ali, naquele espaço de quase uma hora na porta de uma grande rede de supermercados, ouvi de tudo. Reclamações, piadas, desinformação. Percebi a falta de preparo das pessoas para seguirem regras, normas e conviverem com situações que as tirem da sua zona de conforto. E cada carrinho que saía abarrotado de comida e demais itens mostraram mesmo a falta de solidariedade com o próximo. Pois voltei sem o que precisava, por causa das prateleiras vazias. Senti-me no enredo de um filme, daqueles tipo salve-se quem puder, aconteceu uma catástrofe.

O sol ficou mais pálido.

Acredito que o mundo entrou em colapso, e essa é uma das formas de regeneração. Menos poluição de agentes químicos, menos poluição de gás carbônico, menos poluição sonora.

Redução do lixo nas ruas e mais espaço para a natureza manifestar-se.

Acredito que não precisamos estar todos os dias nos centros comerciais, supermercados, fast food ou restaurantes consumindo compulsivamente.

Acredito em um tempo que exige mais convívio familiar, que ficou em segundo plano, pois pais, filhos e netos não tinham mais horas nos seus dias para estarem mais próximos, mais perto.

Acredito que somos o coletivo, e que sentimos igual aos nossos irmãos de todos os cantos do planeta, independente da cultura, raça, língua ou religião.

Acredito na exigência que a vida nos faz agora, nesse momento, para olharmos com mais cuidado e respeito para com a nossa saúde, atitudes e hábitos. E tornarmos mais solidários, preocupados, não só com o nosso bem estar, mas com quem está ao nosso lado.

Acredito que é necessário esse refúgio obrigatório para darmos mais valor à nossa liberdade de ir e vir, com mais calma, e com um olhar mais atento ao que nos cerca.

Acredito que a dor, o sentido de impermanência e ameaça, desperta em nós o que temos de mais humano: a solidariedade e o amor pelo próximo.

Acredito que isso vai passar. E que tudo vai mudar, para melhor. As nossas rotinas, as nossas atitudes, e como vamos administrar o nosso tempo.

Vamos perder sim, vamos sofrer, vamos ver o sofrimento alheio. Teremos privações para percebermos que nem tudo é essencial, e que podemos sobreviver com muito, muito pouco.

E olhando para aquele sol, quase escondido por uma nuvem, lembrei que no ano passado, estive uma semana com uma mochila nas costas fazendo o Caminho de Santiago, e que este ano estarei em casa, sem poder sair.

Fechei os olhos e resgatei aquela sensação de liberdade e lembrei a grande lição daqueles dias de caminhada, com bolhas nos pés e dor em todo o corpo: Seguir em frente.

Eu só tinha uma mochila nas costas e vivi os melhores dias da minha vida, estava leve, feliz e confiante. Determinada em superar todas as dificuldades, com coragem para enfrentar o desconhecido e muita fé para o que Deus havia me reservado no passo seguinte.

Levava apenas uma mochila, com pouca roupa e comida, partilhava conversas com desconhecidos e o sentimento solidário de estarmos na mesma situação. Caí e ajudaram-me a me levantar: um senhor peregrino italiano.

Seguia sozinha pelo desconhecido, no meio da estrada, no meio da floresta, dos campos, das aldeias, mas não me sentia solitária ou abandonada.

E sempre reencontrava os amigos e as pessoas nas paragens para descansar e confraternizar.

Levava em meu coração as pessoas que eu amava e as minhas boas lembranças. E a minha mente estava entregue apenas a observar e usufruir tudo o que eu podia reter daquele momento de tão grande aprendizado.

O sol me acompanhava e quando escondia-se eu o percebia por trás das nuvens.

Eu só tinha uma certeza, como tenho agora: tudo passa.

E tudo isso vai passar. No tempo certo, depois que todos nós aprendermos a nos olhar, olhar para a vida que nos cerca, olhar para o outro.

O planeta pede socorro, a vida pede socorro e no ar está o seu grito, o seu chamamento, o seu pedido.

É nossa responsabilidade pessoal e social cuidar de tudo isso e lembrarmos a cada instante que fazemos parte desse todo, que se chama humanidade.

O sol vai voltar a brilhar.

Adriana Mayrinck

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

EPISÓDIO DA MENTE... (excerto) - SÓNIA CORREIA

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Ele era nas palavras a correspondência aos tantos devaneios que ela procurara. Ocultava algo que ela não soubera definir e, no entanto, o espanto do entendimento quase que já vestia cumplicidade sem tempo.

