sábado, 30 de setembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 81 - Emanuel Lomelino

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Diário do absurdo e aleatório 

81

É no mutismo do silêncio que as vozes ganham clarividência e as palavras vencem a timidez dos grandes públicos.

É na quietude do vazio que os timbres se ajustam às pautas e os verbos glorificam a sagacidade da linguagem.

Simon & Garfunkel alertaram para as conversas que existem na mudez; para os diálogos ouvidos, mas jamais escutados e para a falta de atrevimento em reproduzir-se, vocalmente, tudo o que foi escrito. E isto porque o silêncio pode representar mil palavras; o silêncio pode ser mais significativo que discursos intermináveis; o silêncio pode ser a base do entendimento.

Por tudo isto se diz que “o silêncio também fala”, “o silêncio é de ouro”, “o silêncio é a alma do negócio”.

No entanto, alerto eu, o silêncio não é um lugar feito à medida de todos porque requer isolamento, introspecção e raciocínio, e é incompatível com autofóbicos e claustrofóbicos.

O silêncio é uma seara de pensamentos à espera de serem segados, colhidos, debulhados e transformados em alimento nutritivo, para quem não lhe tem fobia e sabe reconhecer-lhe os benefícios.

EMANUEL LOMELINO

Ilhas de paz (excerto 6) - Glória Gomes

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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A expansão económica dos últimos dois séculos baseou-se numa explosão de conhecimento sobre o que pode ser feito e como. Bens e serviços são feitos reunindo recursos produtivos assim como as palavras são feitas juntando letras certas. Os países com maior variedade de capacidades podem produzir mercadorias, serviços mais diversos e complexos. A sua atitude de criar condições para fazer face à limitação depende de si próprio e na sua capacidade de criar uma combinação perfeita. Ninguém precisa de uma lâmpada se não houver a corrente elétrica. A ausência, representa a falta de capacidades de criar e aumentar recursos usando o capital humano. Este exemplo até humilha um estado pobre, porque reduz tudo à capacidade de saber jogar, inventar e contrariar a diversidade.

EM - ILHAS DE PAZ NUM MAR DE TORMENTO - GLÓRIA GOMES - IN-FINITA

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 80 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

80

Escrevo porque leio, penso e gosto de desenvolver pensamentos. Estou longe de ser erudito na minha escrita, no entanto, isso não me impede de juntar o útil ao agradável e dissertar sobre o que me der na real gana. E, enquanto me sentir confortável neste papel de autor menor, continuarei a fazê-lo.

O meu método é simples de colocar em prática e todos os textos que crio nascem da mesma forma. Leio uma frase, vejo uma imagem, escuto uma conversa, e dou corpo de texto a uma ideia, um conceito, uma inquietação, com as palavras que acho mais adequadas. Depois de escrever, leio, altero, modifico e reescrevo, as vezes que forem necessárias, até que tudo fique minimamente aceitável.

Sendo evidente que um conto exige fórmula e estrutura diferentes de uma crónica ou uma carta, a verdade é que o processo é tão básico que só preciso do mote e de um dicionário de sinónimos porque tudo o resto cresce com o fermento da própria escrita.

E é por ser tudo tão simples e despretensioso que, muitas vezes, fico assustado com a preguiça que vejo por aí estampada nas inúmeras citações partilhadas, que pululam na internet. É como um elo entre os internautas que os faz falar o mesmo, ao mesmo tempo, mas apenas terceirizado como se o pensamento fosse único, imutável, dogmático e avesso, ou blindado, a interpretações mais extensas.

Muitos alegam que o tempo é curto, mas eu contraponho. O tempo não é curto, apenas é mal aproveitado e polvilhado de preguiça colectiva. Em vez de fotos de refeições ou livros, escrevam sobre isso. Nenhum de nós deixará de ser autor menor, no entanto, ao escrevermos, perpetuaremos o acto de pensar, que é o que mais escasseia no nosso tempo.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 79 - Emanuel Lomelino

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Diário do absurdo e aleatório 

79

Toda a arte é dual. Pode ser objectiva ou arbitrária; inspiradora ou castradora; provocadora ou rasa; alegre ou melancólica; séria ou lúdica; satírica ou insonsa; deliciosa ou intragável; imortal ou efémera; contagiosa ou lacónica; bela ou monstruosa; etc, etc, etc…

Em outras ocasiões é polissémica. Pode ser início, meio e fim; tudo, nada e alguma coisa; abstrata, genérica e indefinida; excêntrica, estranha e rebelde; catarse, prazer e vício; etc, etc, etc…

A arte pode ser tanto e de tantas formas, dependendo de quem a vê e do modo como a entende.

