domingo, 31 de dezembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 173 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

173

Sempre admiti a minha incapacidade para ser original por acreditar que já há pouco por inventar - no máximo consegue-se refazer. E com esta condicionante, embriaga-se-me o ego por saber que alguém, mais astuto, prolífero e com maestria, deu uso ao génio para, com mais estética e credibilidade, escrever uma ideia que já tive, mas disse sem burilar.

Por me faltarem muitos ingredientes para chegar a patamares mais elevados, regozijo-me por descobrir que alguns pensamentos meus ganharam o brilho de outras mentes, como a tua Arthur.

Tal como tu, também acredito que as ovelhas negras existem por despeito dos rebanhos, que se assustam quando alguém demonstra pensamento próprio e não tem medo de o verbalizar.

Por falar em pensamento, Arthur, vou tentar seguir o teu conselho e ser menos displicente na minha forma de escrever. Não vai ser tarefa fácil porque, realmente, como escrevi no primeiro parágrafo, não tenho o hábito de dar muito valor aos meus pensamentos por achá-los isentos de originalidade.

EMANUEL LOMELINO

sábado, 30 de dezembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 172 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

172

Recuando alguns anos, o processo mais simples de quantificar o grau de inteligência de alguém era o teste de QI, com vinte e dois desafios às aptidões cognitivas.

Criando um segmento de recta, entre a estupidez e a inteligência, algures encontrava-se um ponto intermédio equidistante.

Através desse método científico conseguia-se aferir o valor médio de inteligência de uma sociedade, um país, uma cidade, um bairro, uma escola. E com os resultados obtidos delineavam-se estratégias para colmatar os pontos fracos do conhecimento humano. Isto é, lutava-se contra a burrice, com inteligência e bom senso.

Escrevi os dois primeiros parágrafos no pretérito porque, por tudo aquilo que podemos observar nas sociedades modernas, os testes devem ter sido descontinuados.

Não há outra forma de compreender como é que, de um momento para o outro, a estupidez passou a ser a doutrina dominante. Tanto que, hoje, o bom senso morreu e a voz dos inteligentes é censurada para não ofender a sensibilidade dermatológica dos estúpidos. 

EMANUEL LOMELINO

Ilhas de paz (excerto 24) - Glória Gomes

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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É aceitável não ser perfeito e não seria justo exigir esta qualidade do outro, mas a nossa atitude deve ser sempre trabalhar no sentido de tornar a nossa melhor versão. Trabalhar em nós e continuar a expandir mediante o nosso próprio trabalho. Ninguém disse que a vida era fácil, mas devemos seguir o nosso próprio caminho e tentar ser o mundo que gostaríamos de ver ao nosso redor, fazer aos outros só aquilo que gostaríamos que os outros fizessem a nós. A humilde não é uma qualidade pessoal forçada, qualquer empatia que se alega é falsa e provavelmente resulta de alguma arrogância ou desejo de controlar. Mas a verdadeira empatia está enraizada na humildade e no entendimento de que existem muitas pessoas com tanto a contribuir na vida quanto a nós próprios.

EM - ILHAS DE PAZ NUM MAR DE TORMENTO - GLÓRIA GOMES - IN-FINITA

sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 171 - Emanuel Lomelino

Imagem medium

Diário do absurdo e aleatório 

171

Ler, por si só, já é um vício. Mas a coisa ganha contornos de dependência quando, por exemplo, nos embrenhamos na leitura sobre metafísica.

Para compreendermos esta “filosofia primeira” começamos por ler Aristóteles. Absorvemos conceitos, definições e logo queremos mais. Então passamos para Kant e a coisa adensa-se de tal forma que não temos outro remédio que não passe por lermos Heidegger e Leibniz.

Quando nos apercebemos da tremenda ressaca mental em que nos enfiámos, já não conseguimos passar sem aprofundar o conhecimento e passamos a ler, também, os críticos da metafísica, como Comte e Nietzsche, e os que, não sendo críticos desta ciência filosófica, foram severos opositores da sua vertente racionalista, como Schopenhauer.

