sábado, 28 de dezembro de 2019

BORBOLETAS (excerto) - SÓNIA CORREIA

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam da autora neste link
Conheçam a In-Finita neste link

Sou ela, aquela a quem a vida deu asas, a que voa constante e livre, que vai e volta no tempo, que se divide entre dois pedaços de terra distantes... Aquela que se define pelo valor da alma, que sorri numa explosão de cores e também sente a chuva das lágrimas.

Sou aquela, ela que se ama desalmadamente, que encontra força todos os dias para seguir o seu destino, que se recusa a existir apenas, que é feita de sonhos, que cai e se levanta nos empurrões da vida.

Sou muitas, muitas mulheres numa só, um conjunto de formas com asas. A borboleta que veste de azul, o rasto que deixa nos caminhos dos dias e pendura nas estrelas os brilhos nos momentos da noite.

Sou uma, uma só viagem de sentimento, incondicional e sem medida por ele a quem dei vida, pelo ser que me percorre de orgulho a cada segundo que passa, unidos pelo sangue que nos faz parte da mesma parte.

EM - ALMA-TE - SÓNIA CORREIA - IN-FINITA

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS (excerto XVIII) - MARIA MAGUEIJO

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam da autora neste link
Conheçam a In-Finita neste link

Adorava aquelas suas netas que tinham tantas parecenças com a sua querida Francisca e com as filhas. A mãe de Maria já tinha alguns sintomas da doença da Mãe e, apesar de viver com eles, vivia num mundo só seu, com momentos bem divertidos em que se lembrava de tudo e outros na apatia e apenas olhava o jardim, as maravilhas da natureza, Passeava por perto e voltava de novo para casa. Por vezes consciente de onde vivia e de quem eram todos, outras caída no mutismo de quem prefere não dizer coisas dispares. Mas é muito meiga a sua querida Caetana, cujo nome invulgar (ordens de sua sogra), provém do latim e significa “Mãe me quer”. Olhou a filha e pensou que lhe assentava bem. Todos gostavam dela e era recíproco.
A Mãe de Isabella falecera cedo. Assim como Francisca, perdera a batalha num dia em que o sol abriu um raio por entre a chuva que caía forte. Foi para lhe levar a sua querida Margarida! A sua flor tão bela, tão cheia de alegria. Cantava com os pássaros no jardim, encantava a todos pelo seu saber, pelos cabelos dourados como o trigo. Sempre fora um enorme pilar para toda a família e queria mudar o mundo com as suas ideias romanescas de que só o bem existe. Isabella e Maria têm muito de Margarida. Ambas sábias e sonhadoras.
Enquanto o avô estava envolvido com os seus pensamentos, serviram o que faltava do jantar e as primas, claro, sempre na tagarelice. Acabaram o jantar e faltava o café de Camila.

EM - HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS - MARIA MAGUEIJO - IN-FINITA

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

BOTA ABAIXO REINALDO (excerto) - ERNESTO FERREIRA

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam do autor neste link
Conheçam a In-Finita neste link

A história que vou narrar, meu caro Miguel, foi protagonizada pelo Ti Reinaldo e tão próxima de mim que não resisto a pedir-lhe que me deixe descrever a situação, e locais em que tudo se passou.
Nela, é forte participante a GNR.
Na aldeia há uma capela de que já te dei notícia, dedicada a Santo Amaro, santo protector das fracturas ósseas, onde acorrem durante o ano muitos devotos em acção de graças por intervenção milagrosa havida.
À volta da capela há um adro, espaço que se avaliava baldio, com uma área de cerca de 1000 metros quadrados. Esse espaço era muito utilizado pelas mulheres vizinhas, para conversar, mas sobretudo para entoarem muitas canções populares. Este local também era preferido para os namorados e para fazer bailes ao ar livre.
Segundo anciãos que conheci, postulavam que o espaço baldio era maior que o existente. O que é facto é que um dia o putativo proprietário colocou marcos distantes, cerca de dois metros, das paredes da capela, reduzindo o baldio, para uma centena de metros quadrados. Não afirmo que a pessoa em causa não fosse de facto dono do terreno. Nessa data as propriedades não eram registadas, pois nem havia Conservatória Predial.
O caso não foi do agrado de Povo, especialmente dos moradores mais próximos, como era o caso do Ti Reinaldo.
Cabe aqui dizer que o Ti Reinaldo tinha vasto apetite por uns “verdinhos” e nunca rejeitava um “calinhos” (cálice pequeno) de bagaço. Em alguns dias repetia a dose vezes de mais, o que o tornava mais efusivo.