Já foram tantos aqueles que dissertaram sobre a arte que é impossível dizer quem se aproximou mais da verdade. No entanto, para mim, a observação mais pertinente foi feita por Johann Goethe quando disse este quase paradoxo: Não existe meio mais seguro para fugir do mundo do que a arte, e não há forma mais segura de se unir a ele do que a arte.

EMANUEL LOMELINO

quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 78 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

78

Planto as sementes dos sossegos de cada instante dócil com a esperança de um abraço inquebrável entre as raízes e a terra fértil. Há um desejo inviolável de frutificar os rebentos da brandura como quem quer muscular a vontade.

Rego os caules de serenidade com as cristalinas águas da calmaria plácida que pacifica os frémitos pulsares da inquietude. Há um segredo por revelar em cada broto que rasga, entre sorrisos e sonhos, o ventre do solo maternal.

Nos limites da inocência, entre a lucidez mansa e a loucura pacata, sussurro palavras meigas e brandas à planta que desponta. Há um aroma meloso a impregnar-se na sensibilidade dos sentidos apurados, como uma essência virgem a deambular no etéreo silêncio de pasmos e espantos.

Por fim colho as flores da solidão, com as pétalas pintadas de paz e céu, de trégua e mar, de nirvana e nada. Enlaço um bouquet inteiro com a delicadeza de pai orgulhoso e realizado. Esta primavera, fora de estação, apazigua-me as lágrimas e cicatriza-me os lamentos. Então, condensa-se em mim a honradez da criação e o mundo volta a ser um lugar de pausa e restauro.

Eis-me agricultor de palavras e armistício.

EMANUEL LOMELINO

Sinônimo de Resistência - Jeane Tertuliano

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Eu escrevo como quem ama: mergulho de corpo e alma nas entranhas da poesia. O amor diz muito sobre o ofício de uma poeta, pois não é por dinheiro que produzo a minha arte, mas sim pelo que sinto quando versejo com o coração. Beirando o meu quinto livro, escrevo com mais afinco. A vida parece enfim ter sentido, e isso significa tudo para mim. Ser mulher é um ato de coragem. Ser uma mulher que produz literatura às vistas de uma iminente ditadura, é uma proeza que por si só faz implodir a medonha estrutura da sociedade machista, golpista e tirana. Eu sei que divago demais, mas ser poeta é isso mesmo: é traduzir tudo que me fere a alma o tempo inteiro. Não sei viver se o sentido preestabelecido for ser feliz num padrão contido pelos vãos que ecoam nos lares do mundo infindo. Mulheres não se calam quando têm razão e sonhos. Os opressores podem até espernear, mas se a própria ciência aponta que somos a maioria, não há sentido algum em negar a soberania da nossa existência. Escrever é sinônimo de resistência!

EM - ELAS E AS LETRAS: SEMENTE, PRESENTE - UM LIVRO PARA MARIELLE FRANCO - COLETÂNEA - IN-FINITA

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 77 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

77

Virgínia foi sempre uma mulher discreta, simples, mas dotada de uma ingenuidade infantil que a irritava profundamente. Por mais que tentasse – e tentava com todas as forças da sua vontade – era apanhada de surpresa com muitas coisas óbvias que lhe fugiam à percepção, mesmo quando era, previamente, alertada.

Essa inocência nata era a fonte maior das suas desilusões, e a cada novo desapontamento, a cada novo dissabor, ela prometia regenerar-se e voltar outra pessoa. Mas não havia volta a dar. Uma e outra vez, sorrateiramente, lá vinha mais uma decepção, e outra, e outra, e outra…

E foram tantos os desgostos que Virgínia acabou por transformar-se numa alma descrente com o mundo e amargurada consigo própria.

O pior foi descobrir que, algumas pessoas que muito prezava, tinham-se aproveitado da sua credulidade levando-a a abdicar da única pessoa que realmente lhe foi fiel, em todos os sentidos.

Virgínia não se perdoa por ter dado crédito às intrigas de bastidores e recebido como verídicas algumas suspeitas que lhe plantaram na mente.