O pior é quando começamos a ler referências a outros filósofos, cujas obras são mais difíceis de encontrar, e damos por nós a vasculhar as prateleiras das livrarias na ilusão de encontrar alguma dessas relíquias. Quando isso acontece é sinal que entrámos na fase mais complicada da adição literária: a obsessão. 

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 28 de dezembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 170 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

170

Volta e meia desincorporo-me e, afastando-me um pouco, fico a olhar-me na tentativa de perceber o que continua a mover-me.

Faço isto porque, há muito, deixei de encontrar respostas no meu interior, agora vazio e abandonado de estímulos.

Longe vão os tempos de grandes reflexões, maiores projectos, gigantescas demandas. Todo eu era um contentor de ambições, ideais e proactividade.

Hoje, pairando sobre mim, deixei de identificar aquele olhar decidido e resoluto – quase intrépido – que me fazia encarar todos os desafios da vida com a cabeça bem erguida, numa postura natural de confiança absoluta.

Os valores continuam presentes, as certezas permanecem seguras, as intenções estão imutáveis, as convicções bem enraizadas, contudo, o vigor vem-se esfumando, a energia esgota-se a cada expiração, a vontade esbate-se a cada passo, a importância das coisas tem diminuído a olhos vistos.

Vejo-me à distância e só reconheço a voragem de querer saber mais, de pensar com mais critério e melhorar valências. Mas já não vislumbro a sede de partilhar nem a urgência de me explicar – nem mesmo a mim próprio.

EMANUEL LOMELINO

O escutador da quaresma (excerto 12) - Renata Quiroga

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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O Condomínio da Razão tinha segurança exclusiva, poste de luz elétrica e água doce encanada, tinha tranquilidade escancarada e estampada por todas as máscaras. A liberdade era uma garantia de todos, era dividida de forma igualitária entre os ilustres moradores. Cada irmão, independente da necessidade, tinha seu quinhão exato de liberdade.
Nas ruas internas da Razão, mantinha-se a concepção arquitetônica de vias projetadas pela padronização. Com tanta coisa igual, a criatividade não tinha nenhum espaço reservado na vida dentro do Condomínio da Razão. As correntes da soltura arrastavam os passos irmanados em fusão, na confusão de serem fax, pares similares. Todos tinham a liberdade de se igualarem como em um túnel de espelhos que diante de tantos reflexos, perde-se o rumo, orienta-se pelos enganos ópticos de um outro eu. Moviam-se amalgamados uns aos outros, velando suas identidades particulares.

EM - O ESCUTADOR DA QUARESMA - RENATA QUIROGA - IN-FINITA

quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 169 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

169

Apesar de já ter idade para ser considerado “velho do Restelo”, não tenho, por vocação, o hábito de fazer apologias do passado para contrapor ao presente. As coisas são como são, o mundo evolui e só temos de nos adaptar, o melhor que conseguirmos.

No entanto, por vezes, dou por mim a pensar na diferença que existe entre a vida quotidiana e o meu tempo de adolescente. Ainda não fui capaz de encontrar uma resposta definitiva que explique a razão de, hoje, com todos os avanços tecnológicos e a informação disponível num piscar de olhos, estarmos sempre sem tempo, enquanto, lá atrás, tínhamos uma vida agitada e ainda sobrava tempo.

Dizem-me que hoje tudo depende e acontece no expoente máximo da celeridade e isso é o motivo principal para o tempo ser gerido de forma diferente. Não sei como contestar esta visão porque, bem vistas as coisas, é possível nomear inúmeras situações que atestam essa realidade.

Antigamente remendavam-se as peças de roupa rombas. Fazia-se mais um furo no cinto. Compravam-se botões para substituir os que se perdiam. As calças velhas viravam calções. As toalhas e lençóis eram transformados em panos de limpeza.  Punha-se um calço na perna bamba da mesa. Hoje deita-se tudo fora e compra-se novo porque é mais fácil e rápido.