EM - MIGUEL, NO EXTREMO DA ESTREMA - ERNESTO FERREIRA - IN-FINITA

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

A CANDEIA... (excerto) - SÓNIA CORREIA

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam da autora neste link
Conheçam a In-Finita neste link

Sentada a segurar a candeia, no meio do nada dentro do tudo, em campos, mares ou montanhas, na cidade à pinha de corpos mecânicos desorientados, ninguém lhe tira a luz, nada lhe rouba o horizonte. É crente, escolheu ser quem é na noção de que seria abandonada pelas gentes que jamais a conseguiriam decifrar.

Esse brilho incandescente que segura e emana das entranhas, dispara como foguetes pelas janelas da alma, enquanto lhe guarda intocável a fé, a esperança, a gratidão por todo e cada um dos seus suspiros.

Cabem-lhe na estrada dos anos fogos de artifício deslumbrantes, trovoadas devoradas pelos raios temerosos. Saboreia a luz em todas essas fatias do tempo. O brilho disparado da terra para o céu, do universo para a terra, chova ou faça sol não restam questões sem resposta, toda ela é um clarão que prevalece qualquer intempérie.

Foi para longe, sozinha. Precisa dessas horas onde nada vê senão a beleza natural das aguarelas da paisagem. Levou na candeia a luz da paz, estado que sobrepõe a qualquer promessa de amor. Afinal, separar o trigo do joio não é apenas obra de mãos calejadas da terra, mas também de mentes maduras, corações suturados, almas sem espaço a ceder.

EM - ALMA-TE - SÓNIA CORREIA - IN-FINITA

domingo, 22 de dezembro de 2019

HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS (excerto XVII) - MARIA MAGUEIJO

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam da autora neste link
Conheçam a In-Finita neste link

Anabela agarrou-lhe nas mãos geladas, colocou-lhe os pés descalços em cima da cadeira e afagou lhe o longo cabelo, numa tentativa de acalmá-la.
– Isabella, que posso fazer, mulher de Deus? Essa voz é apenas o reflexo de ti mesma que te chama. O teu silêncio fora do trabalho não ajuda. Já reparaste que bonita está a noite? Reparas nas flores que crescem e no seu aroma? Nas árvores que dançam ao som do vento? Não! Só vês trabalho, imaculada sem uma hipótese de crítica, livros, o teu olhar triste e longínquo e por mais que sorrias é com tristeza. Pensavas que não observo? Sei que tens uma missão que não é fácil, que estás sempre pronta para ajudar os outros. No dia do incêndio quase te perdíamos por teres ido como louca ajudar a salvar a Rita. Se não te agarrassem pela cintura e tirado dali, tinhas voado com os estilhaços dos vidros. Isabella, estás a ouvir o que te digo? Olha para mim.

EM - HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS - MARIA MAGUEIJO - IN-FINITA

sábado, 21 de dezembro de 2019

BOTAR O BINÓCULO - ERNESTO FERREIRA

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam do autor neste link
Conheçam a In-Finita neste link

Miguel estava encantado com as estórias que ouvia e perguntava a ele mesmo como é que o Ti Reinaldo conseguia que as crianças fossem para casa. Sempre queriam ouvir mais um conto e o Ti Reinaldo explicou ao Miguel como fazia com que as crianças sentissem vontade de ir para casa. Bastava contar-lhes a “ladainha” que se segue:
Era uma vez um senhor já muito velho que sabia como adivinhar o tempo. Eu aprendi com ele e vou ver, meus meninos, como vai ser o tempo. Coloco o binóculo que tenho, viro-o para nascente e vejo o tempo que vai fazer. Chama-se a isto “botar o binóculo”:
Colocadas as mãos, uma aposta à outra, fazendo uma espécie de monóculo, começava a recitar, com voz forte e altiva:
– Aí vem nube (nuvem) negra
Não sei se é vento ou trovão
Se são raios ou coriscos
Se são do demo o inferno
Livrai-nos Senhor dos riscos
Das pedras do trovão
–“Fuginde” meninos, que vem aí uma “desgracia”!
Eh crianças que nenhuma ficava para ouvir o resto da ladainha.
E assim as enviava para casa.

