quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

24 Setembro 2018 (excerto) - FRANCIS RAPOSO FERREIRA

LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
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Ao chegar a este ponto de leitura dos acontecimentos que são a sua própria história de vida, e não a de qualquer outra pessoa, Mel, sente necessidade de beber um daqueles licores, de produção própria, que têm o condão de lhe acalmar os calores que, apesar de estar completamente nua, parecem querer queimá-la, mais por dentro que por fora.
Mel, apesar de nunca ter sido uma mulher viciada no álcool, adora um bom licor e, desde há algum tempo a esta parte, fazê-los é um dos seus prazeres, o que além de lhe permitir controlar o teor alcoólico dos mesmos, também lhe permite ter sempre dos que mais aprecia, nomeadamente tangerina e poejos.
Após pousar o diário no sofá, levanta-se, encaminha-se, muito devagar, para a pequena mesa tipo meia-lua, sobre a qual se podem ver uma série de garrafas, só com licores de sua produção. Apesar de se ter mudado para ali há pouco tempo e não receber visitas assiduamente, pois os traumas resultantes dos mais de vinte anos de casada, durante os quais se sentiu mais um animal sem vontade própria que uma pessoa, ainda não lhe permitem levar uma vida social muito agitada, preferindo a pacatez do lar e a dedicação à causa daquelas que sofrem como ela já sofreu, tantos e tantos anos, Mel faz questão de manter o seu stock de licores sempre bem fornecido.
Escolhe uma das garrafas, mais concretamente a que contém licor de tangerina, enche um dos pequenos cálices e leva-o à boca. É ao sentir o contacto do fino rebordo do cálice com os seus lábios, que ousa fechar os olhos e sonhar com outros lábios, pouco se importando em perder tempo a tentar identificar a quem poderão pertencer, visto ter a certeza que só poderão ser os de Lourenço. Uma certeza ela tem, os do ex-marido é que não serão certamente.

EM - DIÁRIO DE MEL - FRANCIS RAPOSO FERREIRA - IN-FINITA

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Filha Selvagem – ISA PATRÍCIO

LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
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Minha voz honra a elevação firme, é cantada ao luar e em cada renascer se esquece da noite anterior para poder cantar continuadamente. Jamais esta voz se rebaixa ao negrume da opressão, à castração soberba porque ela nasceu para ser elegante, por vezes feroz, para se erguer diante vil tirana.

Oh, viva voz que se afirma, que fala de poesia profana e sagrada, bom uso nos métodos de esclarecimento curando silêncios.

Nas labaredas do fogo santo dança a filha selvagem, descalça, com o peito meio descoberto, a saia contornando os joelhos e acompanhando o movimento do corpo numa alegria extasiada. Índia indomada, coração livre, espírito infindo, donzela, maga, mestra do seu ritmo que ora às sete luas e aos nove sóis para que a natureza se resgaste no íntimo e regenere.

É a filha selvagem que sente o caminho da alma, bússola encantada, escoltada de beleza verdadeira faz quanto pode para ser intrínseco seu valor.

Melhor pedra de toque para experimentar o verso do poeta, seguindo métrica transparente no fluxo essencial. Ela beija a alma do poeta como uma chancela lacrada nas iniciais do seu cancioneiro, que vislumbre acarreta doce ocasião.

Somos filhas selvagens que dão bem a conhecer a sua expressão, compreendendo especial graça, quão certa prosa de estilo.

Filhas selvagens isentas de nomes... Sabem quem são!

EM - VERSO & PROSA - COLECTÃNEA - IN-FINITA

Bem Vinda - Karibu (excerto) - ISABEL SOFIA DOS REIS-FLOOD

LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
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Quando estava grávida, lembro-me de ter ouvido imensa música porque achava que tu filho irias gostar. Os bebés enquanto estão no útero materno ouvem não somente os sons que vêm do interior da mãe, como o bater do coração, mas também os que são originários do exterior e eu queria que gostasses do meu género de música para que começássemos a aproximar um do outro ainda antes de nasceres. E não é que tu cresceste com talento musical? A descoberta do mundo sensorial começa ainda quando estamos no ventre materno e, após o nascimento, os bebés começam a querer tocar, e até mesmo a saborear, tudo o que veem.
Houve um pediatra que visitou um hospital de um país do sul e constatou que não haviam brinquedos, nem posters nas paredes, nada que um bebé que pudesse gatinhar conseguisse explorar e que a taxa de mortalidade nesse hospital era de cinquenta por cento. Noutro hospital com ótimas condições mas que também tinha falta de estímulos visuais, os bebés tinham tendência para sobreviverem mas com um desenvolvimento mental abaixo da média. A tua mãe Tomás é como um bebé que precisa de viajar para se estimular sensorialmente.

