quinta-feira, 28 de novembro de 2019

CARTA AO MEU ANJO... (excerto) - SÓNIA CORREIA

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Tu, guerreiro e parceiro nesta imensa e longa batalha pela sobrevivência e ascensão, voz que me abraça, ouvido que me acarinha do outro lado da linha, imagem gravada em mim no peito, nesse
órgão de músculos entrelaçados que bombeia o sentir.

Escrevo-te porque é nas palavras que sou mais eu, para te dizer nas sílabas que tão bem me conheces que não são os natais que nos definem, que nos traduzem, que fazem de nós mais parte da mesma parte ou até mais importantes reciprocamente.

Que não é a distância sofrida nem mesmo a profunda saudade que abala o sentimento que nos une, muito menos um dia no ano ou as músicas da ocasião que soam nas bocas dos demais já profanadas do verdadeiro sentido.

Não são as luzes das árvores de Natal, na maioria expostas em casas sem amor que fazem brilhar, mas sim a tenacidade, a competência, a força, a certeza de que prevalece esta família de dois que jamais algo ou alguém conseguirá desunir.

Sou-te eternamente, és a minha força e a minha razão, a minha luta, a minha única realidade merecedora e sou-te, sou-te sem amarras tóxicas, sou-te sem condições, como exemplo de que a personalidade, o carácter, a fé, a batalha, podem ser ganhas mesmo que as adversidades passem rasteiras e ergam muros fracos para nos segurar.

EM - ALMA-TE - SÓNIA CORREIA - IN-FINITA

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS (excerto XII) - MARIA MAGUEIJO

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Maria ficou por instantes sem se mover. As palavras da prima tinham sido poderosas, cheias de convicção e também a fez pensar na vida que, sem se dar conta, passava veloz e ela mantinha a sua oficina, o seu velho carro, a furgoneta do avô para carregar as suas obras de arte, o restauro e... Pois. E tinha esquecido que era jovem, elegante, bonita e de porte altivo tal como a sua Mãe.
A sua Filha, sempre que vinha a Portugal dizia a mesma lengalenga:
– Mãe Maria, és linda, jovem, mas uma chata sem namorado. Porque fechas, na tua concha secreta, esse amor que tens para dar? Sê feliz, não te escondas por detrás destas tuas velharias. Pronto, desculpa... restauro de relíquias antigas.
Depois ria e abraçava a Mãe cheia de mimos das saudades.
Maria já não lhe dava ouvidos, Sorria, anuía e continuava a sua vida. Mas nesse dia foi como um despertar.

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terça-feira, 26 de novembro de 2019