EM - MIGUEL, NO EXTREMO DA ESTREMA - ERNESTO FERREIRA - IN-FINITA

quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

MADRUGADAS... (excerto) - SÓNIA CORREIA

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam da autora neste link
Conheçam a In-Finita neste link

E se dela não nascessem madrugadas não viveria todo o resto que lhe cabe. Se nela não se lhe enrolassem todos os tules transparentes no seu escuro, de janelas edificadas nos olhos, não tinha sequer aprendido a viver, tão pouco a sua chama seria fogueira por entre o gelo deste século sem graça ou essência.

Abraça-se nas horas mais quietas da noite com suspiros de calma. Nesses momentos madruga os sonhos que se movem pela mente como a destreza do falcão que sobrevoa o inconcebível, quieta nessa cama de sempre e aconchego, ainda que só os seus braços a apertem, congemina com o universo o silêncio que ecoa no grito da fé e gratidão.

São tantas as vozes que carregam promessas, na claridade do sol dos dias que a deambulam, banal quotidiano de passos apressados à sua volta, corpos que se movem na obrigação, expressões de tristeza, rostos vazios, segredos fechados nas grades dos vultos que gritam sem som pedidos de liberdade, e nela mora a certeza que tem sempre as madrugadas.

EM - ALMA-TE - SÓNIA CORREIA - IN-FINITA

terça-feira, 17 de dezembro de 2019

HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS (excerto XVI) - MARIA MAGUEIJO

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam da autora neste link
Conheçam a In-Finita neste link

Certo dia estava deitada, a ler um livro, e ouviu gritarem pelo seu nome. O mais rápido que conseguiu despiu o pijama, vestiu um calção, uma blusa e descalça saiu a correr para acudir à voz que não parava de gritar. No corredor não viu ninguém, procurou seguir o som daquela voz aguda que tão aflita estava. Continuou a não ver absolutamente ninguém. Desceu as escadas até ao átrio, vazio... Entrou no escritório de rompante...
– Que andas a fazer aqui descalça Isabella? Vais-te constipar. E quase sem roupa com este frio... já é tarde mulher. Que se passa?
– Chamaram por mim?
– Não. Já está quase toda a gente a descansar. Que se passou? Outra vez a voz?
– Sim. Alguém chamou por mim, Eu ouvi nitidamente o nome Isabella e, que eu saiba, só existo eu aqui com esse nome... Vou ver se alguém ficou na Biblioteca...
– Isabella! Chega! Senta-te aqui! Não está lá ninguém!
– Então terá sido da rua?
– Carla, traz-me um chá de camomila para Isabella, se fazes favor.

EM - HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS - MARIA MAGUEIJO - IN-FINITA

segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

O BANGALA DE FERRO (excerto) - ERNESTO FERREIRA

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam do autor neste link
Conheçam a In-Finita neste link

