quarta-feira, 25 de setembro de 2019

IN-FINITA APRESENTA... CARLOTA MARQUES CANHA


Carlota Marques Canha

Nascida e natural de Lisboa é licenciada em Tradução económica-jurídica na vertente francês e inglês pela Universidade Europeia e com uma Pós-graduação em Gestão Comercial e Marketing pelo ISTE Porto.
Iniciou o seu percurso profissional em Assessoria de Direção em diversas empresas multinacionais onde se mantém em funções na área de legal no Grupo Jerónimo Martins.
É escritora com o lançamento do seu primeiro livro de poesia “Agarrar o Tempo” - Pensamentos sem tempo. Para além do género de poesia gosta de escrever prosa, crónicas, contos e letras originais de músicas.
Gosta de desafios e fazer coisas diferentes, o teatro e o gosto da representação acabaram por surgir ligados à vontade de compor personagens, compor histórias para um romance que pretende escrever a médio longo prazo. Nos seus tempos livres, para além da escrita, leitura, danças latinas, gosta de fotografia, captar momentos que servem de inspiração para a sua escrita, para a criação de pensamentos, ideias.
Sentir e escrever sobre a vida, os outros, as aprendizagens e experiências recebidas são o que mais a movem na sua busca constante de evoluir como pessoa, como mulher.

Para abrir o apetite sobre a escrita desta autora deixamos aqui um dos poemas incluídos no seu livro AGARRAR O TEMPO - Pensamentos sem tempo, com chancela Chiado Books

Maré de calma e de agitação

Trago este mar nos
meus sentidos,
trago esta
imensidão no meu
profundo olhar.
Trago a maré
de calma e
também maré
de cólera quando
é preciso lutar, quando é
preciso atuar.
Trago esta
grandeza do
infinito no meu peito,
porque
a maré é igual
em qualquer lugar, mas o
meu mar trago-o no sentir
dos meus dedos,
no meu sorriso
e no meu olhar.

Carlota Marques Canha

Acompanhe a autora:
Pensamentos Soltos - Poesia Portuguesa

Locais de venda da obra "Agarrar o Tempo - Pensamentos sem tempo"

- Livrarias Bertrand:
Fórum Sintra
Dolcevita Monumental Lisboa
Dolcevita Tejo
Strada Odivelas
C.C. Vasco da Gama em Lisboa

- Fnac C.C Oeiras Parque

- Livrarias do Pingo Doce:
Fórum Sintra
Pingo Doce Telheiras
Pingo Doce Bela Vista Lisboa
Pingo Doce Odivelas

Edição e-book na Fnac, Chiado Books, Wook, Bertrand

Assessoria Literária: In-Finita


quinta-feira, 5 de setembro de 2019

DEZ PERGUNTAS CONEXÕES ATLÂNTICAS A... - TCHELLO D'BARROS

Agradecemos ao autor TCHELLO D'BARROS pela disponibilidade em responder ao nosso questionário


1 - Como se define enquanto autor e pessoa?

Acredito que exista sempre uma lacuna entre nossa auto imagem e como de fato as pessoas nos percebem. Parece que somos um pouco esse misto entre a pessoa que emerge no espelho com aquela que propalamos nas redes sociais, enquanto que nosso semelhantes vão em paralelo tecendo um silente perfil de nossa persona pública a partir do que pensamos, dizemos e principalmente do que fazemos. Então, incapacitado em aqui definir-me, no máximo posso confidenciar como me sinto, e neste caso sinto-me como alguém comprometido com o fazer cultural, um modesto missionário envolvido com as linguagens artísticas, um trabalhador das artes ou um operário da cultura. Como autor, já é diferente, pois o mais sensato talvez seja considerar que nossos textos digam - nas entrelinhas das entrelinhas – quem de fato somos. Minha produção textual caminha ao longo da carreira nos trilhos da Prosa e da Poesia, mas a viagem é a mesma. São contos, crônicas, o segundo romance a caminho, e um caudal de poemas que se multifaceta em trovas, sonetos, haicais, cordeis, versos livres e até poesia visual. Penso que o importante não é tanto a forma, mas de que forma podemos repassar ao leitor, através de um texto, a replicação da experiência que sentimos com o fenômeno poético.


