sábado, 14 de dezembro de 2024
O princípio do mundo (excerto 15) - Jorge Chichorro Rodrigues
sexta-feira, 13 de dezembro de 2024
Lomelinices 59 - Emanuel Lomelino
Lomelinices
59
Quando visto o uniforme para garimpar o que sou, olho-me ao espelho e louvo os traços que o tempo vincou no meu rosto, com a maestria que só ele possui.
Vejo minuciosamente, de lupa em riste, e não detecto ruga mal colocada, ou nascida sem razão. Todas se explicam, e aplicam, na minha essência, como um traje feito à medida, por encomenda.
Na aspereza natural da derme curtida, destacam-se algumas cicatrizes merecidas, outras tantas por negligência, mais algumas que, embora saradas, ainda tem memória dolorida.
Então, tento lembrar-me das minhas feições imberbes, como quem se entrega à tarefa de descobrir as diferenças, porque todas as fotos deixaram de estar em exposição quando foram colocadas nos álbuns do esquecimento. Nenhuma escapou à crueldade do engavetamento, não fosse alguma lembrar-se de ganhar vida e azucrinar, com feitio igual ao meu, o dia-a-dia de alguém.
E assim, quase sem traços visíveis da aparência anterior, mas honrado pelo desenho do tempo, caminho de cabeça erguida mostrando ao mundo a prata que a vida me vem outorgando.
EMANUEL LOMELINO
Prisioneira em liberdade (excerto 9) - Maria Antonieta Oliveira
quinta-feira, 12 de dezembro de 2024
Lomelinices 58 - Emanuel Lomelino
Lomelinices
58
Estou grato aos céus por ser filho de uma divindade menor – assim nomeada porque Zeus estava afogado em hidromel cítrico, logo, com as capacidades cognitivas alcoolicamente desvirtuadas – e por isso ter nascido sem a presunção de ser mais do que aquilo que realmente sou.
Não me autonomeio coisa alguma e sempre resistirei aos cognomes que muitos ostentam como medalhas imerecidas – para não dizer heréticas.
Percorro os caminhos que me traço sem pretensão de pisar tapetes urdidos para desfile de vaidades sensaboronas e sem motivo de existência. Recuso dar passos nas calçadas da visibilidade ganha pelo metal, nem quero trajar-me com fardas de cetim fabricado nos cárceres da aceitação.
Sou filho de um deus menor e tudo o que faço, digo, penso e escrevo é fruto dessa minha reduzida dimensão e iluminado pelas ténues luzes de um estro diminuto, quase invisível, por incompatibilidade entre a natureza que me formou e a fama que não me merece.
EMANUEL LOMELINO
A dúvida (excerto 3) - Zélia Alves
quarta-feira, 11 de dezembro de 2024
Lomelinices 57 - Emanuel Lomelino
Lomelinices
57
Volta e meia deparo-me com momentos de feroz lassidão – como agora – em que sou inundado por uma chuva de memórias entrelaçadas, de tempos cruzados sem cronologia, de sangramentos, de glória, de lágrimas, de risos, de luto, de paz, de erupção, de anseios…
São períodos breves, mas intensos, que desgastam o ânimo até à fronteira da vulnerabilidade. Um cansaço indescritível apodera-se do espírito e do corpóreo, com a mesma violência irrespirável.
São instantes esparsos, contudo, paridos pelo eterno dilema entre o uso da resiliência e a vontade de prescindir. A mente transforma-se num fórum e os argumentos jorram, com fúria combativa, criando um caos híbrido que deambula entre o desejo e a razão.
Nessas alturas – como agora – procuro refúgio na sabedoria clássica e entrego-me aos pensamentos de Schopenhauer, Púchkin, Nietzsche, Sá-Carneiro, Pessoa… para descobrir, na pele e com assombro, que a vida é como uma viagem de comboio e cada encontro é um apeadeiro.
EMANUEL LOMELINO
terça-feira, 10 de dezembro de 2024
Pensamentos literários 7 - Emanuel Lomelino
Pensamentos literários
7
Não sei dizer se o obscurantismo das letras actuais é passageiro, como um fenómeno ondulante que se desintegrará nas areias do tempo, ou se, pelo contrário, é uma prática lúcida com desejo de tornar-se uma rotina permanente.