O CONTRATO DO PASTOR - ERNESTO FERREIRA

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“Era uma vez um pastor que tinha esse ofício desde que se conhecia.
Os pais tinham morrido, era ele ainda criança, e houve uns vizinhos que tomaram conta dele. Na aldeia não havia escola e as crianças começavam a trabalhar logo que tinham um pouco de tino.
Este pastor foi então para casa desses vizinhos, lá no alto da montanha. Fazia todos os trabalhos, que eram a fonte de rendimento dos seus tutores. Mas principalmente fazia o ofício de pastor.
Todos os dias, logo pela “manhão”, quer fizesse frio ou calor, lá ia ele serra acima para as melhores pastagens.
Escola e Igreja nem sabia o que isso era. O mundo para ele era a família com quem vivia, ou melhor, pernoitava, as ovelhas e cabras, o cachorro que o ajudava na guarda e condução das ovelhas e a serra com todo o seu esplendor. Duma cana tinha feito uma flauta com a qual aquecia a alma e também servia para dar ordens ao rebanho. Ordens tão firmes como as dadas pelo estridente assobio com o qual também interpretava os sons do vira e da gota - danças e cantares tradicionais.
E a vida ia correndo sem novidades. Mas um dia em que resolveu levar o rebanho para um local mais distante, viu ao longe um grupo de pessoas que desciam a serra. Intrigado resolveu perguntar- lhes de onde vinham e para onde iam. Então uma das pessoas explicou: Nós vivemos no alto da serra e vamos para a aldeia ao Confesso da Páscoa. O nosso pastor perguntou: O que é o Confesso da Páscoa? Ao que a pessoa respondeu: Nós vamos ajoelhar em frente ao Senhor Padre, contamos as coisas que não devíamos fazer e os pensamentos maus que nos vieram à cabeça. O Senhor Padre então dá-nos uma penitência que, depois de cumprida, nos limpa dos pecados. Quem não se confessar é como um animal, concluiu o passante ao mesmo tempo que o animava a ir confessar- se. O pastor lembrou-se que costumava, às vezes, roubar uma ou outra “chouricita” aos seus tutores e que um dia tinha pensado fugir para correr mundo e entendeu que talvez fosse bom ser perdoado.
Juntou-se ao grupo e lá vai ele para a Igreja. Chegado aí viu as mulheres a colocar as saias pela cabeça, encostarem-se a um armário com rede e aí falarem com o Sr Padre. Ele fez o mesmo. Como não tinha saia colocou a manta pela cabeça e disse ao Senhor Padre o que entendia como seus pecados.
O confessor então, e pela gravidade dos “pensamentos e obras”, aplicou-lhe a penitência a cumprir: durante um ano tinha que viver apenas com pão e água. Ele aceitou, mas começou a pensar: pão ainda vá que não vá, mas água é que não pode ser; este contrato não me serve. Esperou que o Padre saísse do confessionário e perante a admiração dos penitentes que estavam na Igreja disse: Oh senhor de saia preta que estava naquele “curtelinho”. E repetiu: Oh senhor da cabeça rapada!
Logo que o Senhor Padre ficou atento, disse-lhe: Olhe, se quiser o contrato a pão e leite, muito bem; senão “ca..e” no contrato.

EM - MIGUEL, NO EXTREMO DA ESTREMA - ERNESTO FERREIRA - IN-FINITA

sábado, 23 de novembro de 2019

SONHO-ME... (excerto) - SÓNIA CORREIA

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No escuro da noite é onde me encontro. Apagam-se as luzes, calam- se as vozes, cai o negro lençol sobre o mundo. O corpo cansado do pensar solta-se leve e a alma refugia-se enrolada na manta felpuda de liberdade dos dias que tolhem o sonho.

Peço pouco ao universo, talvez um pouco impossível e ainda assim um quase nada que demora no percurso até mim; que seja efémero, mas chegue esse irrisório que me falta.

É cúmplice a névoa das luzes apagadas em surdina, é intenso o cheiro a maresia que mesmo em sonho me chega às hormonas e me cativa em todas as horas em que o mundo dorme. Será muito querer ser amada?

Deixo-me ir atrás do insano silêncio e sonho ainda acordada neste imaginário. A esperança toca ao de leve a pele num todo. Amar ultrapassa a impossibilidade, na chama da vela que acendo religiosamente ao meu lado, num instante deixo de existir para viver, sonho-me.

O relógio estagna na cidade onde me reinvento e amo, amo em contos de fadas por inventar, amo quem sou num orgulho que me preenche. Sinto-me amada no devagar com que a minha metade se encaixa em mim, como se o quente desse desenho assentasse praça na minha fogueira.

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sexta-feira, 22 de novembro de 2019

HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS (excerto XI) - MARIA MAGUEIJO

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Isabella reaprendia a ser feliz. Por vezes ficava horas deitada no sofá a ouvir a avó ler, a ouvir verdadeiras histórias de encantar de príncipes e princesas de um tempo, que ela adivinhava, a avó teria vivido.
Passados dois anos do regresso de Isabella da aldeia, a avó faleceu. Foi um golpe lancinante para todos. Algum tempo antes tinha sido diagnosticado um início de Alzheimer que se complicou velozmente. Amava o seu Miguel, como a si própria. Casaram muito jovens. Naquela época fora um casamento muito cavaqueado pelas coscuvilheiras da vila. E mais de sessenta anos passaram com tanta ternura. Miguel era um homem apaixonado, feliz com as duas filhas que lhe chamavam o pai com o cabelo que brilha como o sol. Como mulher precavida que sempre fora, deixou uma carta para o marido. Ao seu jeito era uma declaração de amor.