Hoje vive reclusa nas grades do cepticismo mais impenetrável e desconfia até das intenções da própria sombra.

EMANUEL LOMELINO

Emma Everston (excerto 12) - Ernesto Moamba

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Quando, depois de muito procurarem, Emma, Vivianne e Marlon encontraram os restos mortais de Rosey, não conseguiram evitar os vómitos.
– Meus Deus quem fez isto com ela?
– Tenham cuidado, o assassino ainda pode estar por perto. – disse Emma, movendo-se em direcção a uma poça de sangue. – Que nojo! – disse silenciosamente enquanto encolhia seu corpo, sem chamar a atenção, para apoderar-se da fita gravadora que avistou e teria sido perdida por alguém. – Isso deve ter alguma coisa importante. – presumiu Emma. – Gente vamos dar fora daqui e avisar a polícia. Este monstro assassino deve ser detido.
Pouco antes de terminar a fala, um ruído assombroso aproximou-se deles como se viesse fazer vingança, e quando perceberam empreenderam a fuga.

EM - EMMA EVERSTON, A UNIVERSITÁRIA DA CIDADE DE SANGUE - ERNESTO MOAMBA - IN-FINITA

Peabiru (excerto 24) - CARLOS DOMINGUEZ

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Anos depois, eu estava conversando com a arqueóloga catarinense Gabriela Oppitz, sobre pegadas marcadas em rochas encontradas no litoral do Brasil, atribuídas à figura mais fantástica que teria cruzado o Caminho do Peabiru, do Atlântico ao Pacífico: o mítico Pay Zumé, Zumé ou Sumé. Descrito pelo padre Manoel da Nóbrega em 1549, no livro Cartas ao Brasil. O padre fala de um antigo mito, um herói fundador, que ensina as populações locais como fazer desde o fogo até a agricultura. No relato do religioso, esta figura era um missionário barbudo, de cajado e veste de frei. Típica narrativa da europa dos anos 1500, onde figuras com esta imagem perambulavam pelas estradas pregando seu credo. Aparece nestas narrativas a semente da crença dos conquistadores de que por estas paragens tudo de bom tem de vir de fora.

EM - PEABIRU - CARLOS DOMINGUEZ - IN-FINITA

segunda-feira, 25 de setembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 76 - Emanuel Lomelino

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Diário do absurdo e aleatório 

76

Já começa a ser um acto repetitivo, como todas as repetições que cometo na vida, mas que posso eu fazer, Fernando, se sinto que és o único a quem posso falar do alto das minhas esquizofrenias.

Na minha mente tenho toda uma biblioteca de assuntos pertinentes, dúvidas recorrentes, perguntas delirantes, e diálogos por fazer. E quando recorro a ti, através das diferentes personalidades de nós, soltam-se-me os adjectivos mais esconsos como fossem exemplos do mais nivelado saber.

Conversar contigo é uma forma, talvez a mais fácil e confortável, de tentar expurgar a incompletude dos meus raciocínios, tão menores que os teus, numa tentativa, porventura, vã, de engrandecer as minhas pobres virtudes criativas. 

Mas sossega, Fernando heteronímico, que, com as devidas vénias, jamais me proclamarei teu discípulo, como muitos fazem – alguns de forma leviana e fraudulenta. Ao contrário desses, não caio na ilusão da fama indevida porque, tal como lembrou outro autor, que também não é meu mestre, mas admiro – Victor Oliveira Mateus – a fama pouco mais é que uma estátua de bronze onde os pombos depositam meticulosamente os seus dejectos.

E até nisto, Fernando, tu és único, pois o teu bronze foi colocado numa cadeira para descansares e destacaram alguém para te lustrar todos os dias de modo a estares perfeito em todas as selfies.

EMANUEL LOMELINO

Ilhas de paz (excerto 5) - Glória Gomes

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A pobreza não tem apenas uma faceta, portanto não podemos lutar contra a pobreza com apenas uma solução. A pobreza é uma questão multifacetada e complexa que requer do governo poderes para estabelecer estratégias anti pobreza que irão melhorar a habitação, educação infantil, apoio ao rendimento e planos de pensão para idosos, emprego com benefícios fiscais e serviços de educação e saúde para todos os indivíduos. Apostar em acordos que abrem portas de acesso a várias plataformas que por instante só beneficiam os residentes dos países desenvolvidos. A pobreza rouba do indivíduo qualquer senso de segurança, o privilégio de fazer escolhas, de ter oportunidades e acesso a recursos, mas é senso comum, que a incapacidade de produzir mais oportunidades de emprego para as pessoas é uma falha do governo.