Sabia lê-la e, num único encontro de relance, tinham ficado de pensar entrelaçado. A vida pegara lhe na mão, talvez trémula na espera ou talvez intencionada, desbravou o silêncio e ela respondera- lhe sem o identificar. Nasceu uma troca de letras intensa, quiseram-se nas frases, tocaram-se em textos impensados.

Namoraram, casaram e divorciaram-se em três dias, o sentido de humor gravara sorrisos constantes e gargalhadas afrodisíacas. Não se sabiam e aconteciam sem freio, falaram em viver loucuras, em paz para mover o futuro, em viagens para partilhar o mar e o corpo, foram até um encaixe no meio de uma certa inconsciência.

Furacão foi como a definiu num jantar inventado que nunca chegaram a partilhar, mas no mundo do impossível sonhavam um presente desenhado a mil cores enquanto a velocidade do desejo disparava, tudo eram metáforas vívidas de intensidade.

EM - ALMA-TE - SÓNIA CORREIA - IN-FINITA

domingo, 23 de fevereiro de 2020

REFLEXO... (excerto) - SÓNIA CORREIA

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O lume que trago na alma inexplicado de clareza veste de metáforas todos os sentires poupados nas letras.

Não podem vir a nu as constantes insanidades. Desentendidas seriam pelos olhos que as lessem, perdidas ficariam pelas críticas esbaforidas das bocas que mastigam sem saborear, que bebem sem sorver, faces que expressam sem perceber.

Só tu entendes as redes tecidas entre a alma que jorra paixões, a mente que desenha amores, o corpo que veste um sem número de tamanhos abaixo do desejo por sucumbir.

Por dentro, as tristezas do nada, as alegrias fictícias do sonho, a vontade aprisionada... Por fora, um corpo por saciar, uma vastidão de sorrisos só nossos, as lágrimas pendentes na escuridão e décadas de palavras que só a loucura igual sabe decifrar.

Escrever é o nosso esconderijo como sabes, e ainda assim, um porto de abrigo, um farol delinquente, uma lua sedosa de brilho, estrelas, milhares de estrelas incandescentes sob o mar que chamamos de nosso porque das ondas fizemos morada.

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terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

TUDO OU NADA... (excertos) - SÓNIA CORREIA

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Agarrado ao corpo, dentro dele, irritantemente por vezes, existe um coração, esse órgão que dizem sente, não sei se é o coração que sente ou se todas as emoções pairam dentro desse corpo, que serve de templo ao ser que me define no interior e se reflete no exterior.

Mas a verdade é que esse corpo não existe sem o órgão acusado de todas as paixões ou amores, de todas as felicidades e tristezas, de todos os quereres que vibram. Nesse corpo também carrego a tal massa cinzenta que é responsável pelo racional, como se alguma vez funciona-se quando o resto do corpo sente, sente, sente.

No tempo vem a gestão mais madura dessa luta entre as duas partes, vem a noção mais dissecada da guerra perdida e vencida tantas vezes, por não ouvirmos o que aprendemos. Em pura teimosia encontrarmos argumentos para contrariar a realidade em prol do batimento acelerado desse coração já culpado das tantas batalhas escritas.

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quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

SOMBRAS... (excerto) - SÓNIA CORREIA

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Não, não são as “50 sombras de grey”, mas sim as sombras que, de quando em vez, me assolam a alma. Aquelas que saem das catacumbas porque pertencem ao cansaço, que desvelam os momentos menos alegres e mais pensativos, que me prendem e amarram num qualquer sofá para reflectir sobre todas as coisas.

Não é perfeita a felicidade, nem mesmo a que de ninguém depende. Por vezes, visitam-me as sombras que espremem o sorriso e me deixam apática, inerte e chovendo ou não nas minhas janelas. A força quebra, o cinza quase preto, na clareira, abafa a paisagem de lírios e malmequeres e não fica senão um manto de borralhos, cinzas do que acabou e foi jogado ao vento.

O universo cala-se, o mundo não gira, a esperança barafusta em eco e dentro de mim, nesses rasgos de ondas paradas, cai o outono. Folhas secas desbulham das árvores e crescem no chão amontoadas. Os ramos vestidos de nada realçam um vazio cuspido pelas sombras em jeito de trevas. Há que procurar abrigo.