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quinta-feira, 21 de novembro de 2019

O CANTAR AO DESAFIO (excerto) - ERNESTO FERREIRA

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Se há coisa Miguel, que dá prestígio na região, e em Asturães também, é ser bom cantador ao desafio, referiu Poesia. “Cantigas ao desafio” é uma forma de duas pessoas se enfrentarem oralmente, cantando, em que cada um procura colocar o adversário em “menor condição”. Isto traduz-se em cada um tentar ridicularizar ou diminuir o adversário ou auto valorizar-se comparando as virtudes de cada um, e de todo o género. A avaliação do valimento de cada um é feita pelo numeroso público que rodeia os cantores.
Isto quando o espectáculo tem lugar em festas e romarias. Hoje é vulgar encontrar mulheres a cantar ao desafio; outrora era muito mais raro e para ouvir uma cantadeira ao desafio só em simultâneo com um baile.
Há uma dança e música minhotas que se chamam “O Fado” que propicia estes debates cantados, já que sendo a melodia suave permite que se entenda perfeitamente o palavreado, ou seja, os “argumentos” de cada um.
O cantar ao desafio não é para qualquer um, pois para o ser, “com preceito”, três aspectos são obrigatórios.
O primeiro é que as quadras ou sextilhas tenham rima e o cantor tenha que ser repentista; em segundo lugar o último verso de cada cantador obriga à mesma sonoridade do primeiro verso do outro cantador; em terceiro lugar (este mais raro) a força da afirmação depende de correspondente parábola justificativa tida no Evangelho, ou de ensinamentos do Novo ou Velho Testamento.
O que implica bom conhecimento dessas obras e interpretá-las conforme melhor lhe convém.
Resta acrescentar que o palavreado picante é muito apreciado.
Infelizmente hoje é recorrente e impróprio o uso de termos que nem abrilhantam o canto nem tem qualquer valor poético.

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segunda-feira, 18 de novembro de 2019

CONSTANTE... (excerto) - SÓNIA CORREIA

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A verdade é que não existe fórmula para a emoção nem, tão pouco, os sentires são produtos de prateleira que possamos escolher ao sabor da vontade do momento. A realidade sopra-nos na velocidade que lhe apraz enquanto inconscientes de significado nos invade o corpo, trespassa o coração e se entranha na alma.

Racionalizar é muitas vezes resvalar e cair em areias movediças, contrariados sem quase respirar, enrolados em ondas ferozes desse mar obstinado em revolucionar todas as equações sem resultado,
espalhadas como a matemática por resolver.

Mas para além de toda a demência que me é própria, dos sonhos fluidos em que me alimento, em todo o sentimento que me percorre o corpo como o sangue bombeia a máquina que me traz viva, para além da insanidade de acreditar no amor que me lambe a alma e me adoça a esperança, para além deste temporal que me enriquece, também tenho um anjo.

E com ele vivo momentos extraordinariamente únicos. Conversamos dia fora, noite dentro, enquanto em tragos sedentos me enveneno de champanhe, choro com ele sobre as minhas cicatrizes, rimos juntos sobre conceitos de felicidade absurdos à humanidade, desvelo anseios, falo do meu amar, grito injustiça e pelo meio oiço-o atentamente e tudo se encaixa.

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domingo, 17 de novembro de 2019

HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS (excerto X) - MARIA MAGUEIJO

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Isabella ajudava Maria no restauro dos móveis, era tinta espalhada, espátulas sujas de tanta cor, lixas de vários milímetros e muita risada. Maria é uma pessoa de bem com a vida, alegre e tagarela. É bom tê-la por perto.
As refeições eram outra comédia. Uma porque comia pouco, por habituação de ter dormido feito louca durante várias semanas, outra porque não queria ter de mudar de tamanho de roupa. Enfim, todos riam destas duas primas que um dia, um tabuleiro com chá e biscoitos, uniu numa visita a uma casa de cor lilás pintada.
E o tempo não pára...
Maria era uma pessoa importante na vida da prima. Apesar de brincalhona sabia muito bem o que argumentar para contrariar as tristezas dela. Maria acordava sempre cedo. Que maçada!

