terça-feira, 31 de outubro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 112 - Emanuel Lomelino

Imagem fantarsya

Diário do absurdo e aleatório 

112

Licínio era um homem forte e imponente, quase um paralelepípedo maciço, que impunha medo e respeito só de olhar.

O temor que impunha fez com que todos os habitantes da sua aldeia natal fossem morar em aldeias vizinhas, só para não estarem sempre em sobressalto. Até o corcunda de Notre-Dame o superou em afecto recebido.

Perante esta circunstância, ele construiu uma gigantesca muralha em redor dos limites da aldeia, como quem aceita um exílio forçado.

As suas mãos, descomunalmente densas, assemelhavam-se a bigornas de ferreiro – alguns acreditam que eram feitas de aço temperado, outros juram que eram iguais às de Atlas.

A musculatura do seu corpo era tão definida que muitos garantem ter sido ele o modelo dos escultores renascentistas. Só que ele era duas vezes mais volumoso do que qualquer estátua conhecida.

As suas pernas pareciam troncos de sequoia milenar e os seus passos eram tão pesados que, mesmo em bicos de pés, abria crateras no chão que pisava.

Licínio era tão grande e assustador que, durante toda a sua existência, jamais alguém se aproximou dele. Talvez, por isso, o dia da sua morte seja desconhecido e ninguém consiga dizer, com propriedade e conhecimento de causa, se ele alguma vez foi feliz.

EMANUEL LOMELINO

segunda-feira, 30 de outubro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 111 - Emanuel Lomelino

Imagem do meu acervo pessoal

Diário do absurdo e aleatório 

111

Tirando da equação aqueles que lidam comigo há mais de duas décadas, a generalidade dos que conhecem o meu acervo só teve contacto com aquilo que escrevo a partir de 2008.

Os mais atentos e assíduos sabem, quase tão bem como eu, a evolução das minhas criações e conseguem identificar os períodos a que cada trabalho corresponde.

Foram várias etapas que ultrapassei com naturalidade e, sobre as quais, sempre soube explicar as motivações e os objectivos.

Com excepção dos dois primeiros livros, que reuniram composições escritas até 2010, logo, pertencem a uma fase embrionária, com alguma consciência autoral, mas sem grande apuro de conceitos, técnicas e sentido crítico, todos os outros são provas irrefutáveis de uma maior preocupação com o trabalho de sapa/bastidores (estudo de conceitos, aprimoramento de processos, exploração de novas técnicas, aplicação de diferentes métodos, estilos, géneros e, acima de tudo, desenvolvimento de espírito autocrítico) com o propósito de tornar mais evidente, pelo menos para mim, o grau de evolução da minha escrita, descobrir as minhas limitações criativas e encontrar a minha voz literária.

Hoje, reflectindo no caminho percorrido e nos trabalhos executados, chego à conclusão de que, entre erros e acertos, o balanço acaba por ser positivo e, livro após livro (contando os que, já estando prontos, ainda não viram a luz do dia), tenho conseguido alcançar o propósito maior que me move, enquanto autor: ser diferente em cada obra, isto é, nunca me repetir.

EMANUEL LOMELINO

Ilhas de paz (excerto 12) - Glória Gomes

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Contrário das ajudas, o empreendedorismo é o motor sólido do desenvolvimento, da prosperidade e da melhoria do nível de vida de qualquer comunidade. A qualidade da educação dada aos nossos pais e avós que os transformaram num simples mortal, vivendo marginalmente sob o trabalho escravo, com o conhecimento que só os ajudam a sobreviver, raspando os escombros de uma terra íngreme sob o sol escaldante com a força dos seus próprios braços, dia após dia, e esperando ansiosamente que a chuva chegue, as colheitas cresçam e um ano agrícola possivelmente abundante. Vivemos à sombra de uma realidade cuja falta de recursos explora a boa vontade do nosso povo, o bem-estar e o desejo em deter o que nunca possuímos. Uma grande nação de pessoas, mas com todas as limitações possíveis.