EM - ILHAS DE PAZ NUM MAR DE TORMENTO - GLÓRIA GOMES - IN-FINITA

domingo, 24 de setembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 75 - Emanuel Lomelino

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Diário do absurdo e aleatório 

75

De forma simplista, pensar na vida é vital para identificar problemas, analisar hipóteses, definir prioridades, arranjar soluções, ponderar consequências e avaliar benefícios e prejuízos.

A questão complica-se quando passamos à prática. A cabeça fica a mil, embrenhada em pensamentos oportunos, mas desgastantes porque pensar na vida é como jogar uma partida de xadrez – exige várias jogadas de antecipação.

Para cada problema identificado devem ser ponderadas várias soluções, para cada solução devem ser analisadas várias hipóteses, para cada hipótese devem ser consideradas todas as consequências, para cada consequência devem ser definidas várias prioridades. E cada solução origina um novo problema, cada hipótese demanda nova solução, cada consequência exige nova hipótese, cada prioridade causa nova consequência.

Hoje pensei tanto nos vários problemas que preciso solucionar que quase colapsei!

Definitivamente, já não tenho agilidade mental suficiente para jogar o xadrez da vida. Prejuízo maior.

EMANUEL LOMELINO

sábado, 23 de setembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 74 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

74

Recomeçar, uma e outra vez, não traz mal algum ao mundo. Voltar à estaca zero e tentar fazer melhor faz parte do jogo da vida. O desafio maior é aprender a jogar à medida que avançamos, passo a passo, com um objectivo fixo em mente. Reiniciar a caminhada é uma nova oportunidade de reconhecer erros e procurar melhores soluções. Tenta-se e volta-se a tentar, as vezes que forem necessárias, e cada nova tentativa significa resiliência, perseverança, combatividade. Mantendo a mente focada, pouco importa o cansaço físico.

Os chavões são claros e fáceis de entender. O problema é colocar em prática toda a extensão teórica. Sim, o corpo fica cansado, mas recupera. Já a mente. Por mais blindada que seja, não há como evitar a perturbação das nódoas de fracasso que se acumulam e acabam por, paulatinamente, manchar o ânimo. A vontade pode ser férrea, mas o ferro enferruja e, mais dia menos dia, acaba por partir. E essa noção, por si só, já é abalo suficiente.

Egoisticamente, o que nos salva é sabermos que há, por ai, alguém bem mais abalado pela vida.

EMANUEL LOMELINO

sexta-feira, 22 de setembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 73 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

73

A vida transformou Orlando num homem de caráter tão firme e sólido quanto betão. Os seus comportamentos eram pautados pela coerência, correcção e sentido de justiça. Todas as suas opiniões eram fortes e sustentadas por argumentos mais válidos que um cartão de cidadão recém renovado. Não tinha pejo em identificar publicamente aquilo que lhe desagradava, da mesma forma que não se coibia de apontar o que lhe era caro. Naturalmente, esta forma de ser e estar, tanto cativava gente como afastava outros. O mais difícil era encontrar quem ficasse indiferente à sua presença.

Uma das características mais relevantes de Orlando era a capacidade de resiliência que mantinha, principalmente, nos momentos mais complicados, que até foram em número considerável, e permitiram que alcançasse pequenos, mas satisfatórios triunfos pessoais, dos quais nem fazia muito alarde, bem pelo contrário, tinha prazer em que outros o acompanhassem e tivessem os mesmos sucessos.

No entanto, pouco a pouco, sem que alguém percebesse, Orlando decidiu mudar o rumo da sua vida e começou a prescindir das coisas que, até então, lhe eram importantes.

Abandonou algumas convicções. Desistiu de objectivos. Colocou os sonhos de lado. Abdicou de vontades e quereres. Enfim, alterou os seus hábitos e transfigurou-se, completamente, em alguém que apenas existe.

Os que lhe eram mais próximos nunca entenderam as razões para aquela mudança radical e acabaram por perder-lhe o rasto.

Embora não se consiga provar, porque ele nunca explicou, surgiu a teoria de que Orlando, simplesmente, optou por apagar, deste mundo, todos os vestígios da sua existência. Por isso, ninguém sabe se já morreu ou se é alguma das sombras que deambulam nos becos do anonimato.