EM - KIPEPEO SAFARI (A VIAGEM DA BORBOLETA) - ISABEL SOFIA DOS REIS-FLOOD - IN-FINITA

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Memória de um objeto – INÁCIA GIRÃO

LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
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Eu me chamo Elgin. Uma máquina de costura inventada há mais de 150 anos para transformar o modo das pessoas se vestirem, melhorar o tempo e a qualidade na confecção das roupas.

Nos anos de 1940, vivia na casa da Vó Neá. Depois fui ofertada de presente para a Dona Neíse. Uma jovem senhora que começava a aprender a costurar. Eu era formada de madeira e ferro. Pesada e resistente ao tempo. Na minha vestimenta havia dois bolsos em cada lado do corpo, onde guardava linhas, botões, agulhas, colchetes, zíper e tesoura.

Dona Neíse tinha muito zelo por mim. Costumava me limpar da cabeça aos pés, antes e depois de me utilizar. E ainda colocava óleo lubrificante nas minhas articulações, para facilitar meu bom funcionamento. Se eu não recebesse a devida manutenção poderia travar, quebrar linhas e agulhas durante as minhas horas de trabalho. Jamais queria me tornar um ser desagradável a ela. Por muitos anos fui de grande utilidade para ela e sua família.

Anos se passaram e fui me tornando fraca. Minhas pernas criaram crostas e as minhas roupas se desgastaram, ao ponto de não mais ter como consertar. Então fiquei despida, mas não me intimidei. Os membros superiores do meu corpo ficaram separados das minhas pernas. Foram colocados em cima de uma bancada de madeira com um motor acoplado, para que eu pudesse voltar a funcionar normalmente e em qualquer lugar. Passei a ser um objeto portátil. Minhas pernas receberam um tratamento anticorrosivo e uma leve pintura. Foram cobiçadas por Anastácia, a filha de Dona Neíse.

Anastácia tornou minhas pernas mais atraentes. Foram pintadas na cor de ouro envelhecido. Em cima delas pôs uma base de vidro com bordas lapidadas, onde eram colocados enfeites e plantas naturais. Há mais 20 anos estou em sua companhia e faço parte da sua decoração. É lá onde me sinto feliz.

EM - VERSO & PROSA - COLECTÃNEA - IN-FINITA

domingo, 23 de janeiro de 2022

Idas e vindas – IDÊ FERREIRA

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Minha tia estava se lembrando de seu irmão mais velho “que morreu daquela doença ruim que não gosto de falar  o nome”. Contou que, na segunda guerra mundial, por volta dos anos quarenta, o exército brasileiro convocou todos os jovens a partir dos dezoito anos para se alistarem. Com o olhar perdido no horizonte, disse que o presidente Getúlio Vargas, era um homem bom e gostava dos pobres. Ele havia falado pelo rádio que os moços iriam de avião para um lugar distante chamado Itália e iam lutar por lá.

Limpou os olhos na manga do vestido e continuou:  esse  meu irmão, seu tio, foi chamado para a guerra, só  que não entrou no avião; ficou  mais de um ano no quartel, esperando ser convocado para viajar.

Sua avó chorava e rezava, continuou ela. Colocou um retrato do filho vestido de farda no vidro da cristaleira da sala de visita e todos dias, ela rezava frente ao retrato como se rezasse diante de um santo.

Dois meses depois que seu tio foi embora, sua avó descobriu que estava grávida. Foi uma alegria com gosto de tristeza. Teve uma menina, a Ritinha, que  nasceu forte, gorduchinha, cabelos loiros e era a alegria da casa.

Sua avó sentia que seu coração ficava a cada vez mais espaçoso de tanto amor e ao mesmo tempo, sentia um vazio enorme pela ausência do filho.