EM - ILHAS DE PAZ NUM MAR DE TORMENTO - GLÓRIA GOMES - IN-FINITA

domingo, 29 de outubro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 110 - Emanuel Lomelino

Imagem infoescola

Diário do absurdo e aleatório 

110

Tibério olhou a paisagem e decidiu que aquele era um bom lugar para descansar. Encostou a mochila na base de uma oliveira, descalçou as botas, que lhe vinham torturando os passos, tirou as meias rubras de sangue e mergulhou os pés macerados no pequeno e cristalino ribeiro, deixando que a correnteza lhe limpasse as feridas.

Suportou o doloroso incómodo sem perceber se a dor sentida era provocada pela temperatura, quase gelada, da água ou pelo contínuo toque do líquido nas inúmeras chagas abertas.

Tentou abstrair-se das moléstias centrando a sua atenção no vale que se estendia diante dos seus olhos. Lá, bem ao longe, ainda vislumbrava a pequena vila onde estivera, pela manhã, na intensão de comprar alguns mantimentos, mas cuja carga energética fez com que apenas a atravessasse, como quem foge de uma alcateia faminta. Desde o primeiro instante, sentiu que não era bem-vindo. Os olhares inexpressivos de todos - das crianças pequenas até aos velhotes enrugados - eram aguçadamente mais ameaçadores do que o tráfico veloz de uma autoestrada movimentada. Tibério sentiu que, a qualquer momento, podia ser abalroado pela fúria explosiva que esses rostos tinham, mas escondiam.

Tal como sucedera, dois meses antes, quando decidiu abandonar toda a sua vida na grande metrópole, para não ser contaminado pela idiotice dos pensamentos modernos, também a fuga da pequena vila o fez reflectir na sua postura. Ainda não conseguia entender se estava a ser fraco ou audaz porque não sabia identificar a ténue linha que separa a covardia da coragem.

A única certeza de Tibério era não ter forças, nem espírito, para enfrentar a mentalidade mentecapta das novas gerações que, na escassez de argumentos lógicos e válidos, tentam impor, através do confronto físico, as suas revoluções ideológicas. São moralistas sem moral (manifestam-se, despidos, contra a nudez de estátuas); idealistas sem ideias (são desocupados a lutar em favor do ócio); são incoerentes nas suas redundâncias (querem um modo de vida ambientalista, sem extração de minério nem combustíveis fósseis, mas não abdicam dos seus telemóveis de quartzo, gálio, lítio, tântalo, tungsténio, entre outros minerais, tampouco abdicam de usar poliéster sintético, acrílico e spandex nas suas tendas de campanha).

No meio dos seus pensamentos, Tibério deu conta de estar a ser observado, do outro lado do ribeiro, por uma lebre. No momento que os olhos de ambos se cruzam, o pequeno animal moveu a cabeça, que o humano entendeu como um gesto de aprovação.

Hoje, Tibério é um eremita, completamente afastado do mundo moderno e, ao contrário dos contestatários de fachada, vive a sua noção de sustentabilidade sem impor, seja o que for. Aprendeu que medo e valentia andam de mãos dadas, e um acto corajoso vindo de um cobarde ou demonstração de fraqueza de um bravo têm o mesmo valor.

EMANUEL LOMELINO

sábado, 28 de outubro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 109 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

109

Pensar os nossos dias é, mais do que um exercício de decifração de comportamentos, um calvário emocional – esgotante, inócuo e sem sentido – tantas são as incongruências, desvios e variantes surreais (para não dizer idiotas).

Por mais que tente dissertar nesta temática, os pensamentos saem-me mais absurdos do que usar barbatanas na Serra da Estrela; esvaziar piscinas com vassouras; ou fazer a maratona de costas e colocar caril em pudim de leite.