EMANUEL LOMELINO

Vida Doroteia - Joely Santiago

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A vida cercada de pouco diálogo com a mãe fez de Dorotéia uma realista esperançosa. Ela conheceu as letras até os anos do antigo Ensino Primário. Aos quatorze anos de idade subiu no altar. Meses depois, grávida, foi abandonada pelo marido. Voltou para a casa da mãe com a barriga na goela. Graduou-se em trabalhos domésticos e, teve mais três filhas da cor da noite. Cada filha, um caso passageiro. Em casa, reutilizou os palitos de fósforos até a ponta dos dedos abrasarem. Ela tem sorriso para dias, apesar de ouvir crítica dos vizinhos: Viver minguando vida não é vida, é castigo! Faça chuva, faça sol e, Dorotéia gastara seus dias com a venda de chicletes no semáforo. Pegou encomenda de crochê e ficou até tarde da noite tecendo a linha. Quando sobrava algum tempo ela ia até a filha caçula, na época, com idade de oito anos. Chamava-se Perla. Perla passava as tardes no fundo do quintal acocada em amontoados de gravetos e latinhas de ervilha que utilizava como brinquedos. Mãe e filhas, duas gerações afastadas pelo viver da vida amontoada na pressa. Uma de suas meninas havia se maturado no sangue mensal. Ela queria conversar com a mãe sobre o ocorrido. Dorotéia não teve tempo. Por cinco décadas acumulou cansaço, varizes, calos nas mãos e carne crescida nos olhos. No mês dedicado às mães, ela foi morta na rua Princesa Isabel. Seus olhos se fecharam e deixou na terra suas sementes.

EM - ELAS E AS LETRAS: SEMENTE, PRESENTE - UM LIVRO PARA MARIELLE FRANCO - COLETÂNEA - IN-FINITA

quinta-feira, 21 de setembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 72 - Emanuel Lomelino


Diário do absurdo e aleatório 

72

As noites são vazias de tudo. Vazias de sono, de pensamentos, de sons, de cor. Apenas vácuo como se a vida estivesse em piloto automático, mas sem rumo definido nem propósito.

Abraço o silêncio e a almofada sem motivo concreto ou necessidade aparente. Apenas um gesto instintivo sem sentido, como todos os movimentos indistintos que faço. Talvez sejam espasmos do ser autómato que agora sou.

Deixo-me ficar esticado e imóvel sobre a cama à espera de que o desconforto ou o tédio me belisquem. Apenas fico e aguardo que o balão encha e a paciência, cujo paradeiro desconheço, estoire e preencha o nada que me envolve.

Nada. Absolutamente nada. Até que o primeiro raio de sol me lembra que tenho os olhos abertos e chegou o tempo de, simplesmente, fazer-me ao dia e deixar a vida carregar-me neste sonambulismo.

EMANUEL LOMELINO

Emma Everston (excerto 11) - Ernesto Moamba

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Uma semana depois, Emma decidiu sair com os seus amigos a fim de se despedirem da ilha, e de um maravilhoso rio onde as suas amigas, Lunna e Andressa, se teriam despido durante as investigações.
Já passava das quinze horas, quando um silêncio ensurdecedor, de repente, tomou conta do local. A medrosa Rosey segurou um canivete e afastou-se do rio.
– Gente! Vamos sair daqui. Algo me diz que estamos correndo perigo. – disse Rosey, num tom de medo, enquanto se distanciava, fugindo para o meio do bosque.
– Meu Deus, tenha calma querida! Ninguém vai fazer-te mal. Não é, pessoal?
– Sim, Emma, acho que ela bebeu demais. – riram todos.
Enquanto gargalhavam, Emma começou a sentir-se mal, como se o seu corpo notificasse algo que posteriormente pudesse acontecer.
– Marlon, Vivianne, por favor vamos atrás dela.