Aceite-se aqui que “Bangala” é o mesmo que Bengala.
Era uma vez um homem que vivia na aldeia e tinha uma força colossal, nunca vista. Chamavam-lhe o Bangala de Ferro porque ele andava sempre com uma bengala toda feita em ferro. Era tão pesada que dois homens viam-se aflitos para a levantar do chão, enquanto ele sozinho, a manobrava como se fosse uma pena de ave. Naquele tempo todos os homens gostavam de ter lutas para ver quem era o melhor, fosse a cantar, fosse a dançar, fosse a cortar árvores, fosse em lutas de força ou a jogar o pau, jogo predilecto dos lavradores, etc. Ora bem, o nosso Bangala de Ferro era tão forte que nem valia a pena jogar contra ele. Isso desgostava-o e um dia resolveu ir correr mundo na cata de encontrar quem pudesse medir forças com ele.
Correr mundo nessa época era como tentar hoje visitar a Lua ou Marte ou entrar no negro desconhecido, tal como os marinheiros portugueses o fizeram.
E aí vai ele, mundo fora. Tinha andado aí umas três léguas quando encontrou um homem muito alto e forte que, percebeu logo, teria tanta força quanto ele. E disse-lhe: Eu sou o homem mais forte da minha aldeia e procuro quem possa medir forças comigo. Serás tu, esse homem? O homem respondeu não com palavras, mas com actos. Agarrou o tronco de um pinheiro, com mais de uma braça de perímetro, e num só puxão arrancou o pinheiro pela raiz. E disse: Eu também sou o homem mais forte da minha aldeia e chamam-me o “Arrinca Pinheiros”, mas não vamos medir forças porque sei que há um homem tão forte como nós ou ainda mais e gostaria de o conhecer. Vamos os dois procurá-lo. E continuaram o caminho na sua busca. Até que, uma dezena de léguas adiante, vêem um monte de pedras enormes e um homem, que parecia de pedra, sentado no cume. Ao vê-lo logo pensaram que deveria ser o tal homem superforte que se constava existir. E disseram: Nós somos os homens mais fortes das nossas terras e procuramos um companheiro forte como nós que queira fazer grupo connosco. Quem és tu? Ao que o homem respondeu: Não conheço homem mais forte que eu. Vede, eu arrasei um morro que existia aqui e coloquei as pedras onde me sento. Todos me conhecem como o “Arrasa Montanhas”.

EM - MIGUEL, NO EXTREMO DA ESTREMA - ERNESTO FERREIRA - IN-FINITA

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

ESTRADA... (excerto) - SÓNIA CORREIA

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam da autora neste link
Conheçam a In-Finita neste link

Fez-se à estrada quase desde que nasceu. O veículo é ela. Nunca baixou os braços ou desligou o motor que traz na cabeça. O GPS é daquelas coisas que, por vezes, a guia para o lado contrário. Encontra o caminho tantas vezes quantas as que se perde nele.

Cabe-lhe a vontade de vencer ao chegar a todos os destinos que congemina com a fé e o universo, arregaça as mangas para mudar o óleo e deita fora as impurezas acumuladas que atrasam a viagem, o tempo já não tem tempo para paragens inócuas nem as vozes a encantam como antes.

Traz na bagagem anos de ouro e memórias áureas do que valeu a pena escrever na pele. Foi abrindo a janela da carcaça que cuida com primor e simplesmente deitou ao vento os rancores, as mágoas, as decepções e as tristezas fora de prazo.

O caminho é em frente sem curvas de arrependimento. Já bastam as cicatrizes das derrapagens e os pneus carecas dos amores perdidos nas descidas vertiginosas do sentir, tudo deixado por aí no passado das paisagens que já lá vão.

EM - ALMA-TE - SÓNIA CORREIA - IN-FINITA

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS (excerto XV) - MARIA MAGUEIJO

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam da autora neste link
Conheçam a In-Finita neste link

Pensou que ainda teria tempo de comer um pastel de Belém antes de voltar para casa. Uma fila interminável como sempre.
Pediu uma caixa com meia dúzia para levar para Maria e os restantes lá de casa e deliciou-se com um, cheio de canela, e bebeu um bom café.
Sentia-se mais feliz, principalmente por estar acompanhada apenas com os seus pensamentos e insanidades.
Quando saiu dos pastéis de Belém já chovia um pouco, mas sem hesitar decidiu caminhar até ao comboio. A meio-caminho desistiu e chamou por um táxi, pois arriscava-se a perder o comboio e chegar a casa como acabada de sair do duche vestida e calçada, não se livrando das risadas de Maria, de Camila e de quem por lá estivesse.
Sorria para a chuva, deliciava-se por sentir o rosto repleto de lágrimas do céu.
Mas foi sensata e lá rumou a casa.
- Maria? Sim, já estou no comboio. Cerca de cinquenta minutos. Sim já chove aqui também. Não te apresses, esperarei por ti. Obrigada. Beijo
Isabella sabia que fazia a prima feliz por ajudá-la a superar os momentos menos bons da sua vida. E quando desligou o telefone sentiu paz.