Para onde se olha, e até onde a vista alcança, pouco se vislumbra para além de penumbra. As palavras vestem-se de breu como se alguém, de forma consciente e deliberada, quisesse ofuscar o brilho das narrativas, fazendo imperar as definições mais negras de um qualquer dicionário apocalíptico.
Queiram os deuses que seja apenas uma tendência esporádica de protagonismo, sem ambições ditatoriais nem cobiça déspota.
Seja como for, este culto incessante de idolatria ao expressionismo sombrio faz-me indagar: Existem assim tantos adoradores de Nix?
EMANUEL LOMELINO
segunda-feira, 9 de dezembro de 2024
Lomelinices 56 - Emanuel Lomelino
Lomelinices
56
Converti as mãos em peneiras e deixei tombar, pelos caminhos trilhados, todos os grãos de ânimo que, misturados com o cimento da vontade, serviriam para fortificar os meus passos calculados e de rumo certo.
Os objectivos lúcidos amoleceram com o impacto das tempestades sem senso e, aos poucos, de forma camuflada e impiedosa, evaporaram-se sem deixar rasto.
A caminhada não terminou, mas os propósitos abraçaram a caducidade não deixando terra suficientemente fértil para que outras raízes germinem nem para que a determinação ganhe fôlego renovado.
A velha máxima “nada se perde, tudo se transforma” nunca foi tão pungente e, apesar da miopia destes meus olhos falhos, dei por mim a enxergar tudo com uma clareza tão pura quanto reveladora. Há quem lhe chame epifania. Eu prefiro dizer que despertei.
EMANUEL LOMELINO
O princípio do mundo (excerto 14) - Jorge Chichorro Rodrigues
domingo, 8 de dezembro de 2024
Lomelinices 55 - Emanuel Lomelino
Lomelinices
55
Dizem os sábios mais velhos que a verdadeira honestidade é exclusiva do mar. Segundo a experiência destes anciãos sem idade, não há elemento da natureza mais fiel a si mesmo, em todos os seus estados, formas e geometrias, independentemente de meridianos ou paralelos; latitudes ou longitudes; pontos cardeais ou hemisférios.
A sua essência mantém-se inalterada quer se evapore, solidifique ou liquefaça. Manifesta-se sem artimanhas nem engodos, tampouco escangalha de véspera nem reclama o que não lhe pertence porque é força dominante que responde apenas por si, nos seus domínios.
Mas, apesar de todas estas características
íntegras, é no cheiro que a honestidade é mais flagrante. Ao contrário de
outros elementos (fogo, terra e ar) que exibem odores emprestados, o mar exala
somente o seu perfume de encanto (maresia) com que nos enfeitiça, sem truques
ou ultrajes.
EMANUEL LOMELINO
Prisioneira em liberdade (excerto 8) - Maria Antonieta Oliveira
sábado, 7 de dezembro de 2024
Lomelinices 54 - Emanuel Lomelino
Lomelinices
54
A vida reinventa-se a cada alvorada. Os dias correm lentos ou céleres, dependendo dos humores, ócios e tédios que devoram as horas. Todos os instantes, por mais díspares que se apresentem, rumam no mesmo sentido, como fossem de via única.
Os pensamentos sucedem-se em turbilhões, ou a conta gotas, sempre sujeitos às dispersões, ou falta delas, para que o marasmo se ausente. Cada momento é único, por mais repetitivo que possa parecer.
A labuta diária é executada a diversos níveis e com múltiplos desafios que levantam ou derrubam o ânimo. Há expedientes e artimanhas que ajudam a ultrapassar tempos mortos que perturbam as ânsias e originam inquietações.
Só o crepúsculo carrega sossego nos ombros e a paz de um sono justo e contínuo, porque até os Espartanos merecem repousar das batalhas diárias, mesmo sabendo que as forças restituídas nos poços de todas as noites esfumam-se nos sufocos que a luminosidade transporta.
Por tudo isto, logo pela manhã, há um obtuso, febril, mas sincero, desejo de fechar os olhos e transformar cada minuto em descanso noturno, porque os sonhos são mais gentis do que a realidade.
EMANUEL LOMELINO
A dúvida (excerto 2) - Zélia Alves
sexta-feira, 6 de dezembro de 2024
Epístolas sem retorno 22 - Emanuel Lomelino
Permita-me, prezado Fiódor Mikhailovich, que simplesmente não o trate por Micha. Sei que reconheceria a gentileza do trato, mas, creia-me justo, fazê-lo seria usar da mesma intimidade impostora que o meu tempo sustenta, renegando os valores fundamentais dos ideais que se professam, como se a incoerência fosse virtude e a franqueza um pecado capital.
