quinta-feira, 19 de março de 2020

ADRIANA FALA DE... OITO DIAS EM CASA


Oito dias em casa

Após os primeiros dias de excesso de trabalho devido a cancelamentos e adiamentos de eventos, incertezas e insegurança, entro na segunda semana um pouco mais tranquila. Com o trabalho reduzido, e com os prazos mais alargados, sobrou, em mais de dois anos, tempo para organizar roupas e armários, limpar com mais cuidado e atenção a casa, falar com a família e amigos do outro lado do oceano e aqueles mais próximos, ou além das fronteiras, que recebiam breves mensagens, devido à correria diária.

Sobrou mais tempo para ler os livros que se acumulavam na cabeceira da cama, ou aquela série da Netflix parada na metade. As pesquisas de museus, músicas e literatura, onde os links eram guardados para ver mais tarde.

Sobrou mais tempo para pensar na razão de tudo isso.

Sobrou mais tempo para acompanhar a evolução da pandemia causada pelo coronavírus e pensar, pensar e repensar.

Saí à rua quase deserta hoje pela manhã, para ir ao supermercado, e lamentei as cenas que vi e que não vale a pena descrever, pois são comentadas no noticiário da noite.

Saí à rua para sentir o sol, o vento, caminhar um pouco e deparei-me com o egoísmo, individualismo, falta de educação e consciência coletiva e da responsabilidade social que o momento exige. Ali, naquele espaço de quase uma hora na porta de uma grande rede de supermercados, ouvi de tudo. Reclamações, piadas, desinformação. Percebi a falta de preparo das pessoas para seguirem regras, normas e conviverem com situações que as tirem da sua zona de conforto. E cada carrinho que saía abarrotado de comida e demais itens mostraram mesmo a falta de solidariedade com o próximo. Pois voltei sem o que precisava, por causa das prateleiras vazias. Senti-me no enredo de um filme, daqueles tipo salve-se quem puder, aconteceu uma catástrofe.

O sol ficou mais pálido.

Acredito que o mundo entrou em colapso, e essa é uma das formas de regeneração. Menos poluição de agentes químicos, menos poluição de gás carbônico, menos poluição sonora.

Redução do lixo nas ruas e mais espaço para a natureza manifestar-se.

Acredito que não precisamos estar todos os dias nos centros comerciais, supermercados, fast food ou restaurantes consumindo compulsivamente.

Acredito em um tempo que exige mais convívio familiar, que ficou em segundo plano, pois pais, filhos e netos não tinham mais horas nos seus dias para estarem mais próximos, mais perto.

Acredito que somos o coletivo, e que sentimos igual aos nossos irmãos de todos os cantos do planeta, independente da cultura, raça, língua ou religião.

Acredito na exigência que a vida nos faz agora, nesse momento, para olharmos com mais cuidado e respeito para com a nossa saúde, atitudes e hábitos. E tornarmos mais solidários, preocupados, não só com o nosso bem estar, mas com quem está ao nosso lado.

Acredito que é necessário esse refúgio obrigatório para darmos mais valor à nossa liberdade de ir e vir, com mais calma, e com um olhar mais atento ao que nos cerca.

Acredito que a dor, o sentido de impermanência e ameaça, desperta em nós o que temos de mais humano: a solidariedade e o amor pelo próximo.

Acredito que isso vai passar. E que tudo vai mudar, para melhor. As nossas rotinas, as nossas atitudes, e como vamos administrar o nosso tempo.

Vamos perder sim, vamos sofrer, vamos ver o sofrimento alheio. Teremos privações para percebermos que nem tudo é essencial, e que podemos sobreviver com muito, muito pouco.

E olhando para aquele sol, quase escondido por uma nuvem, lembrei que no ano passado, estive uma semana com uma mochila nas costas fazendo o Caminho de Santiago, e que este ano estarei em casa, sem poder sair.

Fechei os olhos e resgatei aquela sensação de liberdade e lembrei a grande lição daqueles dias de caminhada, com bolhas nos pés e dor em todo o corpo: Seguir em frente.

Eu só tinha uma mochila nas costas e vivi os melhores dias da minha vida, estava leve, feliz e confiante. Determinada em superar todas as dificuldades, com coragem para enfrentar o desconhecido e muita fé para o que Deus havia me reservado no passo seguinte.

Levava apenas uma mochila, com pouca roupa e comida, partilhava conversas com desconhecidos e o sentimento solidário de estarmos na mesma situação. Caí e ajudaram-me a me levantar: um senhor peregrino italiano.

Seguia sozinha pelo desconhecido, no meio da estrada, no meio da floresta, dos campos, das aldeias, mas não me sentia solitária ou abandonada.

E sempre reencontrava os amigos e as pessoas nas paragens para descansar e confraternizar.

Levava em meu coração as pessoas que eu amava e as minhas boas lembranças. E a minha mente estava entregue apenas a observar e usufruir tudo o que eu podia reter daquele momento de tão grande aprendizado.

O sol me acompanhava e quando escondia-se eu o percebia por trás das nuvens.

Eu só tinha uma certeza, como tenho agora: tudo passa.

E tudo isso vai passar. No tempo certo, depois que todos nós aprendermos a nos olhar, olhar para a vida que nos cerca, olhar para o outro.

O planeta pede socorro, a vida pede socorro e no ar está o seu grito, o seu chamamento, o seu pedido.

É nossa responsabilidade pessoal e social cuidar de tudo isso e lembrarmos a cada instante que fazemos parte desse todo, que se chama humanidade.

O sol vai voltar a brilhar.

Adriana Mayrinck

5 comentários:

  1. Excelente texto Adriana, essa é e deve ser sempre a atitude ter, parabéns a vocês, enorme abraço.

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    1. Grata Alberto pelas palavras...Protejam-se! Abraços

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  2. Obrigada, Adriana! O teu testemunho fez-me bem. Também eu acredito que este tempo de prova deve ser aproveitado para pensarmos no essencial que faz a vida e aguardar com esperança por dias felizes, mais solidários, mais luminosos, em harmonia entre os seres vivos e o universo. Um grande abraço para ti.

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  3. Sim, também acredito em inúmeras transformações pelas quais passaremos a partir desse evento Encantada com seu belíssimo relato. Parabéns e gratidão pela partilha. 😍🙏

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