2 - O que o inspira?

O conceito de inspiração é bastante amplo – ainda mais no terreno literário – considerando-se o quanto são diferentes os processo criativos e o quanto variam de escritor para escritor. No meu caso, as coisas não acontecem tanto pela via mais convencional da chamada inspiração. Normalmente algum assunto começa a me inquietar, começa a se repetir por algum tempo e vou percebendo sinais aqui e ali no cotidiano que acabam convergindo para aquele assunto e assim vão surgindo fragmentos de pensamentos, esboços de frases, imagens, e isso tudo vai formando uma abordagem pessoal sobre aquele tema. Chega uma hora que isso vai para o papel, para a etapa dos rascunhos, da elaboração do texto, a criação dos versos, caso seja um poema. Escrevo inicialmente sempre no papel, pois há uma organicidade no gesto da manuscritura, que facilita a e até estimula a escrita. E assim vão surgindo meus textos que falam sobre nossa experiência nesse mundo, sobre as relações afetivas, situações inusitadas do cotidiano, pessoas singulares que vamos conhecendo ao longo da vida, fé, arte, tempo e a vida em sociedade e até a vida sexual dos nudibrânqueos... Esses são alguns assuntos que, se não me inspiram, ao menos me estimulam a seguir tecendo as mais de mil páginas que tenho produzido, numa sina em que pretendo seguir em direção a esse horizonte que sempre se prolonga, prolonga, prolonga...   


3 - Existem tabus na sua escrita? Porquê?

Prefiro dizer que existe uma assertividade tanto na escolha das formas quanto na abordagem dos temas que são destilados em verso e prosa. Os chamados tabus são assim considerados de forma muito desigual, dependendo muito do arcabouço do leitor, esse personagem sempre indefinido. É tabu para quem? Quando José Saramago escreveu “O Evangelho Segundo Jesus Cristo” algumas correntes retrógradas e conservadoras consideraram tabu, heresia e mesmo outros adjetivos menos elegantes, mas a comunidade acadêmica, os ateus, o leitorado erudito e o júri do Nobel consideraram a obra prima do autor.  Então, independente das opiniões heterogêneas que possam surgir, parece que o coerente é o autor seguir tecendo seu texto, com sinceridade e com a profundidade que lhe for possível. Os eventuais julgamentos posteriores são algo que não pertencem ao autor, pois a própria obra ao ser publicada, num certo sentido, também já não lhe pertence mais.


4 - Que importância dá às antologias e colectâneas?

Embora esse tipo de publicação tenha perdido o charme e a relevância de outrora, de antes da era digital, ainda é uma forma de se fazer a produção literária de muitos autores chegar aos leitores. No Brasil, grassa o equívoco de titular coletâneas como antologias, são coisas diferentes, sobejamente em publicações alternativas, cooperativadas e principalmente aquelas que não têm um conselho editorial para a seleção das obras. Não são raros os casos em que os autores pagam para participar e os que possuem maior poder aquisitivo podem comprar mais páginas para veicular suas veleidades literárias. O resultado quase sempre são publicações belíssimas em termos de produção editorial – o objeto livro – e muito pobres em termos de qualidade literária. Um editor me contou que via de regra são textos de poetas de fim-de-semana e pessoas de meia idade que já plantaram uma árvore e fizeram um filho, agora só faltaria publicar um livro, então começam publicando suas escrevinhações em blogs e coletâneas impressas. Dificilmente se verá um desses recebendo um prêmio Jabuti ou o Camões. Ainda assim, quando o projeto é realizado por pessoas idôneas, quando há preocupação com a qualidade da escrita, digo que vale a pena participar.