Ritinha crescia toda sorrateira. Porém, às vésperas de completar um ano, faleceu. Sem mais nem menos. Pediu a mamadeira e pouco tempo depois deu um suspiro e não acordou mais. Ninguém entendeu a razão de sua morte. Foi muito sofrimento.  Segundo a avó,  perder um filho é como arrancar o coração de um corpo sem  uso de anestesia.

Poucos meses depois, seu tio volta pra casa. A avó, ficou parada, olhando pra ele. Ela sorria só com os lábios, porém, seus olhos, além de amor, carregavam uma grande dor. Soluçando, dizia baixinho: – A Ritinha veio ficar comigo até você voltar, só  que, o que eu queria era os dois juntos !

Minha tia limpou o nariz na gola do vestido e ficou em silêncio.

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sábado, 22 de janeiro de 2022

24 Setembro 1995 (excerto) - FRANCIS RAPOSO FERREIRA

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É verdade, tenho a certeza do que te digo, ainda hoje, minha mãe, só gosta dela, não tendo mudado nada com o passar dos anos. Sempre viveu e continua a viver só para ela e em função dela. Se em criança nunca me apercebi dessa realidade, muito se ficou a dever ao amor que meu pai e meu avô, curiosamente os dois homens da casa, sempre me dedicaram, já que minha avó é tal qual minha mãe, vive só para si, para o luxo e para as aparências.
Ao que me recordo, muito vagamente, toda essa boa vida, tanto de meus avós como de meus pais, terá sofrido um forte, e devastador, abanão, quando eu ainda nem tinha festejado quatro anos, mais precisamente em Abril de 1974, logo após a revolução de 25 de Abril e de toda a agitação social que se lhe seguiu.
Ao que me contou meu pai, sempre meu pai, anos mais tarde, terá sido minha mãe, também sempre ela, quem decidiu que o melhor para segurança de todos nós, principalmente a minha, seria sairmos de Lencastre e irmos viver para Sintra, onde meus avós também tinham casa.
Assim foi, pelo que, de um momento para o outro, me vi retirada daquele ambiente bucólico da vila de Lencastre e metida no reboliço de Sintra, que embora ainda não fosse o que é hoje em termos turísticos, também nada tinha a ver com o local onde nasci e passei os primeiros anos de vida. Hoje, posso assegurar-te que foram os meus melhores anos de vida, sempre protegida pelo amor e carinho de meu pai.
Seria ali em Sintra que cresceria e passaria o resto da minha infância e grande parte da adolescência.

EM - DIÁRIO DE MEL - FRANCIS RAPOSO FERREIRA - IN-FINITA

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

A origem da vida: Teoria de um apaixonado - GIGEDO DA SILVA CRUZ

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Há milênios o homem tenta descobrir qual a origem da vida, porém sem nenhuma evidência científica, o máximo que conseguimos até agora foram algumas teorias.
 
Na Grécia antiga, por exemplo, Aristóteles disse, sem muitos detalhes, que alguns animais surgem espontaneamente e não a partir de outros animais de sua espécie. Outros, usando a Bíblia como uma fonte de evidência, alegam que Deus havia criou o homem a partir do pó.
 
Não tenho como questionar estas e outras teorias. Mas deixo aqui a teoria, um relato quase científico, de um homem apaixonado sobre a origem da vida.
 
A aproximadamente 15 anos, aos vinte e um dias do sétimo mês do ano 2006 em torno das 22h, tendo como testemunhas as estrelas do firmamento, um sol de grandeza incalculável chamado Rainha Dagmar atraiu com corpo celestial nômade conhecido por Gigedo, que transitava friamente pelo espaço. Neste encontro uma grande explosão aconteceu conhecida como Big Bang.
 
O sol Rainha Dagmar, com toda a sua força e beleza emanou raios com seus olhos penetrantes, ondas sonoras com sua voz de sereia e perfume carregados de feromônios que exalavam de sua pele.
 
Os raios e as ondas sonoras associadas ao perfume acertaram a alma e coração do astro Gigedo, destruindo as barreiras conscienciais que prendiam o astro frio fazendo com que ele despertasse e acendeu uma fogueira do amor em seu coração.
 