E esta nova forma de agir abrange também as interacções humanas. Ninguém tem tempo para encontrar soluções e resolver os problemas do dia-a-dia. Simplesmente vira-se a página porque tudo ficou sujeito a prazo de validade e nada, nem ninguém, consegue escapar à condição de descartável.

EMANUEL LOMELINO

Dolorosa partida (excerto) - Filomena Silva

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Do Natal á Páscoa é um saltinho.
O ano começava e com ele a preocupação de uma boa aprendizagem, para resultados positivos obter.
Sempre em alerta, um dia a mãe percebeu que Tiago estava irritado com ar pesado, olhos sem brilho, distante.
Mas por mais tentativas que tenha feito nada conseguiu descobrir, o menino não revelava.
Ao jantar, estranhamente se levantou da mesa num rompante e, já de costas comunicou que ia à rua. Na rua caminhou, com Fiona a seu lado, choramingando. Mais calmo resolveu regressar, tomar o banho diário, e na cama se deitar.
Não viu televisão.
Foi uma noite agitada. O que o preocupava, regressava ao seu pensamento e não lhe largava o coração.

EM - DAS RAÍZES AO CÉU - FILOMENA SILVA - IN-FINITA

terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 168 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

168

Há dias, como hoje, em que os dedos não se cansam de transpor, para as páginas digitais, a efervescência incontrolável desta minha mente hiperativa (tivesse eu nascido em tempos mais recentes e estaria agora encharcado de Ritalina).

A verdade é que este transtorno que me domina é um ingrediente essencial nos desafios que me proponho e, sem os quais, teria muito mais dificuldade em aceitar viver num tempo (este) que não deveria ser o meu.

Mas é aqui e agora que existo – consciente do meu desenquadramento temporal – e, por isso, permito-me à extravagância de coexistir em dois tempos, sem benefício de um em detrimento de outro.

Neste plano de existência, deambulo entre a esquizofrenia pontual e o paradoxismo permanente, com a maior das naturalidades e sem complexos doentios ou desviantes porque me compreendo, aceito e cumpro.

E assim será até ao fim.

EMANUEL LOMELINO

O Menino que queria ser o trem (excerto 1) - Daniele Barbosa Bezerra

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Exultante, ele esperava a passagem do trem sempre sentado à calçada de casa. Pela manhã, ia à escola modesta no município próximo a sua cidadezinha. Muitas vezes, a merenda escolar era a grande desculpa para se fazer presente, constantemente, na escola. Isso quando havia merenda, pois em alguns períodos, as verbas para alimentar as crianças nas escolas eram desviadas por algum político inescrupuloso.
De resto, não havia nada mais que o interessasse naquele recinto com pouco conforto, poucas carteiras escolares, paredes mofadas e alguns livros que eram distribuídos em grupos de três alunos; escassos, quando não raros, sobretudo depois de uma denúncia em que a prefeita da cidade vendia-os para os pequenos comerciantes de livros usados. Mesmo assim era sempre uma emoção a volta das aulas.

EM - OS DOZE CONTOS DE SOLIDÃO - DANIELE BARBOSA BEZERRA - IN-FINITA

segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 167 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

167

No conforto almofadado da minha trincheira de estudo e criação, deixo-me bombardear pelas ogivas de palavras dos pensadores de outrora.

Agasalho-me nas frases mais eloquentes e solto a esquizofrenia que me assiste, em diálogos mudos com todos eles – um por vez – até que a comichão me nasça nos dedos para que a coce numa folha de papel ou no ecrã do computador, como quem expõe um trauma de guerra.

Na maioria das vezes tudo ganha forma através de um conceito elaborado ou de uma ideia esparsa, mas com a força vulcânica de uma conversa interessante. Contudo, em alguns momentos, basta uma simples palavra para que surja um texto, sem outro propósito além da utilização dessa mesma palavra.