5 - Que impacto têm as redes sociais no seu percurso?

Sinto-me um peixe na rede, enredado até o pescoço nas malhas virtuais de um oceano digital onde vida e obra se fundem, onde realidade e virtualidade se confundem e as relações se ampliam para outras águas e novos cardumes de leitores. Lembro agora que quando surgiu o Twitter, a primeira coisa que fiz lá foi fazer uma versão virtual de minha exposição de Poesia Visual “Convergências”. Cada imagem, uma postagem. Desde que surgiu a comunicação via códigos simbólicos, os autores têm usado as mídias de seu tempo, fossem as tabuinhas com letras prensadas na argila, fossem os rolos de pergaminhos ou a prensa medieval. Se em nosso tempo e lugar temos as mídias digitais e as redes sociais virtuais, não há motivos para o autor hodierno não usá-las. E, a profusão de novas tecnologias e equipamentos está aí para potencializar a veiculação da produção autoral contemporânea, aproximando criadores e consumidores, fazendo girar mais rápida a grande roda da literatura.


6 - Quais os pontos positivos e negativos do universo da escrita?

O ponto positivo é o sinal de dois-pontos, pois nos deixa atentos para algo surpreendente que está por vir. E o ponto negativo é o ponto final, pois é sinal de que acaba de acabar aquele prazer estético que aquele texto estava nos proporcionando... Brincadeirinhas a parte, talvez seja válido lembrar que, nesse universo, estamos num tempo em que nunca se escreveu tanto, nunca se publicou tanto e por isto mesmo, ampliou-se a oferta e a diversidade de estilos, propostas, gêneros, hibridismos e experimentações textuais. E, quem ganha com isso são os leitores, que tem muito mais opções para seu deleite e fruição. Um ponto que, se não é negativo ao menos deve se tornar um debate em aberto, são as políticas públicas para a publicação autoral, que são sempre reduzidas, deficitárias e sem alcançar a demanda existente.

7 - O que acredita ser essencial na divulgação de um autor?

A própria pergunta já apresenta uma resposta, ou ao menos um problema de nosso tempo atual. As pessoas se tornaram produtos de si mesmas, as pessoas são consumidas, seguidas nas redes, onde o personalismo se tornou uma marca de nossos dias, um aspecto de nossa recente pós-modernidade. Se em algum momento anterior a esta era, a força na divulgação concentrava-se mais na obra, hoje o foco é a pessoa. Não importa mais tanto o autógrafo no lançamento, importa mais a selfie, uma foto com quem está lançando o livro. Isto implica dizer que do ponto de vista do autor, sempre haverá em termos essenciais, uma preocupação com a qualidade da escrita, enquanto que as editoras se preocuparão com a qualidade do produto, o marketing editorial e sua distribuição. E ao leitor caberá em essência, ser afetado por tais divulgações e fazer a aposta em escolher este ou aquele autor para seu prazer literário.


8 - Quais os projectos para o futuro?

Já é. Meu projeto para o futuro já está acontecendo no presente e tem sido resgatar o passado.  É que venho aos poucos resgatando minhas publicações – sete livros publicados e esgotados e também textos diversos em dezenas de antologias, coletâneas e livros didáticos – produzindo edições revistas e ampliadas no formato de e-books. Esta tem sido minha estratégia em providenciar para que meus textos permaneçam e cheguem até novos públicos. Para além disto, debato-me no desafio de concluir um novo romance que venho escrevendo a parir das experiências do período em que vivi na Amazônia. O futuro é incerto sempre, mas devo voltar aos poucos a ministrar oficinas literárias em diversas instituições no intuito de capacitar pessoas interessadas em desenvolver sua escrita. Quanto à produção cotidiana de poemas, crônicas e contos, bem isso vai continuar se espalhando por aí, nas mais diversas mídias.