Instantaneamente a vida surgiu no astro Gigedo causando uma verdadeira transformação em todo o seu ser, pois redescobriu sentimentos como alegria e felicidade por estar ao lado de um sol que o iluminava e o fez sair da escuridão. O astro, antes classificado como um astro errante, passou a ser classificado como astro Abençoado.
 
A atração entre os astros Dagmar e Gigedo é tão forte que até hoje é impossível distanciá-los. Não é possível também definir quem orbita quem, apesar da obvia percepção que é o astro Gigedo que orbita o astro Rainha Dagmar, que entre outras características emite luz que aquece o coração do astro Gigedo.
 
Transformações também foram percebidas nas vidas em torno dos mesmo, provocadas pela grande emanação de amor que se dissipa desta relação e já chegou até a criar uma nova vida.
 
Passados 15 anos, nenhum estudos se atreve a tentar definir o limite desta atração que se solidifica cada vez mais.

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Bem Vinda - Karibu (excerto) - ISABEL SOFIA DOS REIS-FLOOD

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Do pátio interior a luz inunda os corredores abertos ao exterior propiciando o desenvolvimento de inúmeras plantas tropicais que refrescam o ambiente. Das amplas janelas, envidraçadas em toda a sua extensão e que dominam a escadaria central, avistam-se os altos edifícios ocupados pelos diferentes ministérios e escritórios, símbolos contraditórios de poder e de progresso.
Um dos empregados, um homem de uns seus trinta anos de baixa estatura e de uma simpatia subserviente acompanha-me ao meu quarto no terceiro andar ajudando-me a transportar as malas. Depois de lhe dar a tão aguardada gorjeta, fecho a porta atrás de mim e ponho-me a apreciar aquele espaço exíguo singelamente decorado. A mobília conduz perfeitamente com o resto do hotel. Um guarda-fato branco de três portas altas, a do meio com um espelho, terminando em três mais pequenas ao cimo. Contrastando com o branco do guarda-fato e das paredes, o preto da cadeira de vime, das duas camas, da mesinha de cabeceira, da cómoda e das figuras dos batiques.
Suspensa sobres cada um das camas há uma rede mosquiteira verde, enrolada em duas voltas. De início não me apercebi da sua função, pensando tratar-se de mero objeto decorativo, mas mal a noite caiu e o zumbido dos mosquitos se fez ouvir desenrolei por instinto a que sobre a minha cabeça pendia e nela dormi como uma crisálida.

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quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Alta Rotação – GABRIELA LUÍS

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Podia estar confortável, mas não estava. A tensão bloqueava-me as pernas, as costas e aquele som fino que fazia perto do meu ouvido deixava-me os pêlos eriçados.

Já não podia sair dali, não havia volta a dar. A cada movimento que acontecia fora e dentro de mim eu agarrava com mais força a mão que me amparava, confiando que tudo iria correr bem.

Fechei os olhos e tentei perceber onde estava o meu coração, se já tinha descido da garganta para o peito. Conseguia ouvir o seu bater num ritmo mais controlado, constante, semelhante ao som da velocidade cíclica do motor.

A minha cabeça estava a ficar pesada, os sentidos adormecidos, a boca seca… Nesse estado, viajei pelos recantos da minha memória tentando encontrar cenários semelhantes, onde tudo tinha corrido bem. Estava a imaginar a minha história naquele momento, como ela se poderia desenrolar, os planos que a mente me apresentava para eu escolher, entre o medo e a aceitação de que embora quisesse controlar aquela parte de mim, nada poderia fazer! Por breves instantes deixei-me ali estar, consciente do medo que sentia.

As gotículas de água e saliva projectadas na minha face, faziam-me passar da consciência exterior para o meu mundo interior, observando a língua pálida e mole que deixava cada gotícula de água escorrer, lentamente, até ser engolida ou removida por aquele objecto que entrava pelos meus lábios abertos.

Em desamparo, doei-me àquele momento, confiando as minhas entranhas ao que sentia lá tocar, não pensando em mais nada, deixei os meus sentidos embalarem-se novamente pela velocidade rasgada e penetrante do instrumento que a mão dele possuía. Sem me dar conta, adormeci.

