segunda-feira, 29 de abril de 2024
Lavagem cerebral (excerto 3) - Luís Vasconcelos
domingo, 28 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 292 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
292
Reconheço a precaridade dos meus passos e as responsabilidades alheias que coloquei nas costas quando, eu próprio, sentia a necessidade de outras latitudes, outros encargos, mais sensatez.
Porventura, deixei-me ficar no lado de cá do horizonte por achar que escalar outros cumes seria um acto de egoísmo descabido e só conheci a indiferença depois de muitos sapatos gastos.
O discernimento conquista-se a conta-gotas e a consciência precisa ser destilada para que a razão venha à tona. Por isso, só agora, passado o equador da viagem, é que dei conta do caminho circular – para não dizer espiral – que tenho trilhado.
Arrependimentos! Na prática nenhum porque, instintivamente, nunca fui acumulador de tralhas e abandonei algum lastro basáltico nas margens do esquecimento. Mas não se aflijam os ambientalistas porque deixei tudo bem acondicionado em embalagens recicladas e nos respectivos aterros.
EMANUEL LOMELINO
A qualquer hora da noite (excerto 12) - Geórgia Alves
sábado, 27 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 291 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
291
Quisera ser tempestade ribombante para, com a luminosidade dos raios e rouquidão dos trovões, atormentar as dualidades das marés lunares.
Quisera ser vulcão e cuspir rios de lava abrasadora sobre as vulnerabilidades infundadas que, quais etiquetas inamovíveis, falsamente denigrem o carácter mais brando e casto.
Quisera ter a acidez vernácula para combater a violência covarde de quem se esconde nas sombras do anonimato e depois passeia, altivo e de saltos altos, nas vergonhosas passadeiras vermelhas do engodo.
Quisera ter todos os verbos à flor da pele para, com a língua afiada, romper a brandura dos discursos, chamar os bois pelos nomes e colocar os pontos nos “is”.
EMANUEL LOMELINO
Reflexões (excerto) - Renata Campos
sexta-feira, 26 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 290 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
290
Os aforismos vivem e respiram em cada verso criado pelas almas noctívagas, sedentas por estancar silêncios e arruinar sossegos mentais.
As penas – nunca plumas – são torneiras abertas aos discursos atormentados, sem saberem que as tormentas maiores estão nos olhos da posteridade.
O maior sofrimento é sentido pela folha de papel por reciclar, por não ter história além daquela que lhe tatua o corpo em pigmentos desbotáveis e com prazo de validade.
Quanto ao vate… de pouco lhe serve o entendimento e um descodificador de ideias e processos porque tudo fica perdido na ausência de rasuras e notas de rodapé.
Mas, apesar de tudo ser efémero, desde a concepção até à fogueira, existem momentos de poesia que respondem às leis da natureza. Porque nada se perde, tudo se transforma e renova.
EMANUEL LOMELINO
Encontro com a teia - JackMichel
quinta-feira, 25 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 289 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
289
Olavo descobriu, muito cedo na vida, que era apaixonado pela escrita. Construía frases a partir de uma ideia base, encadeava-as de forma cirúrgica e precisa, e nasciam textos que encantavam todos aqueles que os liam, embora ele sempre tivesse alguns reparos a fazer e nunca os desse por terminados.
O acto de escrever era, por si só, um momento de regozijo, libertação e êxtase, e todos esses sentimentos juntos faziam-no sentir-se plenamente realizado, mas nunca satisfeito. Por isso, muitos ficaram surpreendidos quando decidiu dedicar-se profissionalmente à escrita.
Sabendo, de antemão, que o percurso de um escritor nunca é fácil, e porque um bom livro não aparece feito de um momento para o outro, como num golpe de mágica, Olavo começou a fazer traduções das obras mais emblemáticas da literatura universal, de modo a conseguir um rendimento que lhe permitisse subsistir enquanto trabalhava, com afinco, na sua própria obra.