A consciência, nestes meus dias, estimado Fiódor Mikhailovich, há muito deixou de ser definida nos exactos termos etimológicos, que tanto explorou na vasta riqueza da sua obra. Atrevo-me mesmo a sentenciar, sempre com o seu consentimento, que ela – consciência – evaporou-se ao longo do tempo, como gotas de água num deserto escaldante, tal a profusão de actos prepotentes, praticados em nome das revoluções mais ociosas, e sem sentido, que nem o seu elevado intelecto ousaria considerar.
Por isso, amigo Fiódor Mikhailovich, aviso-o desde já que prefiro ficar, hora e meia do meu dia de sã loucura, retido na solidão de uma cozinha, a confecionar legumes de caril, do que perder tempo a ler as idiotas bajulações da modernidade, entre indivíduos que, apesar de pertencerem à nossa espécie, vendem-se como se castanhas piladas fossem raras pepitas de máximo quilate, desconhecendo que esse grau de pureza é incompatível com joalharia.
Este novo paradigma, meu caro Fiódor Mikhailovich, é tão complexo e paradoxal que, aos seus olhos, ouvidos e inteligência, as minhas palavras soarão aos discursos de um dos seus mais famosos personagens. Quem, senão um perfeito idiota, pode conceber que se outorguem falsos epítetos em nome de um conceito igualitário, mas alicerçado no individualismo egoísta, sem consciência da vulgaridade?
Hoje, Fiódor Mikhailovich, a verdade não vem nos dicionários. Talvez, nem nos livros de culinária.
Com estima,
Emanuel Lomelino
quinta-feira, 5 de dezembro de 2024
Contos que nada contam 34 (Entre migalhas) - Emanuel Lomelino
Entre migalhas
A passo lento, Rómulo pisa a calçada, ainda húmida do orvalho matinal, como quem tem uma pedra no sapato e as meias encharcadas.
No rosto, carcomido pela insónia, leva estampada uma história de tormentas cosidas a desencontros e linhas tortas. No canto do olho, como em todos os dias amargos, carrega o reflexo de lágrimas por libertar, que nem a cacimba é capaz de disfarçar.
O manto puído dá-lhe o poder da invisibilidade perante a turba que se acumula junto ao semáforo, sem tempo para olhar o mundo tal qual ele se apresenta.
Ao ronco das entranhas, Rómulo responde colocando a sua mão boa – a que tem menos escaras vivas – no que resta do bolso direito. Saca a côdea do desafogo das últimas semanas e, com a prática de um golpe de indicadores, solta duas migalhas que leva à boca salivante.
Olha em redor, como quem anseia ver algum conhecido, e regressa, inexpressivo, ao interior da caixa de frigorífico, onde se abriga nas noites selvagens de Inverno, para mais uma tentativa de hibernação – o sono pode não ser pacífico, no entanto, tem o condão de apaziguar o estômago por mais algumas horas, até à próxima dose de migalhas.
EMANUEL LOMELINO
quarta-feira, 4 de dezembro de 2024
Lomelinices 53 - Emanuel Lomelino
Lomelinices
53
Olho o passado de relance, mas não deixo de moldar o barro do presente com a experiência adquirida, sabendo, de antemão, que as construções futuras serão, também elas, edificadas de modo distinto.
Por mais que nos instruamos na arte da concepção, o tempo, na sua maestria incontestável, arranja sempre forma de condicionar cada momento, provando, assim, que a vida, embora pareça uma sucessão de círculos, é uma espiral contínua e as linhas que separam os tempos (passado, presente e futuro) são mais ténues do que uma célula hexagonal.
É por isso que o acto de escrever é o próprio passado a acontecer.
EMANUEL LOMELINO
O princípio do mundo (excerto 13) - Jorge Chichorro Rodrigues
terça-feira, 3 de dezembro de 2024
Papaguear cultura 5 - Emanuel Lomelino
Papaguear cultura
5
Mesmo sendo uma era de pedra e osso, a história fazia-se, entre peregrinações instintivas e paragens para sustento. Também havia espaço para registos toscos do dia-a-dia, em tons quentes, porque únicos, mas ninguém grunhia opinião.