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sábado, 16 de novembro de 2019

O CONFESSO DA PÁSCOA - ERNESTO FERREIRA

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Miguel, a estória que se segue, para dizer a verdade, passou-se mesmo com o Ti Reinaldo e por isso vou pedir-lhe para ser eu a contar. Quero dizer-te, para melhor poderes julgar a atitude reflectida na nossa história, que estamos numa aldeia onde os habitantes, maioritariamente ligados à agricultura, são também profundamente crentes e observadores dos ditames do Senhor Abade.
De entre as realizações mais severamente avaliadas está o cumprimento do Confesso da Páscoa, que sempre tem lugar durante a Semana Santa.
Para o efeito são convidados os párocos das freguesias vizinhas, situação que é comum a todas as aldeias. Os padres deslocam-se a pé ou montados em cavalos garranos, de sua propriedade. De entre os padres que normalmente vêm à nossa aldeia, há um que é considerado muito severo nas penitências aplicadas e não menos severo durante o diálogo do confesso. É o justiceiro Padre Avieiro.
Acontece que o Ti Reinaldo não é dos melhores seguidores das regras de bom católico, só se confessando neste anual evento.
Desta vez calhou-lhe, para colocar em análise de pecador, o tal padre.
Normalmente e depois da bênção, o padre fazia a pergunta habitual: Há quanto tempo não se confessa? Isto significava: Há quanto tempo está em pecado?
Posta esta questão ao Ti Reinaldo, ele respondeu com a verdade: Senhor Abade, já não me confesso há um ano.
Com o conhecido mau feitio, o abade ripostou: Olhe que de ano anda a minha burra! (para que saibas Miguel, este é o tempo de gravidez das éguas...)
O Ti Reinaldo respirou fundo e atirou: Pois isso é que admira, Senhor Abade, pois a sua burra tem confessor em casa... E levantando- se, saiu da Igreja.
A partir dai o Ti Reinaldo entrou para o índex dos abades das redondezas... e de alguns paroquianos.

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quarta-feira, 13 de novembro de 2019

ARROJADA... - SÓNIA CORREIA

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Trago-me livre, solta, leve, louca até!

Se os oceanos que contenho se desprendessem de mim inundava-se o mundo. Desta arrojada vontade pela vida, amo inequivocamente mesmo nesta unicidade.

Subo ao cimo de qualquer montanha, abro os braços em jeito de asas de seda, nua por baixo da transparência, sem pudores. Tudo o que me apetece é voar, vazar tanto deste querer que me ocupa. Não sou de ninguém, de nada, de lugar algum, mas sou do tanto sem limites que o pensamento me desenha.

Que todas as coisas que trazemos dentro de um corpo que perece tão mais que a alma, as letras todas juntas que não definem coisa alguma. Que os segundos amontoados de sentimento, sensação, emoção me façam ir, e vou, vou para o vento que sopra arrojado me levar sem destino que importe.

Sede, tudo o que me vive é sede. Sede desse estado de entrega, no cume do universo que seja, pendurada de estrela em estrela até a lua me tocar e anseio que o brilho que brutalmente me invade constante exploda aos meus olhos, espalhe todos os estilhaços de loucura e serei mais feliz ainda.

Quando amar amarei com tudo de mim, mesmo que por breves momentos. Quando me entregar, entrego-me toda, mesmo que essa anestesia arrojada não seja entendida. Quando quiser, que se saiba que quero com essência e sabor apurado. Afinal são todas as peças do puzzle que definem a obra e de nada vale a subida às nuvens sem a arrojada vontade da insanidade.

Sejam loucos, loucura é a nova tendência... A única que escreve história!

EM - ALMA-TE - SÓNIA CORREIA - IN-FINITA

terça-feira, 12 de novembro de 2019

HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS (excerto IX) - MARIA MAGUEIJO

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Leonor escrevia ao seu pai com regularidade e esta carta ficou perdida no tempo. Era uma carta de dor, mas ao mesmo tempo a dar-lhe conta de todos os seus afazeres, a sua educação e de seus irmãos, de como estavam crescidos e também para o alegrar no cativeiro onde ele próprio se encontrava, no forte da Junqueira. Maria sentiu as lágrimas invadirem o seu rosto sem pedirem permissão. O universo conjugava todas as pistas para reerguer a sua prima. Sinais de força apareciam nas mais estranhas situações e das mais variadas formas.
Essa carta, Maria tem-na guardada como sendo o seu maior tesouro. Nunca falou dela a ninguém e de quando em vez vai ler aquelas palavras de Leonor de Allorna. Dão-lhe coragem e força para caminhar! Revoltada com o mundo, onde o sofrimento prevalece, aprendia muito naquela leitura que escondia de todos.