Por mais teorias físicas ou gramaticais que encontre, nenhuma tem aplicação lógica na inversão de polaridades e sinergias apáticas que grassam neste tempo, preocupantemente disforme.

Por mais que insista em encontrar uma hipótese filosófica da modernidade, acabo sempre por ser inundado pelo ócio sem conseguir escrever umas quantas linhas a respeito.

Então, nas vésperas da loucura, sacudo a cabeça, louvo a minha laicidade e besunto o corpo com álcool para confirmar a existência de matéria corpórea.

No que concerne à racionalidade… apenas descubro que até eu a perdi.

EMANUEL LOMELINO

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 108 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

108

Entendo a aversão aos dicionários. Há quem se intimide com a volumetria desses compêndios.

Entendo o desinteresse na definição das palavras. Há quem prefira usar os termos mais básicos da linguagem.

Aquilo que eu não entendo é a incapacidade que muitos têm no momento de usar o bom-senso. Porque há palavras cujas definições não são essenciais para saber aplicar o conceito base.

Dou como exemplo a gratidão (e o seu oposto – ingratidão).

A gratidão é um sentimento que enobrece quem demonstra reconhecimento por uma ajuda, um conselho, um ombro amigo.

Um ingrato é aquele que tenta ficar com os louros de algo (uma acção, atitude, proeza) sem reconhecer o auxílio que teve ou a ajuda que lhe foi prestada, para alcançar esse sucesso.

O problema surge quando aquele que presta auxílio pensa que o seu acto merece gratidão eterna e o “ajudado” deve retribuir sempre que for solicitado, e nas condições ditadas pelo “bom samaritano”. Caso não o faça passa a ser considerado ingrato.

A gratidão deve existir na forma como vem definida nos compêndios volumosos: reconhecimento pelo benefício que a acção de outrem nos outorga.

Peço desculpa pela objecção que deixo aqui, mas a verdade é que a gratidão não é como uma dívida bancária que é paga durante toda a vida e com juros de mora.

EMANUEL LOMELINO

O novo elemento (excerto) - Filomena Silva

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Sol, calor, praia, rio, tardes longas a brincar, deitar tarde, pois tarde se podia levantar.
Em férias os meninos ficam felizes, porque não é preciso ir às aulas. Não é preciso saltar da cama de madrugada, ao som do despertador, rodeados de crescidos mal dispostos, mal acordados, mas mesmo assim cheios de pressa.
Não é preciso estar horas, quietos na sala de aula. Nem é preciso, quando chegam a casa cheios de preguiça e exaustos de tanta coisa nova que aprenderam, serem conscienciosos e fazerem os célebres trabalhos de casa. Nem sequer é preciso irem para a cama depois de banho tomado e jantar arrumado. Tal como não é necessário comerem as refeições a horas certas. Podem levantar-se tarde. Podem ficar acordados até mais tarde ainda.

EM - DAS RAÍZES AO CÉU - FILOMENA SILVA - IN-FINITA

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 107 - Emanuel Lomelino

Imagem jmadeira

Diário do absurdo e aleatório 

107

Não preciso molhar-me na fúria desta chuva madrugadora para conseguir dissertar sobre a impermeabilidade que me escasseia.

Cada gota que desliza da nebulosidade do céu negro para abater-se sobre mim, com a ferocidade tropical de todas as tempestades, apenas cumpre o seu destino - e o meu.

Gotícula a gotícula, de mãos dadas com a liquidez desconfortável, transformo-me num leito de rio cujas correntezas percorrem de nascente à foz, sem resistência de dique ou barragem.

Inundo-me desde as margens até ao âmago em cascatas incessantes de rebeldia, qual desfiladeiro íngreme com protuberâncias escorregadias.

No centro do dilúvio, sou como um navio sem leme nem rumo, e o vento – irregular como só ele – não me permite mais do que andar, trémulo, à deriva.