EM - HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS - MARIA MAGUEIJO - IN-FINITA

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

A QUADRILHA DE LADRÕES - ERNESTO FERREIRA

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam do autor neste link
Conheçam a In-Finita neste link

Miguel, a estória que vou contar até me causa arrepios, disse o Ti Reinaldo!
Era uma vez e em tempos não muito recuados, uma situação que, de todo, os Asturianos temiam. As quadrilhas de ladrões.
Tratavam-se, como se diz hoje, de grupos organizados com comando indiscutível, cujo comandante era chamado de Capitão.
Estes grupos atacavam selectivamente, e sempre locais ou situações em que levavam vantagem, dada a surpresa e o equipamento.
As igrejas eram grandemente visadas, dado não serem habitadas, terem caixas com dinheiro e objectos de valor.
São conhecidíssimas as quadrilhas de Chaves e a do Zé do Telhado que, embora com estratégias diferentes, espalham receios nas populações e que ainda hoje são muito temidos. Ocorreu até que alguns dos bandidos foram presos nesta aldeia após o célebre ataque na estrada Braga-Chaves.
Nessa época, sempre que alguém morria era sepultado dentro da igreja e, desde a morte até ao funeral, o corpo estava depositado dentro da igreja onde era acompanhado por familiares, normalmente dois compadres.
Ora, estando um aldeão no caixão e acompanhado por dois compadres, a meio da noite começaram a ouvir um ruído que logo perceberam ser um assalto.
Alarmados, e com receio do que lhes podia acontecer, resolveram utilizar a seguinte tática: retiravam o morto do caixão onde um deles se deitaria e o outro vestiria as vestes do Senhor dos Aflitos (padroeiro da aldeia) e colocava-se no altar respectivo. E se bem o combinaram, melhor o fizeram...
E bem a tempo porque não demorou muito para que a porta cedesse, e como previram tratava-se duma conhecida e temida quadrilha, à frente da qual vinha o Capitão. De imediato começaram a roubar tudo que lhes interessava e após estarem de retirada, um dos assaltantes disse ao Capitão que no caixão estava um morto.
O Capitão, homem de pouca fé e para mostrar ao grupo que nem aos mortos tinha medo, disse:
– Ora bem, amigos, venham cá porque já agora quero ver qual é a cor do sangue de um morto. E palavras não eram ditas, saca da cintura de uma espada e prepara-se para com ela atravessar o corpo do que ele julgava ser o morto.
Aflito, vendo chegar o fim dos seus dias, o falso morto grita:
– Oh Santos do Céu valei-me!
Ao que o outro compadre, feito Senhor dos Aflitos, responde gritando bem forte:
– Espera aí que eu já lá vou!
Perante isto, a quadrilha entrou em pânico e ó pernas para que vos quero. Fugiram todos deixando tudo que tinham roubado até aí, e até a espada do Capitão ficou no chão.

EM - MIGUEL, NO EXTREMO DA ESTREMA - ERNESTO FERREIRA - IN-FINITA

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

DEZ PERGUNTAS A... JORGE GASPAR


Agradecemos ao autor JORGE GASPAR pela disponibilidade em responder ao nosso questionário

1 - Escrever é uma necessidade ou um passatempo?

Um exercício de raciocínio. Gerindo a escrita com originalidade em ideias e pensamentos.

2 - Em que género literário se sente mais confortável?

Poesia lírica. Circunstancialmente no género narrativo, conto.

3 - O que escreve é inspiração ou trabalho?

Leitura versus criatividade.

4 - O que pretende transmitir com a sua escrita?

Comunicação, diálogo, liberdade de pensamento.

5 - Qual o seu público alvo?

Todo o que se interesse pela leitura e conhecimento.

6 - Em que corrente literária acha que a sua escrita pode ser incluída?

Humanismo e modernismo.

7 - Quais as suas referências literárias?