Quando abri os olhos, ofuscada pela luz que vinha da lâmpada da cadeira do Dentista e sentindo que aquele som desaparecera, percebi que a consulta tinha terminado!

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terça-feira, 18 de janeiro de 2022

A doente celíaca – FRANCISCO LUÍS SILVA

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Ainda deitada em cima daquele colchão rijo que mal protegia os meus ossos da dureza do metal da maca, e já refeita das dores a minha paz interior regressou bem como a alegria. Mentalmente revia a minha alimentação das últimas horas e por mais que pensasse não encontrava nada que me pudesse ter feito mal, mas algures certamente alguma contaminação cruzada deveria ter ocorrido.

- Então como se sente?

- Agora estou bem. Já não tenho dores nem vómitos.

- A menina vinha bem aflita.

- São dores bem horríveis, doutora.

- Imagino que sim. Agradeça a si mesma o facto de saber que é intolerante ao glúten. Ajudou muito. Dado que as suas análises estão normais, e a menina está bem não vejo motivo para continuar cá connosco. Vou dar-lhe alta, mas antes vamos retirar esse acesso venoso.

- Obrigado, doutora.

Minutos depois transpus a porta de saída e lá estava ele pacientemente á minha espera. E… Nada como um reconfortante abraço para me animar.

- Está tudo bem? Passaram as dores?

- Sim. Ainda estava tudo muito no princípio.

- Pregaste-me cá um susto quando me ligaste para o trabalho, e pior fiquei quando cheguei a casa e vi o teu sofrimento.

- Nem tinha forças para e vestir.

- E agora?

- Agora é continuar a ter sempre muito cuidado.

- E temos. Tu sabes que limpo sempre as migalhas que faço. E a tua comida é toda sem glúten

- Pois, mas o perigo não está em tocar nas migalhas, isso não me faz mal. O perigo está em levar depois a mão á boca.

- Só isso?

- Sim. Sabes que ao princípio e antes de saber o que tinha as crises eram menores bem como as dores, mas agora como o meu organismo não recebe glúten, tornou-se mais sensível e reage a quantidades mínimas. Agora quando isto me sucede tenho dores de barriga maiores e passei a ter vómitos como viste e falta de ar, e ainda tu não viste uma crise a sério.

- Imagino.

- Não imaginas não. Os sintomas são muito mais intensos e graves.

- O importante agora é que estás boa. Para te animar um pouco vamos jantar fora.

- Onde?

- Num restaurante certificado pela APC. (Associação Portuguesa de Celíacos)

- Assim aceito. Sabes o que sinto falta?

- Do quê?

- De comer a vontade pastéis de nata e donuts.

- Pois… Temos de descobrir uma pastelaria que faça.

- Há pouca divulgação.

- Infelizmente.

- As pessoas e as marcas ainda não pensaram que os alimentos sem glúten podem ser consumidos por todos e não se nota diferença nos sabores.

- Vá lá que os supermercados vão tendo cada vez mais variedade de produtos sem glúten.

- Felizmente sim. Já posso fazer um prato de massa ou uma boa torrada carregada de manteiga em casa.

- Vá lá que o teu organismo tolera a lactose.

- Perfeitamente. Quem paga é o castrol! (colesterol)

- Ui.

- Uma coisa engraçada, mas que não tem piada nenhuma é que quando pergunto por exemplo se tem alguma sobremesa sem glúten, ficam com cara de parvos a olhar para mim e depois respondem que não sabem. Mas será que as pessoas acham que ser celíaco e consumir produtos, sem glúten é uma moda?

- Se calhar…

- Ainda há muita ignorância e intolerância para com o doente celíaco. Pode ser uma opção de vida não consumir glúten tal ser vegan ou vegetariano. Mas boa parte não pode mesmo consumir glúten por serem doentes celíacos.