Salto no tempo…
Da necessidade fez-se luz e o progresso gerou conforto e ideias novas. A paleta de cores, agora alargada aos tons frios e neutros, já originava comentários, mas, acima de tudo, justificava erudição elitista, porque religiosa e abastada.
Salto no tempo…
A evolução contínua quebrou algumas barreiras invisíveis, substituindo-as por outras - nem melhores nem piores, apenas outras. O arco-íris, com as suas tonalidades e outras que são meios-termos, universalizou-se e ramificou-se, dando origem a múltiplas referências. Nasceu a crítica, o contraponto e os opostos assumidos, mas nada entendido como mais sério que o momento.
Salto no tempo…
Hoje, como em tempos idos, a história constrói-se e desvaloriza-se a arte. No entanto, são poucos aqueles que entendem que só sabemos sobre o passado porque os ociosos gravadores primitivos, os escrivães medievais e os revolucionários aristocratas oitocentistas – para falar apenas nestes – deixaram as referências artísticas fundamentais para a compreensão dos seus quotidianos.
Quer se queira, quer não, o mundo só conhece a sua história porque nos legaram arte rupestre, literatura científica, ensaios, crónicas, poesia e ficções.
Por muito que resistam, a verdade é só uma: não fosse a arte de cada tempo jamais saberíamos nomear os estágios do passado que nos conduziu até este nosso tempo.
EMANUEL LOMELINO
Prisioneira em liberdade (excerto 7) - Maria Antonieta Oliveira
segunda-feira, 2 de dezembro de 2024
Pensamentos literários 6 - Emanuel Lomelino
Pensamentos literários
6
Cada vez mais, escrever é como caminhar num trapézio sem rede. Por mais confortável que o autor se sinta, na execução do seu ofício, está sempre sujeito ao desequilíbrio e, consequentemente, à queda. Mais ainda quando o público é composto por gente munida de atenção qualificada e pronta para apontar os desacertos alheios. Sendo mais vulgar que a assistência seja formada apenas pelos opinadores de ocasião - aqueles que dão palpites sobre tudo, sem terem ideia de nada.
Quem escreve deve ter consciência de que, ao mínimo deslize, seja de que natureza for, haverá sempre alguém predisposto à crítica, qual corrector automático infalível, sem pretensão maior que não seja ridicularizar o próximo – neste caso o autor.
Poucos são aqueles que criticam por opinião divergente, mas fundamentada, ou na intensão de proporcionar um debate construtivo. Creio, aliás, que essa espécie deixou de existir há muito tempo.
Também perigosos, para quem escreve, são os observadores de cortinado (camuflados), sempre em pulgas para descontextualizar uma ou outra frase, de modo a, no mínimo, comprometer a índole de um pensamento e dar conotação negativa a uma narrativa, como quem procura nódoas em lençóis imaculados.
O mais grave de tudo é o facto de a grande maioria dos autores contemporâneos deixar-se intimidar, por esta corja de críticos de pacotilha, e limitar-se a escrever banalidades consensuais, fugindo assim à responsabilidade inerente ao ofício da escrita: desafiar, provocar, revolucionar, chocar e instigar a reflexão.
EMANUEL LOMELINO
A dúvida (excerto 1) - Zélia Alves
domingo, 1 de dezembro de 2024
Devaneios sarcásticos 3 - Emanuel Lomelino
Devaneios sarcásticos
3
Pensar os nossos dias é, mais do que um exercício de decifração de comportamentos, um calvário emocional – esgotante, inócuo e sem sentido – tantas são as incongruências, desvios e variantes surreais (para não dizer idiotas).
Por mais que tente dissertar nesta temática, os pensamentos saem-me mais absurdos do que usar barbatanas na Serra da Estrela; esvaziar piscinas com vassouras; ou fazer a maratona de costas e colocar caril em pudim de leite.
Por mais teorias físicas ou gramaticais que encontre, nenhuma tem aplicação lógica na inversão de polaridades e sinergias apáticas que grassam neste tempo, preocupantemente disforme.
Por mais que insista em encontrar uma hipótese filosófica da modernidade, acabo sempre por ser inundado pelo ócio sem conseguir escrever umas quantas linhas a respeito.
Então, nas vésperas da loucura, sacudo a cabeça, louvo a minha laicidade e besunto o corpo com álcool para confirmar a existência de matéria corpórea.
No que concerne à racionalidade… apenas descubro que até eu a perdi.
EMANUEL LOMELINO