Autores dos clássicos aos contemporâneos.

8 - O que costuma fazer para divulgar o que escreve?

Corresponder aos convites para publicar.

9 - O que ambiciona alcançar no universo da escrita?

Transmissão de ideias originando o diálogo.

10 - Que pergunta gostaria que lhe fizessem e como responderia?

O que deverá refletir a escrita? Partilha de conhecimentos, fomentando a união de ideias e sentires.

domingo, 8 de dezembro de 2019

NUNCA PERCEBI... (excerto) - SÓNIA CORREIA

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam da autora neste link
Conheçam a In-Finita neste link

Nunca percebi o que fazer com tanta vontade de amar. Vim ao mundo neste corpo que percorre o tempo em constante ebulição. Por dentro uma engrenagem sem manuais técnicos ou, sequer, interruptor. Parece-me sórdido carregar tamanha tecnologia sem perceber o propósito.

A intuição, essa senhora imponente que me pega pela mão em todos os minutos que quase expludo de excesso, é a única que me entende e me guia em todas as catástrofes quando me perco no meu armazém do amor.

Tenho aprendido a amar tanta coisa que hoje me parece insólito não escoar o sentimento até no simples milagre das cores, dos cheiros, do olhar, do palato, do som das arpas quando os anjos me convidam para dançar.

Nunca percebi como nascem de mim tantas paixões arrebatadoras, tantos fogos abrasadores, tantos ritmos deliciosos, tantos desejos de felicidade, tanta eletricidade estática que em jeito de íman me arrasta para desenhar fervor.

EM - ALMA-TE - SÓNIA CORREIA - IN-FINITA

sábado, 7 de dezembro de 2019

HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS (excerto XIV) - MARIA MAGUEIJO

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam da autora neste link
Conheçam a In-Finita neste link

A pobre criatura continuou a cantar, agora mais baixinho, uma dor que Isabella conhecia bem. Rasgava-se-lhe o som que queria gritar, no mudo da sua tristeza. Que dor tamanha!
Observou que houvera silêncio na paragem do eléctrico e os rostos, de quem falava português, estavam consternados pela homenagem daquele ser tão cheio de saudade do Homem que seguramente alegrara tantas pessoas ao ouvi-lo cantarolar pelas ruas.
Isabella sentou-se na paragem e procurou de novo o caderno juntamente com uma esferográfica e escreveu como se a sua mão fosse um instrumento do cérebro.

“Hoje sou apenas a voz apagada de uma melodia com um poema escrito em branco.
Nessa página imaculada escrevo o silêncio sagrado a que me comprometi.
Nessa página sou tinta da pluma de algum qualquer escritor.
Tela de algum qualquer pintor.
O quadro que quisera pintar.
O poema que quisera escrever.
Que me levaram pela dor.
Que me perdoem, pois foi por Amor”.

EM - HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS - MARIA MAGUEIJO - IN-FINITA

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

AS PIEIRAS - ERNESTO FERREIRA

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam do autor neste link
Conheçam a In-Finita neste link