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segunda-feira, 17 de janeiro de 2022

24 de Setembro de 1995 (excerto) - FRANCIS RAPOSO FERREIRA

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Meu querido Diário, antes de começar a contar-te o que tem sido a minha vida até hoje, quero pedir-te desculpa por só agora, precisamente no dia em que completo vinte e cinco anos de idade e um de casada, recorrer a ti para registar tudo quanto tenho vivido. Quero também dizer-te que já tiveste um irmão mais novo, o qual acabou por não resistir a um ataque de ciúmes de minha mãe, porque eu, pensando que mais ninguém além de mim, o leria, lhe falei do meu amor e admiração por meu pai, sem sequer tocar no nome dela. Assim sendo, se alguma vez, me sentires ausente, não estranhes, é somente porque não quero correr o risco de também te perder precocemente.
Amigo, estou a olhar para ti e tenho a certeza que deves estar a pensar, mas o que é que esta está aqui a fazer? Porque não vai ela festejar os seus vinte e cinco anos e o 1º aniversário do seu casamento?
Antes de te começar a falar de mim e do meu passado, sei que até pareço uma velha a falar, deixa-me responder a essas tuas duas questões pertinentes. Estou aqui a falar contigo, em vez de estar a festejar tais datas, precisamente porque há nada mais, nada menos de um ano, deixei de ter vida própria, se é realmente verdade que alguma vez a tive. É verdade, com o passar dos anos, convenci-me que toda a minha vida, não passou de uma mentira quase total, e só não digo total, porque da parte de meu pai, sempre senti que me era mostrada a verdade. É isso mesmo, vivi toda a minha infância e adolescência metida numa redoma de falsa felicidade e liberdade. Aliás, hoje, já nem sequer sei se vivo ou apenas sou um holograma de mim mesma.

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domingo, 16 de janeiro de 2022

Bem Vinda - Karibu (excerto) - ISABEL SOFIA DOS REIS-FLOOD

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Guiando pela esquerda, um dos legados da colonização britânica, e, após ultrapassagens arrojadas ao que parecem ser fantasmas de carros e camiões por serem incrivelmente velhos, chegamos ao hotel County. Este hotel, onde penso pernoitar alguns dias até encontrar um quarto mais familiar para o resto da estada, não é mais do que uma pensão. A primeira do estilo que se pode encontrar logo a seguir ao aeroporto. Estou tão feliz por a primeira etapa da minha viagem ter terminado bem que inocentemente pago aos taxistas o injusto preço de novecentos shilings quenianos, e, ainda lhes dou cem de gorjeta.
Ainda me recordo quando cheguei à Austrália pela primeira vez. No aeroporto em Melbourne, esperavam-me o teu pai com um ramo de flores, e os pais dele. Todos eles me olhando de modo apreensivo. Foi-me bastante difícil na altura ter deixado o meu país, dado o estado vulnerável em que me encontrava, a distância da Austrália relativamente à Europa e o facto de pouco saber do teu pai e da família dele. Os meus pais, no entanto, conseguiram convencer e ajudar-me financeiramente a ir embora para os antípodas para eu não ser mãe solteira. A única coisa que me dava mais alento na altura, era a insistência do teu pai, cujos emails ainda guardo, em que fosse ter com ele para ver se conseguíamos funcionar como uma família pois na altura estávamos muito apaixonados um pelo outro.

EM - KIPEPEO SAFARI (A VIAGEM DA BORBOLETA) - ISABEL SOFIA DOS REIS-FLOOD - IN-FINITA

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

24 de Setembro de 2018 (excerto) - FRANCIS RAPOSO FERREIRA

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Tudo o mais que se encontra no interior da caixa, são peças que a fazem recordar uma meninice feliz, sempre sob a protecção paterna. É ao ver, e tocar, em cada um dos objectos ali guardados, que uma evidência ganha vida, não se recorda de ali ter colocado o seu diário, porque, realmente, não foi ela quem o fez, mas sim uma das boas almas, poucas, com quem se cruzou ao longo da sua vida, além de também não ter sido ela quem ali colocou aquela caixa, mas sim Lúcia que fez questão de ir ajudá-la nas mudanças. Um medo, oh não, outra vez os medos, toma conta dela, e se Lúcia tiver lido o seu diário? Ah não, o mais provável é que Lúcia nem sequer tenha aberto a caixa. Sim, o mais provável, quase certo mesmo, é que a tenha aberto, pois só assim poderia saber que se tratava de recordações das quais não se quereria separar, o que implicava ter visto o diário, e, quase certamente, tê-lo lido.
É a pensar em Lúcia, não por qualquer outra razão em especial, que não a de gratidão, pois Lúcia foi quem mais a apoiou nos momentos em que sentiu completamente perdida, pois, tinha de admitir, ao ficar viúva já se esquecera de como era ser ela a gerir a sua própria vida. Outra dúvida se instala no seu espírito, como é que aquela caixa chegara às mãos de Lúcia?
Temendo deixar-se vencer por tanta dúvida e medos, decide tentar esquecer tudo aquilo por alguns minutos e ir tomar um banho, não só para atenuar o calor que se faz sentir e, assim, ficar mais fresca para a longa viagem a que se propõe dedicar uma parte do resto do seu dia de aniversário, mas também porque há muito que descobriu como os jactos de água saídos do chuveiro, têm o condão de a relaxar.