Depois entra em acção este meu lado de cientista experimentalista – a esquizofrenia sempre presente – para explorar diferentes abordagens e observar a aplicabilidade do termo em contextos distintos, nos quais, por norma, não caberia. Como neste texto que, sendo apenas um dos muitos exercícios de escrita que me proponho, é uma cócega nascida de uma conversa com Freud sobre os traumas que as trincheiras deixaram em muitos dos que por lá passaram.

EMANUEL LOMELINO

Ilhas de paz (excerto 23) - Glória Gomes

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Antigamente existia a cultura de “djunta mó”, uma forma de cooperação laboral que não exige a troca monetária, havia mais espírito de colaboração e de ajuda, até de proteção dos bens uns dos outros, uma vivência feliz onde há trocas de amizade, doações de bens e o trabalho acontece ajudando a comunidade prosperar. Hoje vivemos sob o pretexto de somos felizes e nunca solitários e imunes a problemas de saúde mental ou que necessitamos do outro, vivemos sob pretexto individualista, o que não é verdade, simplesmente porque somos humanos e precisamos um do outro. Focar na criação de comunidades e relacionamentos fortes é a maneira de ajudar reciprocamente e combater a solidão e outras necessidades nas comunidades pobres perdidos na cidade ou meio rural dos países subdesenvolvidos com pouco, ou nada a fazer. Conversar e cuidar, perguntar às pessoas como foi o seu dia, qual é a sua paixão, o que lhe faz sorrir, palavras desse tipo podem fazer qualquer ser humano preso dentro da sua caixa de vida, abrir se com um sorriso. Quando fazemos isso, tocamos um pouco da alma dessa pessoa, tudo em nome de pura amizade.

EM - ILHAS DE PAZ NUM MAR DE TORMENTO - GLÓRIA GOMES - IN-FINITA

domingo, 24 de dezembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 166 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

166

A força irreverente, do passado longínquo que quase se apagou da memória, foi gasta em ímpetos esperançosos que se revelaram infrutíferos, tamanha foi a resistência das mentes obtusas alimentadas de falsas crenças.

As tentativas de manter vivos alguns conceitos-base para alargar horizontes e elevar o nível criativo, caíram em saco tão roto que nem mil costureiras, e seus pontos-cruz, conseguiriam remendá-lo.

O desgaste foi apocalíptico a ponto de já não restar o mínimo de vontade em recordar, de viva-voz e com toda a paciência necessária, os ensinamentos que, sendo conhecimento geral, deixaram de ter importância junto daqueles – muitos – que apregoam sabedoria e erudição, mas não sabem, sequer, explicar o que escrevem.

A literatura entrou num vácuo conceptual, por imposição colectiva de uma corja que se apresenta como sendo o expoente máximo de intelectualidade e conseguiu, nos últimos quinze/vinte anos, insuflar o vazio de ideias nos cérebros preguiçosos dos aspirantes a prémios, comendas e certificados.

A idade esvaziou-me o ímpeto necessário para continuar a lutar contra os falsos cânones da modernidade. O desgaste faz-se sentir nas pregas da voz e o vigor da garganta esgotou-se.

Contudo, a razão não me permite desistir. Chegou a hora de diminuir os esforços, proteger as cordas vocais e enveredar por outras vias que não me suguem mais sangue e suor. Porque as palavras não precisam ser gritadas para se fazerem ouvir.

EMANUEL LOMELINO

sábado, 23 de dezembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 165 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

165

O universo literário sempre me fascinou, ao ponto de levar-me a querer obter o máximo de conhecimento possível.

Sabendo, de antemão, que dificilmente teria acesso a tudo aquilo que vale a pena ler, fui construindo a minha biblioteca de acordo com as possibilidades, tentando abastecê-la com a maior diversidade de géneros e conteúdos.

Com este propósito, para além de muitos clássicos da literatura, de diferentes épocas, origens e correntes literárias, também procurei adquirir ensaios relevantes, de pensadores portugueses.

O problema que tenho enfrentado, nos últimos tempos, é a escassez, cada vez mais evidente, de pensadores lusos contemporâneos.