Penso demais talvez e com os anos vai definhando o leque das possibilidades. Já me habituei ao silêncio que me conforta na paz, mas será que alguém se concebe só para sempre?

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sábado, 8 de fevereiro de 2020

ESTRANHO QUERER... (excerto) - SÓNIA CORREIA

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E tenho destas horas em que me sinto feliz apenas deitada no meu sofá. Muitos quilómetros de guerra fria deixados para trás, uma luta desventrada pela sobrevivência, um educar constante de mim mesma, mas a paz – ai, este som surdo de paz! - por entre o cansaço físico e mental, sabe a oásis, indescritível a nuance que me embala a alma!

Vou sorrindo, mesmo sozinha, tantas vezes, despojada de preocupações mundanas. Entras-me pensamento adentro, apenas porque me sabe bem esta coisa que não é coisa nenhuma, mas que vamos partilhando neste acaso peculiar.

Gosto de te rever nas imagens, olhar-te para além do que o mundo aprecia e mesmo quando me chamas parva, parece-me um acto meigo, sem intenção oculta e provavelmente acompanhado de uma qualquer gargalhada espontânea que faz eco em mim.

Sei que não gostas de textos, não és das letras, mais dos números, mas também sabes que não sei não escrever, sentir e dizer. Contudo, escrevo-te mais do que aquilo que me lês. Parece-me espontâneo falar-te no papel mesmo que o guarde na minha gaveta de desabafos.

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segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

INDOMÁVEL... (excerto) - SÓNIA CORREIA

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Nada é tão indomável como nós mesmos, é-o por dentro que queremos domar num auge em espiral de sentimento ou sensação que não acontece. Tudo está ao nosso alcance à infeliz excepção do que com foices tentamos arrancar do coração, aquela parte do sermos humanos que não se explica e nos arrasta sem piedade para a estrada do desapego.

Mas não é indomável a aceitação, e se nos deixarmos levar nesse vento, o coração acalma, as realidades aparecem nítidas como a água onde muitas vezes nos escondemos para não se notarem as lágrimas.

Selvagem é o sentir que não nos deixa escolha, vem de rompante, acorda a esperança e antes que o carrocel acabe a viagem, já lá estamos na intransigente e teimosa vontade fluida da alma, quase parece que chegamos, que pertencemos, que a viagem não será mais na solidão acomodada.

E a vida continua, são tudo momentos que devemos acarinhar, lembrar com sorrisos, guardar como pedaços da nossa história, espremer o positivo, preservar o possível, domar o que é a felicidade.

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terça-feira, 28 de janeiro de 2020

"A" VIAGEM... (excerto) - SÓNIA CORREIA

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Há muito que comprava bilhetes para se perder pelo mundo. Fez as malas vezes sem conta, decidida em subir os degraus da carruagem e partir sem destino. A paisagem ao seu redor já não era senão uma fita enrolada na única bobina de um filme que o seu cinema passava no grande ecrã, sem audiência, sem o cheiro das pipocas, sem entusiasmo. O final não era mais do que um adeus e um convite.

O único trilho que caminhava era o de retorno a casa onde se sente protegida nessa solidão que a acompanha. Na cómoda da entrada guardava lado a lado todos os bilhetes. Os do comboio amontoavam mais alto do que os do cinema. Era evidente o impulso da mudança. Esta noite abriu a gaveta e ficou horas a mover o olhar entre as duas montanhas de intenções.

Num impulso de levar a cabo a mudança foi buscar o baú de madeira rústica, onde gravadas a ponta de faca estavam cravadas todas as datas em que decidira partir. Nele o seu maior tesouro, milhares absurdos de letras que juntou ao longo dos anos de todos os sentires, histórias cicatrizadas em papel no movimento de uma caneta invulgar e já desgastada.

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segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS (excerto XXIV) - MARIA MAGUEIJO

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Passaram alguns meses e o alvoroço para o casamento andava espalhado por toda a vila. A menina Isabella ia casar e tudo tinha de estar impecável. Foram semanas de preparativos. Até arroz doce se distribuiu por todas as casas da vila (voltaram a uma tradição antiga do tempo do casamento da sua avó).
O Vestido tinha sido uma verdadeira dor de cabeça. Isabella queria algo simples com detalhes de cor lilás, e tudo o que encontrara era bonito, mas não a encantava. Camila meteu mãos à obra e fez ela própria o vestido da sua menina. Maria ajudara nos detalhes, Francisca nos acessórios, a tia Caetana era a moderadora, andava bem nestes momentos de quase folia e Isabella parecia uma boneca nas mãos das meninas pequenas.