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terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Crónica de um fim talvez anunciado - FÁTIMA D'OLIVEIRA

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Finito.

E foi assim, com uma simples palavra, que sentenciaste a nossa ainda breve história, que nos sentenciaste. De repente, sem mais nem menos e sem dizer água vai, simplesmente chegaste ao pé de mim e disseste-me… aquilo… e ala moço que se faz tarde: nunca mais te pus a vista em cima. Foste embora e saíste da minha vida. Fugiste. De mim, de ti, de nós.

Confesso que na altura me apanhaste completamente de surpresa e que fiquei sem pinga de sangue quando me disseste aquilo friamente, que tinha acabado, numa voz tão gélida que tiveste o condão de arrefecer até abaixo de zero o ambiente à nossa volta e, em consequência disso, o meu sangue enregelar nas veias.

Mas para ser completamente sincera, tenho que aqui esclarecer que a minha surpresa já anunciada, não deveria ser assim tão… surpreendente. Tu não só já me tinhas deixado pistas, como até já me tinhas tentado dizer que a nossa suposta perfeição não era assim tão… perfeita. Era até muito falível… Eu é que escolhi não ver. Preferi enterrar a cabeça na areia e continuar a acreditar em arcos-íris e unicórnios e a tentar convencer-me de, do que eu já sabia bem no mais fundo de mim ser verdade, não ser bem assim. Pode-se dizer que tive medo. Tive medo e deixei-me dominar pelo mesmo. Recusei-me a ver o que estava mesmo à frente do meu nariz e optei antes por uma alegre e abençoada cegueira. Mais do que isso, uma voluntária ignorância. Na altura não percebi, mas eu estava a fazer uma escolha, a MINHA escolha. E com isso, também estava a escolher as minhas consequências: tudo o que daí pudesse advir. Para o bem e para o mal.

Quer dizer, quando eu fiz a minha escolha, é claro que eu não estava a escolher este fim. Mas estava a acolher essa possibilidade, não sei se me faço entender… Não é o que eu queria, longe disso – conscientemente, quem, no seu mais perfeito juízo, escolheria a tristeza e o sofrimento?... E eu digo: ninguém. Mas eu sabia, mesmo sem querer saber, que isso podia acontecer. Pois bem, aconteceu.

E eu não posso culpar ninguém por isso. Ou melhor, poder, até posso: eu. Afinal, fui eu quem não viu, ou melhor dizendo, não quis ver. E agora?... Agora, olha, agora só me resta carpir as minhas mágoas e esperar pela bonança, depois da tempestade. Sempre ouvi dizer «Quem está mal, muda-se». Tu decidiste que estavas mal, mudaste e mudaste-te. E contra factos, não há argumentos. É como disseste: finito.

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A viagem - Safari (excerto) - ISABEL SOFIA DOS REIS-FLOOD

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Após oito horas intensas de voo aterrámos finalmente no aeroporto internacional Jomo Kenyatta. É de manhã, noves horas locais. O sol, já alto, brilha intensamente sob um fundo azul claro de aguarela. A temperatura é amena. O aspeto do aeroporto indica-me que finalmente chego a um lugar muito diferente dos que conhecera até à data. Mostro o meu passaporte ao sorridente funcionário da alfândega e respondo ao seu ligeiro interrogatório acerca das intenções e duração da minha estada no Quénia. Vou em seguida em busca da minha bagagem.
Esta já gira num tapete rolante, cujo modelo antiquado me sugere ter sido o primeiro a ter sido fabricado no mundo. Não me é fácil de dar com ela, pois reconheço junto ao tapete alguns dos passageiros do meu avião. De outro modo, poderia ter dificuldade em encontrá-la dada a ausência de painéis eletrónicos a indicar a proveniência dos voos. Bem, eles até que existem, ou melhor, o que deles resta, peças soltas pregadas num pilar que dificilmente poderão ressuscitar para a sua velha função.