Depois, como uma criança inocente, mas travessa, o céu afasta as nuvens e sorri um arco-íris, sem remorso por ter lançado toneladas de água sobre este pobre coitado que apenas saiu à rua para ir trabalhar, num sábado, e agora vai gastar os ganhos de um dia em paracetamol.

EMANUEL LOMELINO

Emma Everston (excerto 18) - Ernesto Moamba

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Minutos depois, formados em grupos de três pessoas, resolveram sair pelos arredores da floresta em sua busca. Exceto Lunna que haviam incumbido da missão de ficar de guarda no interior da casa. Já estava escuro, o céu tão pouco emitia luz e o telhado de nuvens aparentava-se meio sombrio, com alguns traços de sangue coberto de névoa. No interior da floresta a escuridão arrepiava até os fios de cabelos e o temor da morte irreversivelmente penetrava nos poros da pele, até aos fundos da carne consumada pelo medo. Percorrer alguns hectares e chegar ao destino sem passar por cima de um cadáver desfigurado era meio impossível, a ilha de Inhaca estava toda cercada de monstros.

EM - EMMA EVERSTON, A UNIVERSITÁRIA DA CIDADE DE SANGUE - ERNESTO MOAMBA - IN-FINITA

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 106 - Emanuel Lomelino

Imagem neuroblog

Diário do absurdo e aleatório 

106

Quem me lê sabe que faço muitos exercícios de escrita. Através deles consigo aperfeiçoar a minha técnica, por vezes deficitária.

Invento desafios para descobrir a melhor abordagem para cada tema. Também uso estes artifícios como forma de testar o vocabulário. Não existe nada mais nefasto numa frase que palavras repetidas. E o mesmo pode ser aplicado a um texto curto. Por essa razão é importante estudar as diversas opções disponíveis. Às vezes aplicar um bom sinónimo pode enriquecer uma ideia. E quem diz sinónimos pode dizer antónimos, adjectivos, substantivos, advérbios.

Sei, por experiência própria, que exercitar a escrita é útil. Quem o faz ganha fluidez de discurso e espontaneidade criativa. Com o treino, o cérebro reage com rapidez e prontidão. Como diz o velho adágio: a prática faz o mestre.

Não sou de aconselhar, mas posso partilhar a minha experiência. E como sempre, uso este exercício para comprovar a teoria.

Decidi escrever sobre esta temática da forma mais ligeira possível. Creio que consegui emprestar coerência e ritmo a este texto. As frases são curtas, mas de entendimento fácil e escorreito. Foram criadas e desenvolvidas para surpreender cada um dos leitores. Pelo menos aqueles com disposição para analisar todas as frases. É que, todas elas, foram construídas, propositadamente, com dez palavras.

EMANUEL LOMELINO

Ilhas de paz (excerto 11) - Glória Gomes

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Ainda no reverso desta mesma moeda, não somos capazes de serem fornecedores destes hotéis, divido a nossa capacidade produtiva interna extremamente limitada. Limitado proveito do chamado fator multiplicador. Muitas vezes, os países ricos são mais capazes de lucrar com o turismo do que os pobres. Considerando os países menos desenvolvidos com a necessidade mais urgente da renda, emprego e aumento geral do padrão de vida por meio do turismo, eles são menos capazes de obter esses benefícios. Entre as razões para isso, estão a transferência em larga escala das receitas do turismo para fora do país anfitrião e exclusão de empresas e produtos locais.

EM - ILHAS DE PAZ NUM MAR DE TORMENTO - GLÓRIA GOMES - IN-FINITA

terça-feira, 24 de outubro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 105 - Emanuel Lomelino

Imagem conceitos

Diário do absurdo e aleatório 

105

Mais do que direito adquirido, escrever é um dever que poucos assumem. Uns por preguiça, outros por ignorância. A maioria recusa a responsabilidade, a minoria acredita que a escrita deve cingir-se aos pensadores, filósofos, doutrinados e eruditos. Boa parte escreve apenas porque sim, a outra parte, espartilhada entre crenças e rivalidades, contesta tudo o que se escreve, qual oposição sem programa alternativo.