O tempo foi passando… passando… passando e, porque o seu livro de estreia teimava em não surgir, alguns amigos começaram a interrogá-lo sobre a demora. Rapidamente descobriram que, a cada nova tradução feita, Olavo sentia necessidade de reescrever todo o seu material porque tinha-se deparado com alguma técnica, estilo ou abordagem que achava pertinente incluir no seu livro.
Hoje, muitos anos após a sua morte, Olavo é uma referência para a maioria dos tradutores de obras clássicas, pela qualidade das quase duzentas traduções que fez. Já em relação ao seu livro… apesar das múltiplas vezes que o reescreveu, ele nunca viu a luz do dia por uma questão de perfeccionismo exacerbado.
EMANUEL LOMELINO
O poder das ancas (excerto 2) - Monica Rocha
A fantástica fábrica de rapaduras (excerto 1) - Maria Aliender
quarta-feira, 24 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 288 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
288
A passo lento, Rómulo pisa a calçada, ainda húmida do orvalho matinal, como quem tem uma pedra no sapato e as meias encharcadas.
No rosto, carcomido pela insónia, leva estampada uma história de tormentas cosidas a desencontros e linhas tortas. No canto do olho, como em todos os dias amargos, carrega o reflexo de lágrimas por libertar, que nem a cacimba é capaz de disfarçar.
O manto puído dá-lhe o poder da invisibilidade perante a turba que se acumula junto ao semáforo, sem tempo para olhar o mundo tal qual ele se apresenta.
Ao ronco das entranhas, Rómulo responde colocando a sua mão boa – a que tem menos escaras vivas – no que resta do bolso direito. Saca a côdea do desafogo das últimas semanas e, com a prática de um golpe de indicadores, solta duas migalhas que leva à boca salivante.
Olha em redor, como quem anseia ver algum conhecido, e regressa, inexpressivo, ao interior da caixa de frigorífico, onde se abriga nas noites selvagens de Inverno, para mais uma tentativa de hibernação – o sono pode não ser pacífico, no entanto, tem o condão de apaziguar o estômago por mais algumas horas, até à próxima dose de migalhas.
EMANUEL LOMELINO
Lavagem cerebral (excerto 2) - Luís Vasconcelos
terça-feira, 23 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 287 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
287
Os olhos, hipnotizados pela maré vazante, ficam presos no coração do Tejo que pulsa, indiferente às traineiras e aos voos das gaivotas, com espelhos a surfar na serena agitação, das suas águas turvas, provocada pelo rastro de um catamaran. Há uma brisa que beija os rostos transeuntes como que anestesiando-os do abraço solar, fora de época, e oferecendo a maresia como perfume de consolo e paz.
Ouve-se, ao longe, a banda-sonora indistinta saída da garganta rouca de um violão, acompanhada pela voz melodiosa, mas murmurada, de uma cantora gospel, que faz da rua o seu anfiteatro, junto a um malabarista de sapateado clássico.
Só falta um pintor, de tripé em riste e as mãos ocupadas com pincéis e uma paleta mais colorida do que o arco-íris, para que se forme o cenário perfeito: a natureza, ela própria uma obra de arte, rodeada de artesãos vários.
EMANUEL LOMELINO
A qualquer hora da noite (excerto 11) - Geórgia Alves
segunda-feira, 22 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 286 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
286
Como não bastasse a densidade do bosque, com as suas altivas árvores de copas escuras e tão espessas que o sol não as trespassa, ainda se pôs este nevoeiro cerrado que cega o início do olhar.
Apenas ruído. Uma espécie de assombro canalha que gela pedras e raciocínio. Um tilintar indistinto, contudo macabro, fúnebre e tão encantatório como um coro de sereias à caça de náufragos.
O caminho, à margem das vespas e espinheiros, faz-se irregular, qual montanha-russa num parque de diversões devoluto.
Ouve-se o piar de uma coruja-das-torres e um indefinido restolhar, ténue e miúdo, tão rasteiro como uma subcave invisível, mas presente.