EM - HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS - MARIA MAGUEIJO - IN-FINITA

domingo, 26 de janeiro de 2020

DA FONTE LAMEIRA AO ALTO DO CAVALINHO - ERNESTO FERREIRA

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Na Fonte Lameira, Miguel bebeu água com um sabor como nunca tinha experimentado. Estava absorvido nesse pensamento e nem deu pela presença de um pastor que o olhava junto a uma capela. Miguel resolveu dirigir-se ao pastor e perguntou-lhe: Sabes dizer-me a quem pertence esta Capela. Responde o pastor: Pertence ao “manhola” da santosa de Asturães. Miguel exclamou: Que idioma é esse? E o pastor respondeu: É o Verbo... ou Verbo da Gata Lapardana.
Então o pastor esclareceu: O Verbo é uma forma de dizer que os Asturianos usavam quando queriam comunicar sem que os estranhos percebessem. Olhe: manhola da santosa é o padre e manhola da esgrabilhação é o professor. Bacalhau diz-se “portela” e vinho é “zola”. Copo ou malga é “cachefre” e então um “cachefre de zola” é um copo de vinho. O verbo que mais se usava era o verbo “besar”; andar, correr é “lastideiro” e casa é “faunho”. Meu, minha é “meu enes”. Então “besar da lastideiro pró faunho de meu enes” significa eu andar para minha casa.
Hoje já ninguém sabe este Verbo e só a circunstância de um antepassado do Miguel ter feito uma espécie de dicionário permite que não se tenha perdido totalmente. O que é uma perda não pela erudição em si mesma, mas pelo que representou para os utilizadores e para a história.
E o pastor mais informou: o penedo que se encontrava a norte da fonte se chamava “cabeça de padre” em homenagem ao padre que erigiu a capela. Então, seguindo a linha de águas vertentes será a linha divisória, comandada pelo alto do espigueiro, o ponto mais alto da serra.
O caminho que Miguel foi sinalizando contemplava as linhas de “águas vertentes”. Nada de especial se apresenta excepto duas situações: a porta do lobo, local onde deveriam passar os lobos quando acossados em montarias, e o Alto do Cavalinho com esplendor igual ao Alto do Castelo. São por assim dizer, duas elevações irmãs.
Foi aqui que Miguel fixou outro ponto divisório.

EM - MIGUEL, NO EXTREMO DA ESTREMA - ERNESTO FERREIRA - IN-FINITA

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

A MINHA TELA... (excerto) - SÓNIA CORREIA

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São tantas as mulheres que me habitam numa só alma, tantas as versões que o espírito acorda e adormece, tantos os sentires quantas as paisagens que pincelo num quadro único, remarcável do tamanho absurdo de uma vida com anos corridos de história.

Os pincéis já desgastados prevalecem nas mãos cansadas com relevos e traços concebidos pela luta, das pontes que teimo em atravessar, entre sorrisos de campos coloridos de esperança e lágrimas de temporais. Sou alma por inteiro, sou todos os segundos desenhados a preto e branco ou em arco íris, nesta tela infindável de emoções.

Viajo nessa unicidade de alma onde, residentes todas elas, clareio de brilho ao redor de todas as fantasias que me nascem exuberantes, extensões de areal junto ao mar enquanto anoiteço acompanhada da lua e conto todas as estrelas, como luzes que se me acendem na força tantas vezes puxada do fundo de um poço no descampado rural que me assola.

Sou a alma dessa tela de que me orgulho, elas, as tantas que acamparam para ser e ficar na minha morada não escoam os rios de sentimento, nem tão pouco cabem nas barragens erguidas a cimento que transbordam e desmoronam se preciso for.

EM - ALMA-TE - SÓNIA CORREIA - IN-FINITA

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS (excerto XXIII) - MARIA MAGUEIJO

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Entraram em casa ainda ao som das risadas de uma tarde feliz. Camila ao ouvir as suas barulhentas meninas foi até ao hall onde, entretanto, Isabella descalçava as botas completamente encharcadas, assim como as meias.
– Mas que preparos são estes, menina Isabella? Nem pergunto o que andou a fazer, uma poça de água e lá vai disto, não é sua marota? Tire já isso tudo e vá tirar também as calças para as secar.
Nunca mais cresce, Jesus, Maria, José (expressão espanhola que Camila utilizava quando estava um pouco zangada).
As primas riam e faziam troça de Camila com um ataque de cócegas a que Camila não resistia, eram as suas meninas e sentia-as felizes. Que alegria.
– Parem lá com isso, tenho um envelope para a Maria. Estejam quietas! - saiu dali o mais rápido que pôde, pois corria o sério risco de chegar à cozinha e ter o jantar a transbordar do tacho.