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segunda-feira, 11 de novembro de 2019

A MÃE DO RIO E OS ATAFAIOS - ERNESTO FERREIRA

Poesia sentia-se muito satisfeita por ajudar o Ti Reinaldo na lembrança das estórias. Desta vez, disse: Miguel, até aposto contigo como depois de ouvires a estória não serás capaz de ir para o rio, na zona do moinho.
Conforme já se disse o Ti Reinaldo exerce o ofício de moleiro, no moinho que existe anexo à ponte.
Como já viste, o moinho, sendo uma estrutura com peças em movimento, constitui um certo e real perigo para as crianças, sobretudo pelos mistérios que imaginam nos locais mais escondidos do moinho.
Assim, como potencial perigo existia a roda e a engrenagem no piso zero a que se chamava cabouco. Aí há engrenagens que transmitem o movimento circular vertical, em movimento circular horizontal. Dadas as potências em análise pode dizer-se que cada acidente pode ser mortal. O acesso mais fácil a essas engrenagens é possível através de uma passagem, tipo ponte sobre a regueira, que serve para acesso à manutenção e afinação.
Ora, o Ti Reinaldo tem que estar muito atento às crianças que por aí passam e então nada melhor que as assustar com os perigos que correm, se forem para esses locais perigosos. E então inventou perigos que as crianças, por mais que procurassem, não encontravam, mas sempre distantes do local onde havia os perigos.
Esses eram “a mãe do rio”, “os atafaios” e as “catacumbas”. E o Ti Reinaldo assim diz: Meninos a “mãe do rio” é uma cobra gigante, que tem umas correntes, que quando apanha os meninos a tomar banho agarra-os com as correntes, puxa-os para a água profunda - os pegos - onde morrem afogados.
Os “atafaios” são lacraus que tem uma unha enorme que quando apanham o pé de alguém lhe dão um golpe como fosse uma faca.
As “catacumbas“ são umas galerias de túneis que ninguém sabe onde acabam, começando no cabouco, e onde vivem fantasmas. Se alguém for ao cabouco poderá ser apanhado pelos fantasmas e nunca mais aparece.
O medo que a todos invadia, quando o Ti Reinaldo nos contava a sua e nossa realidade, da existência desses monstros, impedia qualquer desobediência. O resultado é que não havia miúdo que fosse sozinho para o Rio, e ir para próximo das rodas e engrenagens estava completamente fora de intenção.

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sexta-feira, 8 de novembro de 2019

COMEMORAR A FELICIDADE... SÓNIA CORREIA

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Uma explosão de orgulho incendiou-lhe a alegria. No coração desabrochou um jardim de emoções. O corpo dança-a sem cansaço, desliza nos saltos. O vestido longo de seda azulão nunca lhe exaltou tanto a elegância da alma rejubilante. Coisas dela e da intensidade que lhe vive em proporções astronómicas.

Felicidades de um ser com uma beleza interior invejável, uma simplicidade brutalmente sensual, um amar as pequenas vitórias como se fossem voltas no carrocel com o sorrir rasgado, vitórias que só ela sabe dar valor.

Não, não tem falta de humildade ou modéstia. Tem verdade, brilho natural e uma paixão ardente no juntar das letras. Escreve como lhe sai o sentir. Constrói do nada confissões, meio ao jeito de criar a sua própria obra, tão somente para dançar em júbilo o esculpir de quem é.

Hoje foi valorizada, reconhecida no que é para ela um gesto incondicional. Não é ninguém sem papel e uma caneta. Os papiros que vai deixando em jeito de herança para o grande amor da sua vida são joias no baú das memórias.

Esta vida vale tudo quando nestes pedaços de céu se enaltece por dentro, para ela e só por ela, vai à lua e vem cada vez que a música lhe move o corpo nesta pista de dança que a acolhe e ele lhe pede a mão para a sentir solta.