Depois de Agostinho da Silva e Eduardo Lourenço, parece que se abriu um fosso na intelectualidade porque já quase ninguém quer dissertar sobre o pensamento português.

Tendo refletido no assunto, e conhecendo os diferentes ambientes literários nacionais, cheguei à conclusão que este vazio deve-se, em grande medida, ao facto de estarmos a viver num tempo em que a maioria das criações literárias carece de consciência autoral e, por essa razão, não resultar de um pensamento crítico e coerente, mas sim de imediatismo sensaborão sem qualquer dose de filosofia associada.

Até pode ser que me engane, mas não creio que nos tempos mais próximos possamos assistir ao aparecimento de algum nome importante nesta área, tal a preguiça de pensamento que grassa nas letras lusitanas.

EMANUEL LOMELINO

O escutador da quaresma (excerto 11) - Renata Quiroga

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Só que a névoa era feita em tramas que formavam nós que entravam pela fala das pessoas e prendiam-se em suas gargantas. Não havia cuidador que conseguisse uma boa pastilha para escorregar os nós gargalo abaixo até o fundo da garrafa, da garganta engarrafada e atordoada com o barulho das buzinas do trânsito frenético da cidade bem humorada.
O ciclo caminhava igual e os não ditos amontoavam-se em pilhas, os nós já eram tantos que não havia quase ar circulante. Milhares de gotículas de não ditos pairavam no ar condensando a realidade e suas fantasias. O peso era tão grande que parecia existir um piano branco e preto estacionado no ar. Não tinha jeito: caía novamente a água sobre toda a cidade!

EM - O ESCUTADOR DA QUARESMA - RENATA QUIROGA - IN-FINITA

sexta-feira, 22 de dezembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 164 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

164

Esta coisa de ser metido comigo mesmo, não dar bola a qualquer um e preferir o sossego da minha individualidade em detrimento da interacção sem motivo, tem o seu lado bom, mas também pode provocar lutas internas difíceis de administrar. Principalmente quando sinto a necessidade de demonstrar empatia ou solidariedade com alguém, em momentos complicados.

Esta minha forma de estar no mundo, talvez demasiado autocentrada, é vista por muitos como um afastamento deliberado tendo por base o completo desinteresse nos outros. Embora essa leitura seja errada, compreendo que pensem assim porque, a bem da verdade, raramente demonstrei o contrário e nunca combati essa percepção.

O problema é que depois, quando fico a saber que alguém, que respeito, admiro ou estimo, está a atravessar um momento complicado, quero dar o meu ombro, mas a falta de interacção anterior inibe-me. Fico na dúvida entre agir ou ficar quieto. Fico sem saber se as minhas palavras vão ser entendidas na verdadeira dimensão do meu cuidado ou como intromissão indevida e despropositada.

Então, na incerteza, fico no meu canto a torcer à distância, para que as coisas melhorem, e a recriminar-me por continuar a passar uma imagem que não reflete, nem pouco, mais ou menos, a minha humanidade.

EMANUEL LOMELINO

Natal a chegar (excerto) - Filomena Silva

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Pedidos escritos, carta selada e enviada. Paciência instalada até á véspera de Natal.
Nesse dia o sapato de cada morador da casa, era colocado junto à árvore de Natal, que por norma se encontrava ao lado da lareira perto da chaminé.
Tiago adorava aquele frenesim que envolvia esta quadra festiva.
O adorno da casa e do jardim, as doçarias, o fiel amigo bacalhau que era colocado de molho, cinco dias antes da véspera de Natal. A preparação das hortaliças, o descascar das batatas para a ceia e para o farrapo velho, tão tradicional na região, o desencaixotar das loiças para a grande mesa, que acolheria toda a família, a música do rádio que enchia a casa.