Este conto, diz Poesia, é conhecido em várias versões, em que cada versão tem sempre dois elementos residentes: O Lobo e a Pieira.
Aqui procurando ser tão fiel quanto possível, a versão é a do Ti Reinaldo.
“Era uma vez um guardador de gado que andava na serra a cuidar do seu rebanho. Estava um dia cheio de sol e a pastagem escolhida nessa tarde estava muito apetecível para as ovelhas e cabras. Era um regalo para os olhos ver os animais a pastarem. Assim, o pastor foi-se esquecendo das horas sendo que o fim da tarde não esperava. O rebanho deveria ser recolhido ainda com a luz do dia, pois os lobos viviam e deambulavam por perto, constituindo um perigo para o rebanho. Os lobos, dizia-se, apenas obedecem às Pieiras, coisa de que o pastor se ria, pois não acreditava em Pieiras e muito menos que houvesse alguém a quem os terríveis lobos obedecessem.
Quando estava a reunir o rebanho, auxiliado pelo seu cão chamado Piloto, apercebeu-se que um lobo espreitava acoitado junto ao “penedo furado”. Este penedo era assim chamado porque era de facto furado, sendo até tido como um exame aos pecados em que podia estar qualquer pessoa. Para provar que a pessoa estava de bem com Deus deveria conseguir passar através do furo. Se não conseguisse era sinal de que estava em pecado. Já agora diga-se também que este penedo furado, junto ao caminho de Santa Justa era o certificado de virgindade de qualquer rapariga solteira. Se não conseguisse passar era certo que já não era virgem.
O pastor pensou: se deixo o lobo aproximar-se não evito que ele me mate uma ovelha. O melhor é atacá-lo para o pôr em fuga. E se bem pensou, melhor o fez. Foi em direcção ao lobo com o cajado em riste. O lobo ensaia a fuga e o pastor corre quanto as forças consentiam, para o levar para o mais longe possível. Mas eis que na sua corrida tropeça numa pedra saliente e zazcatrapaz pum, cai desamparado, bate com a cabeça numa pedra e fica desmaiado.
Entretanto o Piloto lá foi reunindo o rebanho e conduziu-o para o curral.
Era noite e a lua cheia começava a surgir no horizonte; o pastor inanimado estava só e sem consciência. Passadas umas três horas começou a despertar. A lua estava mais alta e alumiava quase como fosse dia. O pastor começou a despertar e viu uma enorme cabeça à sua frente. Era o lobo, talvez o alfa, mas ao invés de parecer ameaçador, parecia calmo e amistoso. Uma sonora gargalhada despertou mais o pastor que viu junto ao lobo uma graciosa dama que sorria para ele, ao mesmo tempo que afagava o focinho do lobo. Era uma Pieira!
Fixou o pastor e disse-lhe: Então agora acreditas nas Pieiras ou não? Ficas sabendo que te salvei dos dentes do lobo e quero que, para me pagares, em noites de lua cheia venhas ter comigo para saudarmos a beleza duma noite de luar. E a Pieira ordenou aos lobos que em noites de lua cheia, não atacassem nem pessoas nem animais... o que até hoje vem sendo cumprido, na aldeia e montes de Asturães.”

EM - MIGUEL, NO EXTREMO DA ESTREMA - ERNESTO FERREIRA - IN-FINITA

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

PÉROLAS... (excerto) - SÓNIA CORREIA

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam da autora neste link
Conheçam a In-Finita neste link

São dela as pérolas que exibe na pele, transluzentes, divinas escorregam para lhe cair na vaidade nobre do templo que acarinha, grata pela vida em suspiros de ar que rouba e devolve ao mundo.

Brilham em espasmos contínuos, cegam de cor ao seu redor, extenso o cordão dessas joias que adquiriu nos anos, onde cada uma conta uma história marcada e até vincada. Escorre da alma uma a uma no somatório invulgar de um clarão de beleza.

Mas não, nem todas são marcos de festa, nem todas a fizeram sorrir, nem todas foram ténues no cair. Muitas contam marcas no peito, cicatrizes cravadas, obras destruídas, momentos sem chão, impérios desmoronados e lágrimas, muitas lágrimas perdidas no rosto de quem sofreu e sofre tempestades medonhas.

Contudo, prevalece esse brilho incandescente que a diferencia da multidão. Acontece a força da rebelião. Nela reside a recusa e navega contra a maré a cada nascer do sol, a cada cair da noite, nos sonhos que não abranda, no querer que não confessa, no orgulho de si que não deixa morrer nem quando os impossíveis lhe segredam parvoíces que não ouve.

São pérolas, todos os segundos dessa viajem que a mantém viva, todos os minutos à tona do seu mar revolto, todas as horas vorazes de emoção, todos os dias, todos os meses, todos os anos onde se retrata nas mais diversas facetas de si mesma.