9 - Sugira um autor e um livro!

Sugiro “A Epopeia de Gilgamesh”, considerado por muitos como o mais antigo texto literário. Não se sabe a autoria mas a obra foi constituída de fragmentos de tradições orais da cultura suméria na antiga Mesopotâmia, ali para os lados do que hoje se conhece como Iraque.   


10 - Qual a pergunta que gostaria que lhe fizessem? E como responderia?

Nunca me perguntaram: quem é você? E se perguntassem, não sei se eu responderia o seguinte: sou o demiurgo de um sonho metafísico numa sanha idiossincrática, sincrética, em sinas de acasos e insanos ocasos de êxtases. Meu signo, uma esfinge estática, estética, cujos olhos desatam a linha do horizonte entre mantras e tantras. Viajor fugaz em trânsito entre o inusitado e o insólito, riscando a abóbada celeste nas asas do sublime. Na mão direita, os nomes das potestades, e na esquerda a chave das comportas do tempo. No lado escuro da lua, um quasar pulsante ilumina a passagem dos meus cometas feéricos, enquanto minhas musas celebram núpcias no palco de um teatro diáfano, ora sacro, ora profano. Nos olhos, mandalas quânticas que se fecham para poder ver as auroras edênicas. Na voz, jaz uma espada flamígera, um grito em lume de neon, raio de aura púrpura, hálito de tântalo e saliva de cicuta. Nas veias, uma torrente violácea, âmago de magma rubro, caudal de labareda ígnea em ascese de volúpias e olores de âmbar. Meu ofício, esse cotidiano jardim onírico, sem jade ou alabastros, erige um labirinto de epifanias com pétalas das letras com as quais construo templos de enlevos, pontes de estesias e umbrais de alumbramentos. Tenho convidado bem poucos para essa festa, mas os que sabem com quantos abraços se escreve a palavra arte, bem, esses tem acesso garantido nesse sarau tão inefável quanto infinito.

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

IN-FINITA APRESENTA... OUTROS TANTOS DE FLÁVIO ULHOA COELHO



Em vésperas do lançamento oficial do novo livro de Flávio Ulhoa Coelho, deixamos aqui o parecer de Krishnamurti Góes dos Anjos sobre OUTROS TANTOS