Ama sozinha todo o tempo emprestado que lhe é concedido. Agradece todos os momentos que respira, orgulha-se desalmadamente de ser quem é e ninguém a cala no papel. Esse é o seu reino, a sua fortuna, o reflexo da alma que cuida e que lhe é confidente em todas as horas.

Feliz, feliz, feliz... Comemora insanamente o crescimento e aprendizado no mundo dos poetas.

Um dia, ainda vai dançar nos braços de um amor que a saiba ler. Afinal, na felicidade já vive e a esperança parece mais nua e possível quando o universo a abraça.

Que se lhe solte o fogo de artifício, que as tristezas adormeçam, que o querer seja volúpia no poder, que este frenesim calmo aqueça a loucura e que se comemore sempre com felicidade e nuvens a garra de não existir apenas!

Que se lhe incendeie a alma infinitamente!

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quinta-feira, 7 de novembro de 2019

HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS (excerto VIII) - MARIA MAGUEIJO

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Quando acordou deviam ser perto das sete horas, o sol começava a sorrir e decidiu tomar o seu duche e ir preparar o pequeno almoço para Isabella que ainda dormia.
Mas era cedo. Muito cedo e foi passear um pouco pelo jardim, sentindo os aromas das flores que já acordavam. Tinham sido uns dias cinzentos os que viveram, mas acreditava que a bonança chegaria com muita tenacidade e amor.
Entrou na cozinha e logo sentiu aquele inconfundível cheirinho a café acabado de coar. Era o que mais gostava. O pão fresco era a delicia que faltava, com o doce de amoras que a avó fazia como ninguém.
Olhou o relógio de cuco e reparou que já eram quase nove horas e nem se tinha apercebido.
Subiu para espreitar Isabella, dormia!

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quarta-feira, 6 de novembro de 2019

O CONTO DAS MOCAS (excerto) - ERNESTO FERREIRA

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Miguel, diz Poesia: dos contos do Ti Reinaldo, o Conto das Mocas é talvez o que melhor reflecte a amizade que tinha pelas crianças, sobretudo as que, como ele, tiveram uma infância com necessidades.
“Era uma vez um menino a quem morreu a mãe. O pai casou segunda vez e a partir daí a vida do menino passou a ser um inferno. A madrasta obrigava-o a trabalhar em serviços pesados, sem lhe dar de comer. Valia-lhe a madrinha para não morrer de fome. As madrinhas são como segundas mães. O menino andava triste e não sabia o que fazer à vida.
Um dia, mais desesperançado, resolveu fugir e correr mundo. E se assim pensou, melhor o fez. Aproveitou a saída do pai e da madrasta, que tinham ido para a feira da vila, e juntou a pouca roupa que tinha, colocou-a no alforge e aí vai ele a correr mundo.
Ao fim do dia, já ele tinha corrido cinco léguas, quando começou a cair a noite. Então é que se lembrou que não sabia onde dormir. A fome começou também a sentir-se, mas lá encontrou uma espécie de toca, debaixo de um penedo, onde dormiu toda a noite. Na manhã seguinte, cheio de fome, continuou o caminho, mas a cada passada que dava a fome ia sendo mais forte e as pernas iam ficando mais fracas. Até que a meio da manhã, cheio de fome e sem saber o destino, o menino sentou-se no chão a chorar. O desespero era maior que o choro. O sofrimento aumentava e a esperança rareava.
Mas de repente o menino sentiu um grande arrepio e olhando em frente viu uma senhora, raiando uma luz prateada, que de súbito lhe pareceu a madrinha que lhe dava de comer. E a senhora perguntou: Menino, porque choras?
O menino respondeu: Eu fugi de casa por causa dos maus tratos que me dava a minha madrasta e agora estou perdido e cheio de fome. Então a senhora deu-lhe um anel de ouro e disse-lhe: Pega este anel e sempre que quiseres, basta dizeres ao anel: “anel faz o teu dever”, e logo terás uma mesa, farta de comer. Dito isto, a senhora desapareceu. Era Nossa Senhora, mãe de Jesus, assim pensou o menino.
O menino quis experimentar e, ditas as palavras santas, logo apareceu uma mesa farta de comer... Comeu tudo o que quis, do bom e do melhor. Parecia que o céu se tinha aberto para ele. Estava neste mister quando lhe apareceu um viajante. Tratava-se de um homem de aspecto pobre, com um saco às costas, que, quando chegou ao pé do menino, perguntou-lhe porque estava ali a mesa. O menino explicou o milagre do anel.