Escrever é a liberdade do pensamento, mas alguns “seres iluminados” advogam que a escrita só o é se for feita de acordo com os novos cânones e, por consequência, com a negação dos anteriores. Exigem que se eliminem todos os conceitos, regras e definições do passado, que acreditam ser agrilhoadores da criatividade, e impõem a permissividade restrita dos seus valores literários. Estes sábios da contemporaneidade, quais profetas da verdade absoluta, pensam a escrita de acordo com as fraquezas das suas próprias limitações. Estes censores da modernice, quais escravos das tendências anti autoridade, querem que a escrita se resuma à incoerência das suas crendices anti regras.

Aos arautos dos paradigmas elitistas, eu digo: Mentis! A arte é democrática! Não tem cor, sexo, idade, cultura, religião, política padrão, nem corrente estética ou estilística.

Aos negacionistas do legado que todos carregamos, eu digo: Mentis! A arte de hoje só existe, como é e se molda, porque o passado é o somatório de todas as correntes que nos conduziram até aqui.

Aos génios do desgoverno, eu digo: Mentis! A arte sempre terá regras, mesmo que não sigamos as normas clássicas ou doutrinas pré-existentes, porque até o vosso anarquismo é, por si só, uma regra que vos exige serem contra todas as outras regras.

EMANUEL LOMELINO

segunda-feira, 23 de outubro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 104 - Emanuel Lomelino

Imagem pinterest

Diário do absurdo e aleatório 

104

No outro dia ouvi alguém dizer que a matemática não é uma ciência, mas sim uma ferramenta ao serviço de várias ciências. Pensei no assunto e consegui ver a lógica desse raciocínio.

O problema é que não fiquei por essa simples reflexão e continuei a pensar nos conceitos dogmáticos que esta disciplina encerra e cheguei a outra conclusão. Ao contrário do que me ensinaram, a matemática é tudo menos exacta.

Vejamos.

Eu sou um (número inteiro), no entanto, na maioria das vezes sou apenas fracções de mim, raramente completo. Assim sendo, como posso ser, em simultâneo, um e decimal de mim?

Atentando mais fundo na questão, tendo sempre presente que sou um, como se explica, matematicamente, aquilo que sou quando me divido (ou multiplico) ao longo de um dia de trabalho? O mesmo poderia perguntar pelas vezes que me somo ou subtraio.

Ao detectar estas incongruências, a confusão adensou-se porque fiquei a saber que sou um zero nesta matéria. Mas como? Se zero não é número inteiro e, à partida, sou um? Será que um pode ser todas essas coisas, inclusive algarismo aditivo ou fracção? Pode o um ser um número nulo?

Se houver por aí um matemático de serviço, agradeço desde já que não me esclareça estas dúvidas porque a febre já passou.

EMANUEL LOMELINO

domingo, 22 de outubro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 103 - Emanuel Lomelino

Imagem pinterest

Diário do absurdo e aleatório 

103

Há um aqueduto de frases por escrever entre as areias do Hudson e as praias vicentinas.

Os verbos correm ferventes desde as encostas do Corno dos Romanos até à mais recôndita ilhota do Pacífico.

Os adjectivos viajam desde as grutas que nunca foram de Salomão até às cidades perdidas na tropical Amazónia.

Cada substantivo percorre as planícies subsarianas rumo aos planaltos Tártaros.

Existem estepes de versos inovadores, entre as tundras escandinavas e os pomares nipónicos, com ânsia de nascerem virados para as águas santas do Ganges, mas idolatrando as correntes de Yangtzé.

Há complementos empalados nas calotas polares, em ambos os hemisférios, só a aguardar o degelo para irem em busca de Everestes sujeitos e predicados.