EM - KIPEPEO SAFARI (A VIAGEM DA BORBOLETA) - ISABEL SOFIA DOS REIS-FLOOD - IN-FINITA

segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Quanto vale a felicidade? – ETIANI GARCIA

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Eu sempre soube que a felicidade é um querer sem fim

Viver em busca da felicidade é um caminho sem retorno
Que triste para aqueles que a vida passa e a saga pela felicidade não chega ao seu destino
Talvez se leve mais que uma vida, para entender que a felicidade somos nós que permitimos ter e fazer.
 
A maioria não vive a vida ofertada, a maioria  busca insanamente pela felicidade, que muitas vezes muda de roupa e endereço facilmente.
A maioria incansavelmente corre atrás do próprio rabo, como um cachorro que persegue si próprio, sem perceber que aquilo que é perseguido está consigo.
A maioria vê a felicidade muito além do horizonte, um horizonte distante quase que proibido aos olhos dos que se veem pequenos diante da felicidade.
A maioria sente a felicidade plena como algo intocável, que não pode ser tocada ou sentida na vivência real da vida de dores e desprazeres.
 
Para os sujeitos de posse, a  felicidade parece ser uma coleção sem fim
Quereres invencíveis, poço sem fundo
Preenchem os desejos de sempre quererem mais, ter mais pode significar estar pleno com a felicidade, pobre tolos da busca da felicidade!
A felicidade vale muito mais que isso, os buracos de uma vida plena vão além das posses
A felicidade vive dentro de cada um, se ela não é vista ela ganha aparência de insatisfação.
 
Ter menos é um convite a alma incontrolável de desejos por ser feliz
Ser feliz depende de como você leva o fluxo da vida
Para ser feliz você não depende nem de um terceiro e nem de grandes ofertas
Para ser feliz é preciso ter e sentir a vida como ela é, do balanço da brisa à intensidade de uma tempestade.
 
A felicidade não custa muito, o que custa muito é saber que a felicidade é a sua percepção.
Se engana aquele que almeja uma felicidade sem viver a felicidade do momento.
Se a felicidade é água do mar, que quanto mais se bebe mais tem sede,
A felicidade pode ser o silêncio que vive escondido no meio das pequenas coisas.

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sábado, 8 de janeiro de 2022

Perdida de mim – DULCÍ FERREIRA

LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
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Perco-me nos sonhos, no sono que me abraça e ainda nem anoitece… Perco-me entre os lençóis de linho, na carícia envolvente da camisa de cetim, nas histórias de encantar, nos contos de arrepiar, no pio do mocho que se abriga no telhado do velho moinho. Ouço o cavalgar dos cavalos a passar sobre a ponte que atravessa o rio, onde me espreitas a banhar nos dias que o sol aquece. Há casas de xisto com telhados de ardósia que me avivam um mar de memórias de menina. Nelas me perco e encontro sempre que as marés sobem ou vagam, permitindo os vazios da Alma.

Sabes... Não adianta procurares o mar nos meus olhos ou sorrisos nos lábios que já não te reconhecem...

 

Sentei-me na pedra fria
À espera que regressasses
A mesa posta
A cama feita
O coração preparado
Para aguentar a emoção
Dos dias em que te não via.

 

Há uma lua que espreita
Um luar que ilumina
As ruas por onde vou
Sigo procurando sonhos
Que perdi quando te foste
E a paz que me levaste
E que a mim não regressou

 

Presa a ti sempre fiquei
Todo o meu ser amarraste
À lágrima
À triste sina
Que contigo arrastaste
Deixando na minha alma
Uma profunda ferida.

 

Agora, o sol, as ondas a rebentar na nudez do meu corpo, o colorido da esperança a florir no meu peito, presunção do arco-íris a refletir no teu rosto.

Levantei o olhar… Fiz de nós dois aquela prece e gostei de te ver, ainda que a mim não viesses.


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