EM - HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS - MARIA MAGUEIJO - IN-FINITA

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

DA CANCELA À FONTE LAMEIRA (excerto) - ERNESTO FERREIRA

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Aí está o Monte do Castelo cuja conicidade nos leva a ilusões de óptica, parecendo que tudo gira à sua volta. O Monte do Castelo seria assim como o centro do espaço e bem merecia, pois à medida que o visitamos mais nos surpreende. São as fontes de água pura, são os penedos de grande dimensão e não menor variedade e forma, são as pedras com laivos de opalas e quartzo puro, são os arbustos de espécies várias, são ainda os vestígios de civilizações antigas (árabes, romanas e até celtas) e acima de tudo a panorâmica que se avista da Ribeira Lima. “e este sitio se olham vestígios de trincheiras, e estradas encobertas tradição que fora tudo fabricado pelos mouros, tem o castelo chamado da Formiga, que o cerca em ponta aguda sitio deleitável à vista, e é tradição que neste monte residiram muito os mouros, onde se tem achado vestígios da sua habitação, por aparecerem tijolos, e ferros velhos” (in descrições paroquiais de 1758).
Chegado ao Cume a vista era ainda mais deslumbrante e Miguel imaginou que muitas teriam sido as disputas por este paraíso e imaginou que teria sido o bom senso que levou as duas freguesias a considerar que o cume era a marca divisória.
Miguel pensou então: pois se considerar este ponto como mieiro, certamente que a linha continuará até ao alto da montanha.
E mais entusiasmado ficou quando avistou uma capela (a Capela de Santa Justa) e não distante os restos de outra capela (Capela de Santa Rufina) que eram, cada uma, propriedade de cada freguesia.
Miguel logo se apercebeu que teria de subir ao Alto da Serra D’Agra para continuar o seu desiderato. Mas a subida parecia dura e como se aproximava a penumbra, decidiu-se por fazê-lo no dia seguinte.

EM - MIGUEL, NO EXTREMO DA ESTREMA - ERNESTO FERREIRA - IN-FINITA

sábado, 18 de janeiro de 2020

SOU... (excerto) - SÓNIA CORREIA

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Menina, princesa das que moram no momento de castelos, deitada na nuvem de todos os séculos em que as flores exuberantes que abraça lhe preenchem os sentidos, doce nos gestos que não estragam as pétalas que admira, cuida como cuidaria o amor que não existe, mas é esperança.

Não quer amarrotar as nuances do brilho azul que lhe desperta a fome desse tão grande prazer ou conforto. Deitada muitas vezes viaja pelo medieval uso de trajes pomposos que renega depois na nudez onde sente o veludo das rosas supremas e o cetim que as envolve na pele. É feita de sonhos e jamais saberia viver sem eles.

Navega em alto mar, ali deitada, como se lhe tivessem oferecido as arcas de moedas de ouro, perdidas em naufrágios que lhe afogaram o amar. Foi prisioneira de paixões doentes, viveu em sumptuosos palácios, cumpriu penas possessivas em pedaços de vida arrastada pela noção do dever, que desperdício, meu Deus!

Um dia, fugiu. Despiu-se das grades e deixou para trás tudo de exuberante que apenas a sufocava. Foi um basta numa hora em que a trovoada a deixou cair da nuvem. Quanto mais se afastava mais sofrer a vida lhe conferia e ainda assim foi quando começou a ser realmente feliz. Hoje tem liberdade e, mesmo que o azul das rosas seja presente seu, abraça como vitória.

