Oito
dias em casa
Após
os primeiros dias de excesso de trabalho devido a cancelamentos e adiamentos de
eventos, incertezas e insegurança, entro na segunda semana um pouco mais
tranquila. Com o trabalho reduzido, e com os prazos mais alargados, sobrou, em
mais de dois anos, tempo para organizar roupas e armários, limpar com mais
cuidado e atenção a casa, falar com a família e amigos do outro lado do oceano
e aqueles mais próximos, ou além das fronteiras, que recebiam breves mensagens,
devido à correria diária.
Sobrou
mais tempo para ler os livros que se acumulavam na cabeceira da cama, ou aquela
série da Netflix parada na metade. As pesquisas de museus, músicas e
literatura, onde os links eram guardados para ver mais tarde.
Sobrou
mais tempo para pensar na razão de tudo isso.
Sobrou
mais tempo para acompanhar a evolução da pandemia causada pelo coronavírus e
pensar, pensar e repensar.
Saí
à rua quase deserta hoje pela manhã, para ir ao supermercado, e lamentei as
cenas que vi e que não vale a pena descrever, pois são comentadas no noticiário
da noite.
Saí
à rua para sentir o sol, o vento, caminhar um pouco e deparei-me com o egoísmo,
individualismo, falta de educação e consciência coletiva e da responsabilidade
social que o momento exige. Ali, naquele espaço de quase uma hora na porta de
uma grande rede de supermercados, ouvi de tudo. Reclamações, piadas,
desinformação. Percebi a falta de preparo das pessoas para seguirem regras,
normas e conviverem com situações que as tirem da sua zona de conforto. E cada
carrinho que saía abarrotado de comida e demais itens mostraram mesmo a falta
de solidariedade com o próximo. Pois voltei sem o que precisava, por causa das
prateleiras vazias. Senti-me no enredo de um filme, daqueles tipo salve-se quem
puder, aconteceu uma catástrofe.
O
sol ficou mais pálido.
Acredito
que o mundo entrou em colapso, e essa é uma das formas de regeneração. Menos
poluição de agentes químicos, menos poluição de gás carbônico, menos poluição
sonora.
Redução do lixo nas ruas e mais espaço para a natureza manifestar-se.
Acredito
que não precisamos estar todos os dias nos centros comerciais, supermercados,
fast food ou restaurantes consumindo compulsivamente.
Acredito
em um tempo que exige mais convívio familiar, que ficou em segundo plano, pois
pais, filhos e netos não tinham mais horas nos seus dias para estarem mais
próximos, mais perto.
Acredito
que somos o coletivo, e que sentimos igual aos nossos irmãos de todos os cantos
do planeta, independente da cultura, raça, língua ou religião.
Acredito
na exigência que a vida nos faz agora, nesse momento, para olharmos com mais
cuidado e respeito para com a nossa saúde, atitudes e hábitos. E tornarmos mais
solidários, preocupados, não só com o nosso bem estar, mas com quem está ao
nosso lado.
Acredito
que é necessário esse refúgio obrigatório para darmos mais valor à nossa
liberdade de ir e vir, com mais calma, e com um olhar mais atento ao que nos
cerca.
Acredito
que a dor, o sentido de impermanência e ameaça, desperta em nós o que temos de
mais humano: a solidariedade e o amor pelo próximo.
Acredito
que isso vai passar. E que tudo vai mudar, para melhor. As nossas rotinas, as
nossas atitudes, e como vamos administrar o nosso tempo.
Vamos
perder sim, vamos sofrer, vamos ver o sofrimento alheio. Teremos privações para
percebermos que nem tudo é essencial, e que podemos sobreviver com muito, muito
pouco.
E
olhando para aquele sol, quase escondido por uma nuvem, lembrei que no ano
passado, estive uma semana com uma mochila nas costas fazendo o Caminho de
Santiago, e que este ano estarei em casa, sem poder sair.
Fechei os olhos e resgatei aquela sensação de liberdade e lembrei a grande
lição daqueles dias de caminhada, com bolhas nos pés e dor em todo o corpo:
Seguir em frente.
Eu
só tinha uma mochila nas costas e vivi os melhores dias da minha vida, estava
leve, feliz e confiante. Determinada em superar todas as dificuldades, com
coragem para enfrentar o desconhecido e muita fé para o que Deus havia me
reservado no passo seguinte.
Levava
apenas uma mochila, com pouca roupa e comida, partilhava conversas com
desconhecidos e o sentimento solidário de estarmos na mesma situação. Caí e
ajudaram-me a me levantar: um senhor peregrino italiano.
Seguia
sozinha pelo desconhecido, no meio da estrada, no meio da floresta, dos campos,
das aldeias, mas não me sentia solitária ou abandonada.
E sempre reencontrava os amigos e as pessoas nas paragens para descansar e
confraternizar.
Levava
em meu coração as pessoas que eu amava e as minhas boas lembranças. E a minha
mente estava entregue apenas a observar e usufruir tudo o que eu podia reter
daquele momento de tão grande aprendizado.
O
sol me acompanhava e quando escondia-se eu o percebia por trás das nuvens.
Eu
só tinha uma certeza, como tenho agora: tudo passa.
E
tudo isso vai passar. No tempo certo, depois que todos nós aprendermos a nos
olhar, olhar para a vida que nos cerca, olhar para o outro.
O
planeta pede socorro, a vida pede socorro e no ar está o seu grito, o seu
chamamento, o seu pedido.
É nossa responsabilidade pessoal e social cuidar de tudo isso e lembrarmos a cada instante que fazemos parte desse todo, que se chama humanidade.
O
sol vai voltar a brilhar.
Adriana
Mayrinck
Excelente texto Adriana, essa é e deve ser sempre a atitude ter, parabéns a vocês, enorme abraço.
ResponderEliminarGrata Alberto pelas palavras...Protejam-se! Abraços
EliminarObrigada, Adriana! O teu testemunho fez-me bem. Também eu acredito que este tempo de prova deve ser aproveitado para pensarmos no essencial que faz a vida e aguardar com esperança por dias felizes, mais solidários, mais luminosos, em harmonia entre os seres vivos e o universo. Um grande abraço para ti.
ResponderEliminarEste comentário foi removido pelo autor.
EliminarSim, também acredito em inúmeras transformações pelas quais passaremos a partir desse evento Encantada com seu belíssimo relato. Parabéns e gratidão pela partilha. 😍🙏
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