EM - DAS RAÍZES AO CÉU - FILOMENA SILVA - IN-FINITA

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 163 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

163

Na íngreme e inclemente escalada da vida, sempre repleta de obstáculos expectantes e retardadores, não existem degraus baixos nem patamares lisos onde seja permitido cauterizar as mazelas e recuperar o fôlego, sem que a urgência do tempo não se faça sentir. Todas as decisões estão prenhes de imediatismo e há pouco espaço para hesitar. E tudo pesa mais a cada grão que se move na ampulheta.

Neste esforço continuado, sem pausas nem sossego, pode-se ganhar resiliência e robustez, mas perde-se vigor e agilidade.

Sendo certo que o mais importante é a satisfação do caminho feito, também não deixa de ser verdadeiro que as únicas medalhas conquistadas são adquiridas na dor, no sangramento, nas lágrimas, nas contrariedades, e isso é tudo menos justo ou animador porque as memórias de uma caminhada não deveriam ser apenas de sofrimento, mercurocromo e pensos-rápidos.

EMANUEL LOMELINO

O pequeno anfitrião (excerto 3) - Daniele Barbosa Bezerra

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Nesse ano, sonhava com a presença do pai na festa até à hora da chegada do Papai Noel. Todos os anos, quando o garoto tinha a presença de um, não tinha a do outro; pois seu pai ficava na festa até certa hora, quando trocava presentes; depois fugia para os braços ninguém sabe de quem, onde certamente a comemoração seria, para ele, mais interessante. A mãe já não mais se importava, ou pelo menos fingia e mal, pois se embriagava até cair. Os mesmos convidados saíam à francesa, enquanto o mesmo amigo íntimo de todos os anos se aproveitava dela, para depois colocá-la para dormir.
A criança da casa assistia a tudo isso, enquanto algumas poucas pessoas condoídas com a tristeza e o silêncio do menino sentavam com o garoto para ver o que ele havia ganhado. Era tanto brinquedo, tanto treco, que ele não dava conta de retirá-los dos seus respectivos embrulhos. O menino ficava com os convidados até que fossem embora. Após a partida de todos, deitava junto à árvore, acreditando que o pai voltaria nesta noite.

EM - OS DOZE CONTOS DE SOLIDÃO - DANIELE BARBOSA BEZERRA - IN-FINITA

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 162 - Emanuel Lomelino

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Diário do absurdo e aleatório 

162

Percebo as preocupações gerais associadas à inteligência artificial, mas não entro na histeria colectiva dos argumentos baseados no prejuízo pessoal. Discutir os prós e contras numa visão intimista é reduzir a análise ao egoísmo.

Parto do princípio que a IA é apenas consequência lógica do progresso humano, (tal como a revolução industrial) com todas as qualidades e defeitos adjacentes.

Por ser uma questão da humanidade, este tema nunca obterá consenso porque, como prova a história, o progresso colectivo sempre aconteceu com o sacrifício de alguém. Uns beneficiam, outros são marginalizados.

Para não estender muito esta dissertação, e cingindo-a apenas a um aspecto do mundo da escrita (o meu mundo) entendo esta “ferramenta” como um divisor de águas dual. Por um lado, aumentará o número de autores que não são responsáveis pelas criações que assinam (esses existem desde sempre), por outro lado, acentuar-se-á o maior flagelo da humanidade – a preguiça.

Quanto ao benefício… deixarão de existir erros ortográficos… e sacrificam-se os revisores de texto.

EMANUEL LOMELINO

Ilhas de paz (excerto 22) - Glória Gomes

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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A juventude, a mente fértil, a mão-de-obra ativa, o futuro de qualquer comunidade, o motor do desenvolvimento de qualquer estado, se a democracia funcionasse como deveria ela deveria trazer liberdade em todos os sentidos, mas acima de tudo permitisse e criasse individuais responsáveis pelo seu auto desenvolvimento e do outro ao seu redor, mas acima disto criasse plataformas favoráveis e acesso ao desenvolvimento individual e a vontade de permanecer de cada um. Deveria usar a ajuda externa de forma que respeitasse o bem já existente nas comunidades, suas capacidades e habilidades, deveria permitir a ajuda chegar aos necessitados, usá-la de forma respeitosa, começando pela capacitação e melhoria das habilidades nas pessoas, nas comunidades, qualquer que seja a forma ou tipo de ajuda.