Existem virgulas a bolinar ventos alísios (algumas de pontos às costas), com o mesmo ímpeto que as reticências cavalgam as dunas do Saara, em busca de dois pontos, parágrafos e travessões.

As ondas do Índico são tiles disfarçados, por não quererem ser vistos na companhia dos apreensivos circunflexos. Assim como os graves só querem ver os agudos pelas costas.

As interrogações não são mais do que exclamações vergadas ao peso de múltiplas dúvidas sugeridas pelas irrequietas marés lunares.

E assim se juntam dois mundos numa chuva descritiva cheia de figuras de estilo e com o epílogo esperado (ponto final).

EMANUEL LOMELINO

soletra um verso, lavra a melodia (excerto) - Monique Lima

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Viver em sociedade é um grande desafio para todas as pessoas. Uma vez, rompeu um cano d’água na rua onde eu morava: os cães faziam festa e as crianças iam junto aos cães na algazarra, os gatos miravam curiosos dos telhados e as pessoas mais velhas reclamavam prevendo o futuro. Elas conseguiam ver que aquele rompimento impediria a água de alcançar as casas, caso o problema não fosse resolvido imediatamente.
Eu era criança, a rua era de barro e eu não gostava de usar uniforme escolar. Com aquela lama toda de três dias de rompimento, não tinha roupa que não ficasse amarelada e avermelhada. Quase quatro dias depois, fecharam o duto, mas a água continuou jorrando e passou a ter um aspecto mais denso. Eu não sabia o que significava a palavra “densa” quando eu era criança – ainda bem que a gente aprende! Quando eu era menor, o meu cabelo era um pompom, eu era rechonchuda e bochechuda, tinha dentes de leite e andava pela casa apoiando nos móveis e pronunciando, sem intervalos, as palavras que eu conhecia, as mais familiares, as que todo mundo sabe e que podem parecer de difícil entendimento para as pessoas que não vivem junto.

EM - ELAS E AS LETRAS: SEMENTE, PRESENTE - UM LIVRO PARA MARIELLE FRANCO - COLETÂNEA - IN-FINITA

Setembro chegou (excerto) - Filomena Silva

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Setembro instalado, mochila e livros escolares novos, encapados divinalmente para não se danificarem.
Era chegada a hora de roupas novas comprar, as que tinha já ficavam apertadinhas, pequeninas.
Adorava sentir farrapinhos novos sobre o seu corpinho.
Devagar, devagarinho se foi preparando para um novo ano letivo.
O dia de arranque chegou e com ele a euforia de rever colegas e conhecer a professora que o acompanharia ao longo do seu terceiro ano escolar.
Entusiasmado regressava com muita coisa para contar. Exigia atenção, tempo para tudo falar a partir da gestualidade. Nem sempre era possível aos pais estarem focados apenas o que ele queria contar, facto esse que nervosismo lhe causava.

EM - DAS RAÍZES AO CÉU - FILOMENA SILVA - IN-FINITA

sábado, 21 de outubro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 102 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

102

A augusta Casa dos Altivos Artífices do Sétimo Saber Consagrado convoca todos os órgãos de informação competentes para a Gala Anual dos Credenciados Anónimos Voluntários que irá realizar-se em espaço, dia e hora e designar, na esperança de conseguir, em tempo útil, recolher a verba necessária para liquidar os valores propostos, em caderno de encargos, para aquisição de dois contentores de fogo de artifício, duzentos metros de passadeira vermelha, quinhentos cadeirões manuelinos, três mil velas de sebo envelhecido em casta milenar e um vaso de flores sazonais, com dimensão ainda por determinar.

Com o referido certame, pretende-se celebrar as alcoviteiras do Jardim Constantino, os cangalheiros da praia de Carcavelos, as divas de São Sebastião, os ciciosos de Mata-Cães e as jovens promessas do núcleo de perfumistas azeiteiros da Abóbada Celeste.