Belo exemplo de criatividade e sensibilidade em “Outros tantos” de Flávio Ulhoa Coelho
Por Krishnamurti Góes dos Anjos
Encontrar um diálogo oportuno e frutífero com o pensamento de grandes escritores do passado no que vem sendo publicado atualmente na Literatura é um achado gratificante. Sobretudo, quando boas ideias são redimensionadas sob um viés de criatividade e competência intelectual. Lembremos de um passado relativamente recente.
No ano letivo de 1985-86, o escritor italiano Ítalo Calvino (1923 - 1985) iria proferir palestras na universidade de Harvard, nos Estados Unidos. Ele definiu como tema os valores literários que mereciam ser preservados no curso do próximo milênio; imaginou seis conferências e escreveu cinco. A morte prematura o impediu de concluir o seu trabalho, “Seis propostas para o próximo milênio.” Propostas que, segundo ele, seriam úteis para renovar a linguagem escrita contra “a peste da linguagem” e “o dilúvio das imagens pré-fabricadas”, males que estariam assolando a Modernidade. Tal peste se manifestaria como a perda de força cognitiva num automatismo que tende a nivelar a expressão sobre as fórmulas mais genéricas, anônimas, abstratas, a diluir os significados, a cegar as pontas expressivas, a apagar qualquer centelha que jorre do encontro das palavras com novas circunstâncias. Calvino estabeleceu afinal, Proposições a que deu os nomes de Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade, Multiplicidade e Consistência, esta última perdurando inconclusa. Propostas estéticas, que se imporiam como armas de resistência, meios de intervenção e de atuação do escritor em relação ao mundo.
Calvino entendia a Leveza (no sentido de retirar o peso das coisas), apontando para o peso existente no mundo, um peso que deve ser filtrado, amenizado pela operação literária. A partir da consciência da existência do peso que podemos e devemos buscar a Leveza. Tornadas leves, as coisas e os seres adquirem velocidade, escapando de qualquer controle. Por isso, não é à toa que Calvino escolhe a Rapidez como proposta que se seguirá imediatamente à da Leveza. Sem jamais perder de foco o mundo não escrito, Calvino contrapõe a Rapidez que ele propõe para a Literatura, à velocidade que percebe nos meios de comunicação. Por isso, também no início da sua segunda conferência, ele adiantou que “o valor que quero recomendar é justamente este: em uma época em que outras media velocíssimas e de extensíssimo raio triunfam, e arriscam achatar qualquer comunicação em uma crosta uniforme e homogênea, a função da literatura é a comunicação entre aquilo que é diferente em tudo quanto é diferente, não camuflando, mas exaltando a diferença, segundo a vocação própria da linguagem escrita”. Vemos assim a Rapidez como instrumento de comunicação direta, para fazer contato com Tudo. Acrescentemos que a Rapidez também nos serve para que possamos ver e captar as coisas sem que elas passem pelo controle, pela análise do consciente, como se ao mesmo tempo as surpreendêssemos e fôssemos surpreendidos por elas.
Já a definição de Exatidão, se baseia em três pontos, a saber, 1) o desenho da obra bem definido e bem calculado; 2) a evocação de imagens visuais nítidas, incisivas, memoráveis, e 3) uma linguagem a mais precisa possível como léxico e como demonstração das nuances do pensamento e da imaginação. A comunicação exata entre as coisas. O uso exato e justo da palavra, “associa o rastro visível à coisa invisível, à coisa ausente, à coisa desejada ou temida, como uma frágil ponte de fortuna lançada sobre o vazio. Já em sua proposta da Visibilidade, Calvino chama a atenção para o fato de que é por meio da capacidade de imaginar (transformando palavras em imagens, imagens em palavras), que conseguimos criar novos mundos, novas linguagens, renovamos a (nossa) vida, tal como ocorre com a Natureza. Queria ele, que víssemos também com os olhos da nossa alma, usando criativamente a linguagem de modo que possamos tanto reciclá-la num eterno retorno do efêmero, quanto torná-la vazia para partirmos novamente do zero.
Quanto à Consistência que ele não teve tempo de elaborar, seria, segundo alguns estudiosos, o que tornaria para nós visível e exata uma sensação de Totalidade, de conjunto para tudo aquilo que, no mundo escrito e também no mundo não escrito, parece escapar de nós em sua Leveza, Rapidez e Multiplicidade.
