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Miguel, o Ti Reinaldo vai contar-te hoje o primeiro conto do seu reportório. É um conto em que a Rabeca é um elemento importante. Era um dos instrumentos musicais mais prestigiados nos tempos que já lá vão. É um instrumento de origem árabe, antecessor do violino e de muito menor qualidade sonora. Na região do Alto Minho raramente se vê, mas era muito popular no sec XVIII. Sobre este instrumento há um belo trabalho feito por Giaccometi, artista que fez várias recolhas etnográficas na aldeia e que até hoje, infelizmente, não teve ainda a merecida homenagem. Daqui por diante ouve o Ti Reinaldo.
“Era uma vez uma aldeia que muito se questionava e o povo dividia-se na apreciação da qualidade de dois tocadores de rabeca, que aí viviam.
Um chamava-se Venâncio; o outro Valentim. Na realidade onomástica, para o povo nessa aldeia do Alto Minho, eram o Benâncio e o Balentim. Numa faceta, eram por todos igualmente apreciados: eram amigos e se alguma adversidade havia entre os dois, era desejo de cada um ser mais perfeito tocador que o outro.
Porém, uma concorrência sádia, que se traduzia no incómodo que ambos sentiam nas paixões por vezes menos doces que os respectivos apoiantes interpretavam.
Até que Venâncio encontrou uma forma de acabar com a dúvida sobre quem era o melhor artista: se ele, se o Valentim. Assim propôs a Valentim o seguinte desafio:
– Oh, Balentim, desafio-te a que seja o Senhor dos Passos a dizer qual de nós é o melhor. Para isso cada um de nós vai dar três voltas à capela, a tocar uma rabecada. Finda essa, entra na capela, ajoelha-se em frente ao Senhor dos Passos e toca uma rabrianada (assim chamavam a peça musical tocada em arraial). Ajoelhado espera pelo julgamento do Senhor dos Passos. Valentim aceitou o desafio e calhou ser Venâncio o primeiro a cumprir a sua demonstração musical.
Deve saber-se que nessa altura o Senhor dos Passos, além de ser o Padroeiro da aldeia, era tido por todos os aldeões como Santo de bons ofícios e milagres, e senhor de opiniões e sentenças como nenhum juiz de fora seria capaz.
Verdade que nenhum dos aldeões alguma vez ouviu o oráculo do Senhor dos Passos na presença de testemunhos. Era sempre uma conversa a dois.
Mas ninguém se atrevia a duvidar que alguém mentisse invocando o santo nome do Senhor dos Passos em vão. Pelo sim pelo não, era conveniente aceitar.
Bom, no dia aprazado para a resolução da contenda, todos os aldeões se juntaram no adro de capela para assistir ao mais belo momento musical e alguns, desconfiados, para aquilatar da justiça do Senhor dos Passos. Já havia alguns “pedreiros livres” dissimulados, como era mais seguro.
Até que chegaram os dois contendores, alvos do maior respeito dos presentes.
Começou então o Venâncio que iniciou a primeira das três voltas à capela e dando desde logo azo a que os seus adeptos se mostrassem confiantes no melhor resultado. Findas as voltas entrou na capela e perante o Senhor dos Passos deu início ao tema que melhor sabia interpretar. No final ajoelhado em frente ao Santo esperou o seu veredicto. Como disse, este acontecimento era tido sem testemunhos. Após uns momentos, Venâncio levantou-se e tomou a saída da capela. No adro e perante a curiosidade de todos, e ansiedade dos seus adeptos, disse: O Senhor dos Passos ouviu-me
tocar e não disse nada, mas as lágrimas corriam-lhe pela cara abaixo, tão maravilhado estava com a minha actuação.
Seguiu-se o Valentim. De igual modo tocou a sua rabrianada, dando as voltas à capela e entrou na dita. Aí, em frente ao Senhor dos Passos, sozinho, como era de preceito, fez valer os seus dotes de tocador.
Cá fora a multidão esperava as palavras de Valentim para todos ficarem a saber a opinião, que seria lei daí em diante, do Senhor dos Passos.
Num silêncio sepulcral, Valentim disse:
– Oh, Benâncio, o senhor dos Passos para ti chorou, mas para mim até falou e disse: Ah Balentim, Balentim, podes ir tocar prá casa (dependia do ouvinte) que nunca ouvi tocar assim!
Opinião que passou a valer não só por vir de quem vinha, mas ainda pela força dos palcos onde podia actuar Valentim, na opinião do Senhor dos Passos.”
EM - MIGUEL, NO EXTREMO DA ESTREMA - ERNESTO FERREIRA - IN-FINITA