A todos os participantes serão entregues certificados de presença e mérito, além de coroas de louro, personalizadas, e um porta-chaves alusivo à efeméride.

Se sobrar dinheiro, contamos requisitar os serviços dos gaiteiros de Milfontes que, caso aceitem, brindarão todos os presentes com uma sinfonia de acordes à moda de Viena ou, em alternativa, um fandango albicastrense.

A todos os convidados será solicitado traje de gala, que pode ser adquirido nas nossas instalações até dois dias antes do evento. O uso de chapéu é facultativo e os sapatos não podem ser rasos.

Este será o primeiro de muitos encontros previstos. A seu tempo honraremos os percursos dos gagos assobiadores de andaime, as costureiras de corta casaca à tesourada e os arquivistas de manuscritos da Biblioteca que vai ser construída nos antigos terrenos da Feira Popular.

Informamos que o acesso pode ser feito através de qualquer meio de transporte, com excepção dos aéreos porque é muito difícil encontrar um espaço com heliporto.

EMANUEL LOMELINO

Emma Everston (excerto 17) - Ernesto Moamba

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Mas o assassino mostrou-se cada vez mais frio, cruel e intensamente covarde. Torturou-a furiosamente, como se não a conhecesse, e de uma forma extremamente selvagem.
– Vadia, pode gritar o quanto quiser, mas hoje você não sairá viva daqui. – confirmou o psicopata do assassino enquanto lhe arrancava a pele com lâmina bem afiada e obrigando-a a engolir como se fosse um porco desamparado e faminto. Cada vez que a lâmina lhe penetrava a carne, mais dor ela sentia ao ponto de implorar que este adiantasse sua morte, pois para a vítima, no momento, a dor era mais forte do que a morte.
Duas horas depois, Emma, farta de tanta tortura, ensanguentada e amortalhada, começou a deixar escorrer pela boca o rubro vicioso das emacias de sangue sobre as curvas da carpete que enfeitava a cabana, onde agora estava refém.

EM - EMMA EVERSTON, A UNIVERSITÁRIA DA CIDADE DE SANGUE - ERNESTO MOAMBA - IN-FINITA

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 101 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

101

Há quem acredite no altruísmo das palavras, mas só um incauto pode perspectivar bondade numa conjugação verbal que impõe em vez de sugerir ou, quanto muito, ordena no lugar de colocar à consideração.

Até as pedras, sejam de calcário ou basalto, conseguem transmitir mais leveza do que os discursos militarizados, mesmo ao som de polcas e corridinhos, feitos à medida dos substitutos dos tubos catódicos.

Deixou de existir temperança e vergonha nas faces artificialmente bronzeadas porque o Zé do Manguito continua a preferir sopas e descanso em vez que tirar os suspensórios e mostrar o Judas arranhado.

Havendo música, couratos assados e uma reles esferográfica timbrada, aparecem logo magotes de desocupados intelectuais predispostos a agitarem bandeiras e bandeirolas ao vento carvoeiro, enquanto os copos não secam a cevada quente.

O despertar vem depois, quando os mesmos fidalgos movidos a rancho folclórico, descobrem que, afinal, a caridade é um caça-níqueis faminto e sem escrúpulos, e resolvem lançar outras bandeiras ao vento, soltar verbos pedintes e arrastar as carcaças pálidas no meio da urbe de cintos apertados, como fossem todos sócios-fundadores da liga dos revoltados surpreendidos, mas sem cotas pagas e com o tempo caducado.

EMANUEL LOMELINO

Ilhas de paz (excerto 10) - Glória Gomes

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Diz-se que o caminho para o inferno da segurança é pavimentado com boas intenções. Os grandes investimentos que nos chegam de longe traz a esperança estampada na cara, mas que na realidade são um inferno psicológico e emocional de muitos. Descartam nos como objetos, não querem saber do nosso valor emocional e muito menos do nosso viver ou da nossa cultura. Em bom estado de uso, serve, esta quebrada ou com falhas é simplesmente substituído. De corpo quebrado e bolso vazio, mas não desistam. O uso indecente da contratação a curto prazo de mão de obra para satisfazer as necessidades permanentes das instituições em troca de baixos salários para despir os trabalhadores de qualquer direitos e vínculos também se aplica. A precariedade de muitos em troca de lucros de poucos é lastimável e deveria ser punida de uma forma severa com indemnizações e grandes sanções.