Subitamente, num passo de mágica, abre-se uma clareira tão larga quanto negra, como fosse o leito de uma gigantesca fogueira antiga, que oferece três trilhos. Um de seixos brancos e lisos de erosão, outro coberto por um tapete de folhagem calcada, o terceiro enlameado, íngreme e invadido por troncos tombados.
Os dois primeiros reentram no bosque. O último, menos convidativo, circunda a clareira e embica na direcção oposta. Por via das dúvidas, incorpora-se o espírito de Régio e segue-se adiante.
EMANUEL LOMELINO
O dia em que a música acabou (excerto) - Renata Campos
domingo, 21 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 285 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
285
De nada serve abrandar ou ziguezaguear a vida por medo da morte. Fazê-lo é prescindir das cores que a primeira contém, substituindo-as pela beleza daltónica da segunda, sempre em tons esbatidos e duvidosos.
Não adianta colocar pé no travão da existência porque as pétalas do tempo não se comovem com o abrandamento do passo e seguem, flutuantes, rumo à finitude da sua queda.
Não há fontes de água-benta que impeçam o pólen de Hades de espalhar-se entre a humanidade e aumentar a sua colecção de almas.
Mais confortável é aceitar com naturalidade o fim assegurado, deixando-o navegar nos mares da ignorância, como quem espera o sorteio da loteria sabendo que as hipóteses de ganhar são superiores a qualquer outra sorte.
EMANUEL LOMELINO
Teia no jardim - JackMichel
sábado, 20 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 284 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
284
Nestes dias em que acordo com o reverberar da chuva pregado nos ouvidos e inspiro ursos polares, pela única narina desentupida, evito levar os dedos antárticos ao rosto coberto pela inclemência das horas.
Enrosco-me na fogueira de linho e maldigo a vertigem da noite, num gesto de revolta inconsequente que, por si só, aumenta o sufoco de mais um dia de pedras laminadas.
Contragosto, maquilho-me de feliz artífice, de uma arte que abomino, para mascarar o incómodo que o ambiente circundante provoca de véspera.
Nas ruas da cidade já deambulam outras carcaças abatidas pelos ventos gélidos da Fortuna, com as cabeças recolhidas num conformismo nefasto.
Tento alhear-me da lentidão dos ponteiros observando os voos caducos das gaivotas e interrogando-me sobre os guinchos negros dos corvos que fazem malabarismos acrobáticos nos cabos de alta-tensão.
E
tudo isto, como uma sessão contínua de mau cinema, repete-se ciclicamente no
turno do sol, cujo brilho há muito deixou de animar os meus passos.
EMANUEL LOMELINO
O poder das ancas (excerto 1) - Monica Rocha
Lagoa dourada (excerto 2) - Maria Aliender
sexta-feira, 19 de abril de 2024
Diário do absurdo e aleatório 283 - Emanuel Lomelino
Diário do absurdo e aleatório
283
Começam-me a faltar fórmulas para explicar o gosto pela leitura e o prazer de ler livros em catadupa.
Chamem-lhe obsessão, vício, dependência, mania, sede de conhecimento, paixão, até loucura. Aceito todos os epítetos com a mesma naturalidade com que passo de Celan para Agustina, de Tchekov para Sophia, de Quintana para Hatherly, de Camilo para Pasternak, de Orwell para Vergílio, de Márai para Torga, de Eugénio para Gógol, de Pessoa para Steinbeck, enfim, de livro para livro, sem olhar a filosofias, épocas, proveniências ou géneros literários.
Sou um bicho das letras auto enclausurado nas badanas de um mundo paralelo, por onde deambulo em busca de respostas às perguntas que nunca fiz porque, só assim, consigo justificar a esquizofrenia que me abraça e faz-me sentir, bem vincado no âmago, este desenquadramento temporal.
Ler transformou-se numa epopeia lúcida com o objectivo de afastar a angústia de estar onde não pertenço, nem quero estar, e descobrir o espaço e tempo onde poderia encaixar-me como uma peça de puzzle.
EMANUEL LOMELINO