EM - ILHAS DE PAZ NUM MAR DE TORMENTO - GLÓRIA GOMES - IN-FINITA

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 161 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

161

Ah, meus pobres olhos! Na ânsia de tatuar o meu nome nas pautas do mundo, deixei de vos alimentar com os melhores néctares literários e agora, que a cinza toma conta das vossas íris, temo não ser capaz de vos devolver o brilho.

Ah, meus infelizes neurónios! Na intenção de gravar em mim o máximo de saber, semeei demasiadas sementes estéreis e agora, que o tempo é a preciosidade mais rara, receio não ter habilidade para vos restituir a clarividência.

Ah, meus miseráveis ombros! Na ambição de prolongar ao máximo a minha irreverência juvenil, suportei o peso de múltiplas existências, tal qual Atlas, e agora, que os músculos atrofiam e as forças se esvaem, suspeito que a energia que me sobra é insuficiente para vos revigorar.

Ah, malditos genes que possuo! A sequência dos vossos comandos biológicos guiou-me nos trilhos de uma esperança vã e o tempo, que me pertencia, foi desbaratado na ignorância do seu valor. Agora, no ocaso dos dias, a sapiência dos ventos e das marés não serve para nada - é somente cultura geral.

EMANUEL LOMELINO

segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 160 - Emanuel Lomelino

Imagem retirada da internet
Desenho atribuído a Peter Paul Rubens

Diário do absurdo e aleatório 

160

O próximo objectivo literário passa por encontrar obras de Séneca e descobrir se ele realmente dividiu os homens em duas categorias: os que caminham em frente enquanto fazem alguma coisa e os que vão atrás só a criticar.

Caso a atribuição se confirme, terei de discordar, em parte, e dizer-lhe que se esqueceu daqueles que, deambulam entre as duas facções.

Sim, existem os proactivos. Os que traçam os seus próprios caminhos e vão construindo, pedra por pedra, o destino que melhor lhes convém. Seguem as suas convicções e assumem os riscos do erro.

Atrás vêm sempre os visionários de obra feita, com as línguas afiadas e prontos a apontar, efusivamente e de dedo em riste, todos os percalços, todos os equívocos, enfim, tudo e mais alguma coisa, sem sequer saberem do que estão a falar.

Entre uns e outros estão aqueles que, sabendo identificar possíveis vantagens ou inconvenientes, ora fazem caminhos paralelos aos primeiros, ora juntam as suas vozes sussurradas aos segundos.

Esses, chamemos-lhes dissimulados, camuflam as suas acções em trajectos marginais para fugirem aos olhos dos censores e murmuram opiniões para não serem escutados pelos empreendedores.

Se Séneca dividiu os homens em duas categorias, fica aqui o reparo ao seu pensamento. Caso não tenha sido ele, fico já com a dissertação feita e só tenho de alterar o destinatário.

EMANUEL LOMELINO

O escutador da quaresma (excerto 10) - Renata Quiroga

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Quando os raios altos debruçavam seu olhar para o solo, conseguiram arrancar o que tinha ficado aguado das experiências daquela gente, sugavam tudo aquilo que lhes fazia mal estar. Era uma linda mágica que parecia consertar o defeito das conversas, magia que eliminaria os desafetos entre os grupos de fala diferente e de fala bonita.
Nesse momento parecia até surgir um ar conciliatório entre as duas partes da cidade que travavam mímicas de paz enquanto a névoa ajudava a confundir uns aos outros das expressões desagradáveis que causavam dor e tristeza. Ao contrário da tão desejada leveza, o peso pesado ia para o tal calado que ficara aguado e tinha somente evaporado. A magia não o fazia desassomar, ao contrário ela se exponenciava em bolsões líquidos de não ditos.

EM - O ESCUTADOR DA QUARESMA - RENATA QUIROGA - IN-FINITA