EM - ILHAS DE PAZ NUM MAR DE TORMENTO - GLÓRIA GOMES - IN-FINITA

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 100 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

100

Não existe melhor forma de exercer a individualidade plena, sem cair no descrédito de confundir o seu significado, do que a arte de pensar, e desta premissa nasceram todas as preciosas definições de liberdade, mas também alguns enganos – porque nem todos os filhos do pensamento são sensatos.

Há aqueles que renegam, mais de três vezes, a equidade e preferem as pirâmides (mesmo invertidas) em detrimento de linhas rectas (mesmo paralelas).

Esses podem ser identificados pelo som elevado das suas vozes argumentativas, pois, acreditam na imposição e nos dogmas, e desconhecem o que significa pluralidade e livre-arbítrio.

Depois temos os que desconhecem que os pensamentos podem ser como o ferro forjado e que, quando nas mãos de um bom artesão, podem transformar-se em autênticas preciosidades, mas, quando molhados pela ignorância ou preguiça, também enferrujam. E um pensamento enferrujado, por mais forte que pareça, facilmente é quebrado.

EMANUEL LOMELINO

quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 99 - Emanuel Lomelino

Imagem publico

Diário do absurdo e aleatório 

99

Não se pode ter horror da morte sem a experimentar. Não se deve ter pânico da morte por desconhecimento. Sabendo da sua existência, e tendo a consciência tranquila, não é lógico temê-la.

Não se podem recear as mordidas dos necrófagos nem o triturar dos ossos pelas suas potentes dentadas. Não se deve ter pavor do desmembramento que fazem, na hora de devorar os corpos inertes e sem vida.

Não sei nada sobre a morte, para além do seu carácter definitivo. Por isso não lhe tenho medo.

Sei que Lavoisier tinha razão quando disse: …Na natureza nada se perde, tudo se transforma, por isso tampouco temo os necrófagos.

Aquilo que me faz transpirar a espinha, arrepiar os ossos e descrer da justiça divina, são os abutres. Esses têm o dom de cheirar, à distância, o sangue dos golpes recentes e, sem esperarem a morte, estão sempre prontos para aproveitarem as fragilidades e alimentarem-se das feridas ainda por cicatrizar.

EMANUEL LOMELINO

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 98 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

98

Apesar de ser fiel, até ao tutano, às ideias que acredito serem certas, acho que nunca me levei muito a sério.

As máximas, que assumo como minhas, são apenas isso: minhas. Sigo-as por inteiro, defendo-as do meu jeito, aplico-as a tudo o que faço e digo, sem as impor além de mim.

Não sei explicar de onde surgiu esta necessidade - quase obrigação - de reduzir ao mínimo residual o valor daquilo que defendo, como fosse desinteressante e apenas aplicável a mim.

Contudo, apesar de ter as tonalidades do descrédito pessoal ou falta de autoestima, a verdade é mais suave: é a minha forma de provar que não sou mais que ninguém. Sou apenas eu, ponto.

Este sempre me pareceu mais um dos muitos paradoxos que me definem, no entanto, quanto mais tempo passa por mim mais me identifico com a perspectiva de estar perante a veracidade do conceito.

Este egoísmo declarado é a fonte do paradoxo: porque todos os outros levam-se tão a sério que tentam impor as suas normas ao demais, enquanto eu, limito-me a querer ser a ovelha negra do rebanho e apenas responsável por tudo o que advém de mim.

EMANUEL LOMELINO