EM - ALMA-TE - SÓNIA CORREIA - IN-FINITA

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS (excerto XXII) - MARIA MAGUEIJO

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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– Bom dia Camila. Que manhã bonita, quase tão cheirosa quanto o teu café.
Camila virou-se para Isabella e disse-lhe:
– Sabe que a vi crescer, menina, e que estarei sempre consigo. Preocupei-me muito quando cá não estava, mas sempre acreditei que voltaria mais forte. Mas encontro-a frágil e sempre a esconder o seu olhar, triste e melancólico. Não o faça. Todos a amamos e queremos que ultrapasse as dores e siga a vida bonita que merece.
– Sim Camila, eu sei e agradeço as tuas palavras. Apenas eu conseguirei ultrapassar com a minha força, tenho de ser mais positiva e, claro, com o vosso amor, tudo será mais fácil. Mas não tem sido Camila. Foram meses de muita dor, culpa, e ainda não consegui perdoar-me. Foi uma missão muito forte que Deus me colocou nas mãos e eu assumi-a sem pensar. O medo foi tanto, que algo de mau acontecesse, que fui em frente sem olhar em volta. Teria tido outras saídas, mas assim foi e agora já não se apaga como se apaga um risco num caderno. Serão páginas em branco que terei de (re)escrever com mais convicção e sem recear o meu valor e ser mais guerreira. Também sei que me tornei mais fria, mais cautelosa, mas mais frágil, ao contrário do que deveria ser.
– Ainda tem medo que algo mau nos possa acontecer? Foi por proteção que aceitou a missão.

EM - HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS - MARIA MAGUEIJO - IN-FINITA

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

DO RIO À CANCELA (excerto) - ERNESTO FERREIRA

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Miguel levantou-se cedo para continuar a tarefa. Resolveu seguir o caminho de Estivada, onde só não ficou extasiado com a beleza dos campos porque já tinha visto igual na Veiga da Lousa e Veiga do Sobreiro. Aqui a diferença, nesta Veiga de Estivada, é a proximidade do início da montanha, o que torna o quadro mais diverso, corre o dito rio de norte para sul da ponte para baixo, corta uma grande planície de que é agricultada de lavradores, que aprimora uma das margens do Rio Lima, a que frei Bernardo de Brito chama os Campos Elísio (in descrições paroquiais de 1758).
Em Estivada mora um herói: Chamam-lhe “Cavalaria” dado ter sido um valente soldado dessa arma, onde passou a sua mocidade.
Regressado à aldeia o seu comportamento nem sempre tem sido pacífico e daí a tornar-se um “varredor de feira” foi um instante.
E ele nada fazia para que não o considerassem assim, antes pelo contrário. Mas como diz o provérbio, “cântara tantas vezes vai à fonte que um dia quebra a asa”.
Pois um dia em que uma das querelas azedava lá estava o Cavalaria, mas desta vez também, e do outro lado, um jovem chamado Manuel Sousa, jovem de boa apresentação, educado, generoso, galã, bem ginasticado e senhor da força que a natureza lhe deu e a profissão ampliou.
Ora bem, o Sousa vai-se ao Cavalaria, muito rapidamente o derruba e, sem humilhação, o aconselha a mudar de atitude.
E aconteceu o inevitável. Daí em diante, quando Cavalaria fanfarrona da sua valentia, sempre alguém o questiona: e o Manuel Sousa? E a resposta seca e envergonhada é: a esse homem, eu respeito!

EM - MIGUEL, NO EXTREMO DA ESTREMA - ERNESTO FERREIRA - IN-FINITA

segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

DESCALÇA... (excerto) - SÓNIA CORREIA

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Descalça subiu no vento. Procurava um propósito que não fosse o de ver os ponteiros do relógio correrem pelos números, a esgotar o tempo, tinha perdido a bagagem, ao seu redor deixou de sentir o calor dos tantos que a decepção sangrou em sulcos, passaram anos desde então.

Entre a morte do desespero e os escombros da vida partida de lágrimas, ácidas sem rumo, aceitou arrumar os despojos e guardou todos os sapatos de princesa. Ficou sem chão, viu o castelo ruir, não foi feliz, ou foi, tantas vezes quantas acreditou nesse reinado que ainda hoje lhe lembra o lado dócil, o mesmo que detonou dentro dela a explosão e deixou vazios os baús.

Hoje anda descalça. Faz anos que congemina o plano da ascensão, enquanto serve outros castelos no lugar de Gata Borralheira que aceitou temporariamente resignada. Barafusta sozinha, mas aceitou que não há justiça em todas as coisas.

Não morreu, pelo contrário. Os olhos dela vêem beleza onde nunca antes a encontrará. A simplicidade humilde educou-a no caminho mais íngreme e em segredo tem traçado um lugar no mundo que esboça nas nuvens e cumpre em segredo.

EM - ALMA-TE - SÓNIA CORREIA - IN-FINITA