EM - ALMA-TE - SÓNIA CORREIA - IN-FINITA

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS (excerto XIII) - MARIA MAGUEIJO

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam da autora neste link
Conheçam a In-Finita neste link

Deambulou pelas ruas vendo pessoas de tantas formas que mais pareciam formiguinhas trabalhadeiras. Olhou o relógio e percebeu que era hora de almoço e tal como as formiguinhas que não paravam quietas, foi pela Rua do Arsenal até ao Cais do Sodré. Podia ter ido visitar o rio Tejo, mas deixou para a volta.
Deu por si a subir a Rua do Alecrim e foi então que decidiu parar para almoçar.
Finalmente!
Entrou na Brasserie de L’entrecôte e depois de um belo repasto fixou o olhar na janela. O lugar onde estava sentada era junto a uma janela e observava quem passava. Quem serão? Que fazem na vida? Será que sabem sorrir com o coração, que conhecem o verbo amar?
Observou com carinho que muitas daquelas pessoas andavam de mãos entrelaçadas. Que contente ficou, sentiu-se bem e um suspiro quebrou a sua hipnose. Mas ali ficou já a degustar um bom café.

EM - HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS - MARIA MAGUEIJO - IN-FINITA

domingo, 1 de dezembro de 2019

AS FEITICEIRAS - ERNESTO FERREIRA

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
Saibam do autor neste link
Conheçam a In-Finita neste link

Olhe Miguel, disse o Ti Reinaldo, os contos (estórias) que envolvem feiticeiras ou feitiçarias são, para as crianças, os mais adorados pelos mistérios que contêm e também porque constituem algum sentimento de medo de uma qualquer coisa que não dominam.
Esta história foi-me contada pelo Ti Madorna, que a tinha ouvido de outro grande conversador, que não conheci.
Naquela época - e ainda hoje, de certo modo - no final da missa domingueira, os homens ficavam pelo adro em conversas diversas.
Em alguns destes eventos, era figura de proa alguém que, sendo habitante de freguesia vizinha, era um regalo ouvi-lo não apenas nas histórias que contava, mas também nas análises críticas aos maus e bons costumes.
Então vamos à história contada na pessoa do sujeito passivo, que assim disse:
“Pois ficam sabendo, meus amigos, que as feiticeiras existem e são capazes de coisas extraordinárias. Eu não lhes tenho medo, mas muito respeito, porque as conheço bem. Vejo-as da minha janela quando elas se entretêm a fazer fooorrninhos, que lhes dá muito prazer. Mas quando fazem fffooorninhos não devemos estar à cata, nem maliciosamente as impedir. Pois bem, na semana passada, ainda não era meia noite, fui acordado porque me estavam a erguer da cama. Senti que me levavam pelo ar, sentindo uns ventinhos nos queixos. A lua estava cheia e eu vi que quatro feiticeiras me levavam. As ramas que me tocavam fizeram-me conhecer que estava debaixo de salgueirais e por cima de silveirais, que são, todos sabem, as casas das feiticeiras Nisto senti que me pousavam no chão e eu perguntei: Meninas onde estou eu? É preciso não as tratar mal... Elas responderam-me: Estás na Chão de Agra. Está bem, meninas – não se pode tratá-las mal – por favor, levem-me à minha cama. Eu senti novamente uma brisa a passar-me nos queixos e a voar. Mais uns minutos e senti que novamente me pousaram e eu perguntei: Meninas, onde estou eu? Elas me responderam: Alto do Cavalinho. Muito bem meninas – não se pode tratá-las mal – por favor, levem-me para a minha cama. Senti que novamente me levavam e novamente me pousaram. Perguntei outra vez: Meninas – não se pode maltratá-las – onde estou eu? Ao que elas me responderam: Chão de Antesdelas. Voltei a agradecer e pedi que me levassem para a minha cama, sempre sem as tratar mal. Senti que novamente me levavam, senti um ventinho nos queixos, mas também senti as folhas da minha vinha a afagar-me e de seguida pareceu-me estar na minha cama e perguntei: Meninas onde estou eu? Recordo que não se pode tratá-las mal. Elas me responderam: Estás na tua cama. Então eu disse: Obrigado suas grandes p.tas. Não se pode tratá-las mal.
E, sobretudo, não as incomodar quando estiverem a fazer fffffooorrninhos!”

EM - MIGUEL, NO EXTREMO DA ESTREMA - ERNESTO FERREIRA - IN-FINITA