EM - EMMA EVERSTON, A UNIVERSITÁRIA DA CIDADE DE SANGUE - ERNESTO MOAMBA - IN-FINITA

Peabiru (excerto 23) - CARLOS DOMINGUEZ

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Esta informação era desconhecida ali e bateu forte no grupo dos peruanos. As discussões foram adiante. A Ciência se fez presente na troca amigável de informações, análises de sementes encontradas em sítios arqueológicos que fotografamos e o surgimento de muitas questões para pesquisas futuras. O achado da tese de doutorado de Verônica Wesolowski, que me contou Luciana Scherer, aponta dados obtidos em séries de crânios provenientes de escavações de sítios arqueológicos dos homens de Sambaqui, pescadores coletores… que têm datações de até 8 mil anos a.C. Wesolowski estudou as cáries dos dentes dos crânios, onde encontrou resíduos de amido com presença de grânulos, tipo milho, batata-doce, carás, taioba e até pinhão. Esta informação da dieta alimentar das populações pré-históricas cria um dilema temporal entre as datas dos primeiros milhos domesticados no continente e a presença nas cáries dos homens de Sambaqui que ocuparam o litoral Sul do Brasil, de aproximadamente 9 mil a.C. até 1 mil a.C.

EM - PEABIRU - CARLOS DOMINGUEZ - IN-FINITA

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 71 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

71

A escrita, na forma mais introspectiva e individual, seja por catarse ou lazer, deve conter elementos diferenciados. E esses surgem com o uso frequente e continuado de ferramentas e habilidades que auxiliem o acto criativo a atingir diferentes patamares qualitativos.

Praticar a escrita com regularidade ajuda a perceber a infinitude de variantes que podem ser exploradas ao criar-se um texto. Qualquer tema pode ser desenvolvido de distintos modos, dependendo dos conceitos propostos, das ideias aplicadas e, acima de tudo, da disponibilidade do autor em colocar-se perante alguns desafios, por mais vulgares ou espalhafatosos que possam parecer.

Quando um autor se consciencializa de que nem tudo o que escreve tem validade qualitativa para ser publicado, ou exposto aos olhos dos leitores, e que o treino ajuda no aperfeiçoamento, a sua mente interioriza a legitimidade do processo e, mais tarde, acaba por aplicar, de modo instintivo, os esquemas aprendidos.

Contrariando o que escrevi anteriormente, mas apenas como exemplo, caros leitores, verifiquem atentamente, com os vossos olhos de ver, como apliquei estes conceitos, que nada possuem de virtuosismo, e vos entrego um texto que, sendo apenas um exemplo dos treinos que faço e pratico com regularidade, para exercitar a vertente criativa, foi escrito e concebido, deliberadamente, sem utilizar palavras com acentos.

Passou-vos despercebido? Podem conferir com uma nova leitura. Enquanto isso, vou ali exercitar-me mais um pouco. 

EMANUEL LOMELINO

Ilhas de paz (excerto 4) - Glória Gomes

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Primeira limitação do empreendedorismo digital, num mercado que parece ter parado nas fronteiras europeias, é o elevado custo da ‘internet’, conexões de rede deficientes, fornecimentos de eletricidade não confiáveis e falta de acesso à tecnologia, deficiente programa de sensibilização dos jovens no uso das plataformas ‘online’ para criação e desenvolvimento dos negócios. Alertar a juventude para a tomada de consciência de que o Facebook e o Instagram são dois grandes monstros de ‘marketing’ “online” e não simplesmente um espaço para postar as nossas vidas pessoais e intimidar quem gostamos menos. Incutir nos jovens a importância de poupança, cada quatro centavos ganhos deveremos investir ou guardar pelo menos um.

EM - ILHAS DE PAZ NUM MAR DE TORMENTO - GLÓRIA GOMES - IN-FINITA

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 70 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

70

Neste dia de faxina nos destroços de mim, entre passagens de espanador nas prateleiras da revolta e borrifos desinfectantes nos espelhos do conformismo, encontro o tapete das memórias puídas sobreposto às lembranças dolorosas de uma realidade que eu próprio ocultei.

Neste dia de limpar os escombros de mim, desengorduro a loiça dos gestos impensados, vejo o meu reflexo envelhecido nos talheres curvados pela dureza dos dias e redescubro os fios rombos das facas que apunhalaram os desejos que eu próprio descartei.

Neste dia de higienizar os entulhos de mim, purifico os lençóis de lágrimas nunca vertidas, lavo as fronhas tecidas com linhas de insónia e emendo os cobertores da inércia com retalhos da sujeição que eu próprio alimentei.

Neste dia de limpeza e expurgação de mim, vejo no brilho dos espelhos reciclados a verdade nua e crua: há muito que vagueio somente pelas margens da vida.