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domingo, 3 de novembro de 2019

MORRER EM VIDA, NUNCA! (excerto) - SÓNIA CORREIA

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E será esta a definição de insanidade? Será esta a hora em que se deslaçam os cordões do colete de forças quase costurado por nós mesmos, em todos os anos que a vida nos prometeu serem de liberdade?

De que adianta esta viagem sem cumprir os destinos do desejo? O que mais fazemos nesta terra do que não seguir padrões e vestir imagens hipócritas que pareçam bem à sociedade?

Não estamos senão mortos sem ter havido funeral, em todos os dias, meses e anos que reprimimos a vontade de enlouquecer e gritar em uníssono todos os desejos escondidos, nos cantos secretos de nós. Vamos sendo cada vez menos nós, inertes, máquinas.

E se a cumplicidade demente, subitamente, respirasse ofegante por aí com o nosso nome? Se o estado constante de subir paredes desfuncionasse a monotonia e implodisse constantemente em chama ardente? E se a tesão da mente escorresse no corpo enquanto a alma cerrava todas as grades de aço ao redor de uma existência seca de emoção, haveria coragem?

O impensável existe, seja onde for. Ele vive e respira preso ao colete e internado num relógio onde os ponteiros apenas passam pelos minutos. Anda por aí, perdido nos caminhos, mas certo da minha morada que lhe pertence como jamais a alguém pertenceu.

Somos monumentos estáticos de hipocrisia, mentiras, veias entupidas de tanto reprimir a verdade, cínicos automatizados em estereótipos sem coragem de assumir a realidade, e muitos de nós nascem, crescem e morrem sem sair da cápsula desse tempo emprestado e veloz, mas que um dia acaba.

EM - ALMA-TE - SÓNIA CORREIA - IN-FINITA

sábado, 2 de novembro de 2019

HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS (excerto VII) - MARIA MAGUEIJO

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– Desculpa, mas fui requisitar uns livros à biblioteca e dei de caras com alguém que te mandou um abraço e um beijo. A Anabela, da aldeia e imagina dei-lhe tamanho encontrão que deixei cair os livros todos. Enfim, isso agora não é o mais importante. Apenas o bem que disse da tua pessoa me interessou. Que foste o exemplo que deixou regras de conduta até hoje. Vês? Missão do Universo, mais que perfeita! Agora vamos jantar!
– Já reparaste que ainda não te calaste um segundo, Maria? Respira! E sim, fico feliz. Agora quero dormir.
– Não, não... primeiro o jantar.
– Tu és muito chata! Pior que quando nem te reconheci. Aí estavas calada!
– Menina Isabella fique sabendo que aprendi consigo esta beleza de ser uma verdadeira chata! Come e cala-te.
Isabella comeu e mesmo antes de adormecer perguntou a Maria porque queria ler para ela, se dormia?
– Para te lembrares que consegues fazer a diferença, agora serei eu a contar-te histórias lindas e enriquecedoras! E vais ouvindo a minha voz. Para não te esqueceres dela.
– Estou assim tão mal? Parece-te que me irei esquecer de tudo? Diz-me a verdade.
– Que grande tolice, tu dizes cada coisa, sabes... dorme! Eu vou ler um belo romance para me animar.
– Hummm, doida. Que vais ler? Balbuciou Isabella já meio adormecida.

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sexta-feira, 1 de novembro de 2019

OS TOCADORES DE RABECA - ERNESTO FERREIRA

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Miguel, o Ti Reinaldo vai contar-te hoje o primeiro conto do seu reportório. É um conto em que a Rabeca é um elemento importante. Era um dos instrumentos musicais mais prestigiados nos tempos que já lá vão. É um instrumento de origem árabe, antecessor do violino e de muito menor qualidade sonora. Na região do Alto Minho raramente se vê, mas era muito popular no sec XVIII. Sobre este instrumento há um belo trabalho feito por Giaccometi, artista que fez várias recolhas etnográficas na aldeia e que até hoje, infelizmente, não teve ainda a merecida homenagem. Daqui por diante ouve o Ti Reinaldo.