A publicação de “Outros tantos” do escritor Flávio Ulhoa Coelho, reúne 32 contos (alguns com estrutura de crônica), agrupados em 6 partes sob os títulos que foram tão caros à Italo Calvino: Leveza, Rapidez, Exatidão, Visibilidade, Multiplicidade e Consistência. E o que o leitor encontra é em evidente exemplo de criatividade. Parece-nos que tal divisão é meramente esquemática, intuitiva, sem ligações rígidas com o pensamento de Calvino, diríamos mesmo que constituem um flexível exercício em torno daquelas ideias do escritor italiano, que são atualizadas e, em certo sentido, aprofundadas.
Em alguns textos observamos a nítida opção pelo fragmentário de vidas ou situações que se entrelaçam, em circunstâncias existenciais complexas de que o olhar eventual de um observador não daria conta. O olhar do ficcionista recolhe “traços” e apresenta reflexões que não possuem a intenção de organizar, mostrando que a composição do real se revela no fragmento. Ver: “E nós quem somos?”, “negro y blano”, e “A árvore darwiniana”. Há contos onde a imaginação atua como alavanca de procedimentos lógicos. E entra em cena uma dialética entre imaginação e realidade, com resultados realmente surpreendentes como acontece no excepcional, ”Ela, a ideia”, uma verdadeira aula de como o escritor lida com sua imaginação criadora.
Há ainda no autor dessa obra, uma faceta muito interessante. A partir de um enredo básico de um conto, ele escreve outro com uma abertura para: “e se fosse diferente o curso daquela história?”. A possibilidade vem em outro texto, e de uma forma muito sutil, não diretamente implícita, um mero detalhe muda a trajetória de vidas. Os exemplos mais evidentes são “Olhares flutuantes” e “Olhares futurantes” de um lado, e mantendo essa característica de variação de desfecho, mas aprofundando sentidos, temos “Os momentos mais eternos” e “Conto de natal”. Como são textos muito bem trabalhados no nível da construção ficcional, perduram na memória do leitor e, quando este lê o outro texto, percebe claramente que emergem detalhes e circunstancias já ventiladas, mas com uma iluminação mais intensa. Habilidade típica do contista que domina plenamente a sua ficção em toda e qualquer direção que entenda dar-lhe.
Em outras narrativas encontramos profundas reflexões sobre a monstruosa realidade social brasileira como acontece em “O carregador de dedos” e “Um par de tiros”. Profundas reflexões porque, mais importante do que a mera reprodução de situações, o autor põe o dedo na ferida exposta. Na ferida aberta da corrupção sistêmica que assola o país, que muitos adotam e até defendem, como lemos no primeiro conto, ou o porque de nossa juventude negra e pobre (via de regra), estar sendo sistematicamente exterminada por aqueles que representam o Estado, ou deveriam representar. E não somente a triste realidade atual, o autor visita o tempo um pouco mais recuado. Veja-se o conto “A rua”, pungente relato sobre a vida de uma mulher corajosa e engajada politicamente, que é assassinada durante o escrotíssimo (desculpem mas não encontro outra palavra), regime de exceção que tivemos no Brasil durante vinte e tantos anos, e que todo mundo sabe muito bem qual foi. Contos assim, nos levam a reconhecer, com pesar, com muita dor, que o Estado brasileiro foi mesmo forjado na violência e na exclusão, e continua desgraçadamente nesse triste percurso.
Não poderíamos deixar de mencionar finalmente, o doce lirismo que exala em textos como “Bonde 53”, “mãos dadas no parque”, “guardanapo”, “achados e perdidos”, “morto no corpo” e “por ora”. Esses textos, todos, com suas características e circunstancias peculiares claro, nos fazem lembrar das coisas boas da vida, sim, por incrível que possa parecer, a vida os tem. E então somos capturados inapelavelmente por sensações e sentimentos bons quando lemos textos que excitam a memória de tempos idos, ou a maravilha que é estar apaixonado, ou ainda a delícia e a dor da entrega impensada. Quem não lembra dos vestígios daquele amor que poderia ter sido e não foi? Que bem nos faz constatar a transitoriedade de nossas dores de amor que refluem com o tempo para o mais completo esquecimento? Que dizer então, da doçura que é sentir-se amado?
E, paralelamente ao que já referimos e, dentro da diversidade dos temas e formas trabalhados, que dão um sabor todo especial ao livro, salta aos olhos a elegância e a qualidade literária da prosa. Sem sombra de dúvida podemos afirmar que “Outros tantos” do escritor e professor Flávio Ulhoa Coelho consegue abrir espaços de interrogação, de meditação e de exame crítico Em suma, enseja a proveitosa relação com nós mesmos, com o nosso mundo interior através do mundo que o livro nos abre.

Livro: “Outros tantos” – Contos de Flávio Ulhoa Coelho – Editora Penalux,
Guaratinguetá - São Paulo - SP, 2019, 198p.

ISBN 978-85-5833-531-7