EMANUEL LOMELINO

segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 69 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

69

O banho limpa das poeiras acumuladas, mas o pesado sarro das horas intermináveis continua grudado na pele e emperra os sentidos que pedem clemência. Nem o sabão consegue descontaminar o corpo dorido. Os braços, com duas tonalidades de bronze porque o sol só queima onde não há manga, contrariam a gravidade e as mãos, com a mistura de escaras antigas e recentes, já não têm agilidade para se transformarem em punhos de revolta. As pernas rangem pela montanha de esforço despendido e os pés, coitados, gritam misericórdia por terem suportado tudo sozinhos.

Mas a mente, apesar de tão ou mais fatigada que todos os membros juntos, é quem manda e pede mais umas passadas de sacrifício para se ir comprar qualquer coisa para restabelecer as forças e, assim, evitar pensar nos novos pelos brancos que avistou no rosto cansado e que o espelho denunciou.

EMANUEL LOMELINO

domingo, 17 de setembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 68 - Emanuel Lomelino

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Diário do absurdo e aleatório 

68

Por vezes a ansiedade supera a imperativa urgência de resposta imediata e as intensões ficam por cumprir. A mente como que bloqueia e as acções ficam presas na vontade, como se uma força hipnótica tomasse as rédeas da vida.

O primeiro impulso é abraçar a inércia e deixar-se envolver no vazio de ficar sem chão para caminhar. A energia esvai-se como um sopro rápido e o vigor evapora com o calor da perplexidade de ficar de calças na mão.

O corpo quer recolher-se sobre si mesmo e a razão finge não existir por sentir-se culpada e não querer agravar a desfaçatez cruel de um instante de infâmia e desonra.

Com a desorientação encavalitada nos ombros, as costas vergam sob o peso da vergonhosa incapacidade de reverter o destino traçado e, tal como no jogo da glória, mais uma vez, regressa-se à casa de partida – lugar, há muito, indesejado.

EMANUEL LOMELINO

sábado, 16 de setembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 67 - Emanuel Lomelino

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Diário do absurdo e aleatório 

67

Malaquias nasceu vidente e muito cedo na vida descobriu que era o único. Habituou-se a conviver com as imagens do futuro e nunca contou nada a ninguém, nem mesmo quando, preocupados com ele, os pais o levavam aos médicos tentando descobrir de onde vinha a tristeza do seu rosto, a timidez do seu jeito de andar e a melancolia das suas palavras.

Aprendeu a conviver com as dores, angústias e desesperos que as visões injectavam na sua mente e, sabendo que nada poderia fazer para evitar alguns eventos, decidiu moldar-se a essa circunstância com opções de vida que impedissem os seus estados de espírito de afligirem quem o rodeava.

Malaquias viveu em sofrimento constante, com esparsos laivos de felicidade, muito pontuais, mas no final, pouco antes do último suspiro, fazendo o balanço da sua vida, ele sorriu por saber que todos os seus amores foram escassos mas genuínos, e nunca ter sentido, na pele, o gosto da traição, a amargura do desapontamento, ou a acidez da dúvida.

EMANUEL LOMELINO

Emma Everston (excerto 10) - Ernesto Moamba

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Minutos depois, decididamente, retomaram sua viagem, embora, por dentro, Emma sentisse algo estranho. Seu coração batia anormal e era possível ouvir, as melodias dos seus batimentos cardíacos, do lado de fora. Chegando no local, enquanto as meninas retiravam as bagagens do carro, os meninos montavam as tendas para ao cair da noite deitarem seus corpos desordenados pelo cansaço. A ilha estava deserta de gente, fora os restos de ossos humanos, crânios, e outros indícios de sangue encontrados no local. Bem próximo da tenda, as árvores estavam sombrias como se fossem refúgio dos espíritos mórbidos.
O tempo passava e a cada vez que saiam da floresta aconteciam coisas assustadoras entre uma e outra. Percorrer alguns metros pelos arredores da Ilha e não se atropelar nenhum corpo estendido, com marcas de tortura e vermes a viver em pedaços de carne humana, era meio impossível. A terra estava ensopada de sangue, motivo que levava Emma, juntamente com outros estudantes universitários, a começar, amendrontadamente, a suspeitar da existência de um monstro devastador.

EM - EMMA EVERSTON, A UNIVERSITÁRIA DA CIDADE DE SANGUE - ERNESTO MOAMBA - IN-FINITA