“Era uma vez uma aldeia que muito se questionava e o povo dividia-se na apreciação da qualidade de dois tocadores de rabeca, que aí viviam.
Um chamava-se Venâncio; o outro Valentim. Na realidade onomástica, para o povo nessa aldeia do Alto Minho, eram o Benâncio e o Balentim. Numa faceta, eram por todos igualmente apreciados: eram amigos e se alguma adversidade havia entre os dois, era desejo de cada um ser mais perfeito tocador que o outro.
Porém, uma concorrência sádia, que se traduzia no incómodo que ambos sentiam nas paixões por vezes menos doces que os respectivos apoiantes interpretavam.
Até que Venâncio encontrou uma forma de acabar com a dúvida sobre quem era o melhor artista: se ele, se o Valentim. Assim propôs a Valentim o seguinte desafio:
– Oh, Balentim, desafio-te a que seja o Senhor dos Passos a dizer qual de nós é o melhor. Para isso cada um de nós vai dar três voltas à capela, a tocar uma rabecada. Finda essa, entra na capela, ajoelha-se em frente ao Senhor dos Passos e toca uma rabrianada (assim chamavam a peça musical tocada em arraial). Ajoelhado espera pelo julgamento do Senhor dos Passos. Valentim aceitou o desafio e calhou ser Venâncio o primeiro a cumprir a sua demonstração musical.
Deve saber-se que nessa altura o Senhor dos Passos, além de ser o Padroeiro da aldeia, era tido por todos os aldeões como Santo de bons ofícios e milagres, e senhor de opiniões e sentenças como nenhum juiz de fora seria capaz.
Verdade que nenhum dos aldeões alguma vez ouviu o oráculo do Senhor dos Passos na presença de testemunhos. Era sempre uma conversa a dois.
Mas ninguém se atrevia a duvidar que alguém mentisse invocando o santo nome do Senhor dos Passos em vão. Pelo sim pelo não, era conveniente aceitar.
Bom, no dia aprazado para a resolução da contenda, todos os aldeões se juntaram no adro de capela para assistir ao mais belo momento musical e alguns, desconfiados, para aquilatar da justiça do Senhor dos Passos. Já havia alguns “pedreiros livres” dissimulados, como era mais seguro.
Até que chegaram os dois contendores, alvos do maior respeito dos presentes.
Começou então o Venâncio que iniciou a primeira das três voltas à capela e dando desde logo azo a que os seus adeptos se mostrassem confiantes no melhor resultado. Findas as voltas entrou na capela e perante o Senhor dos Passos deu início ao tema que melhor sabia interpretar. No final ajoelhado em frente ao Santo esperou o seu veredicto. Como disse, este acontecimento era tido sem testemunhos. Após uns momentos, Venâncio levantou-se e tomou a saída da capela. No adro e perante a curiosidade de todos, e ansiedade dos seus adeptos, disse: O Senhor dos Passos ouviu-me
tocar e não disse nada, mas as lágrimas corriam-lhe pela cara abaixo, tão maravilhado estava com a minha actuação.
Seguiu-se o Valentim. De igual modo tocou a sua rabrianada, dando as voltas à capela e entrou na dita. Aí, em frente ao Senhor dos Passos, sozinho, como era de preceito, fez valer os seus dotes de tocador.
Cá fora a multidão esperava as palavras de Valentim para todos ficarem a saber a opinião, que seria lei daí em diante, do Senhor dos Passos.
Num silêncio sepulcral, Valentim disse:
– Oh, Benâncio, o senhor dos Passos para ti chorou, mas para mim até falou e disse: Ah Balentim, Balentim, podes ir tocar prá casa (dependia do ouvinte) que nunca ouvi tocar assim!
Opinião que passou a valer não só por vir de quem vinha, mas ainda pela força dos palcos onde podia actuar Valentim, na opinião do Senhor dos Passos.”

EM - MIGUEL, NO EXTREMO DA ESTREMA - ERNESTO FERREIRA - IN-FINITA