terça-feira, 28 de janeiro de 2020

"A" VIAGEM... (excerto) - SÓNIA CORREIA

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Há muito que comprava bilhetes para se perder pelo mundo. Fez as malas vezes sem conta, decidida em subir os degraus da carruagem e partir sem destino. A paisagem ao seu redor já não era senão uma fita enrolada na única bobina de um filme que o seu cinema passava no grande ecrã, sem audiência, sem o cheiro das pipocas, sem entusiasmo. O final não era mais do que um adeus e um convite.

O único trilho que caminhava era o de retorno a casa onde se sente protegida nessa solidão que a acompanha. Na cómoda da entrada guardava lado a lado todos os bilhetes. Os do comboio amontoavam mais alto do que os do cinema. Era evidente o impulso da mudança. Esta noite abriu a gaveta e ficou horas a mover o olhar entre as duas montanhas de intenções.

Num impulso de levar a cabo a mudança foi buscar o baú de madeira rústica, onde gravadas a ponta de faca estavam cravadas todas as datas em que decidira partir. Nele o seu maior tesouro, milhares absurdos de letras que juntou ao longo dos anos de todos os sentires, histórias cicatrizadas em papel no movimento de uma caneta invulgar e já desgastada.

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segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS (excerto XXIV) - MARIA MAGUEIJO

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Passaram alguns meses e o alvoroço para o casamento andava espalhado por toda a vila. A menina Isabella ia casar e tudo tinha de estar impecável. Foram semanas de preparativos. Até arroz doce se distribuiu por todas as casas da vila (voltaram a uma tradição antiga do tempo do casamento da sua avó).
O Vestido tinha sido uma verdadeira dor de cabeça. Isabella queria algo simples com detalhes de cor lilás, e tudo o que encontrara era bonito, mas não a encantava. Camila meteu mãos à obra e fez ela própria o vestido da sua menina. Maria ajudara nos detalhes, Francisca nos acessórios, a tia Caetana era a moderadora, andava bem nestes momentos de quase folia e Isabella parecia uma boneca nas mãos das meninas pequenas.

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domingo, 26 de janeiro de 2020

DA FONTE LAMEIRA AO ALTO DO CAVALINHO - ERNESTO FERREIRA

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Na Fonte Lameira, Miguel bebeu água com um sabor como nunca tinha experimentado. Estava absorvido nesse pensamento e nem deu pela presença de um pastor que o olhava junto a uma capela. Miguel resolveu dirigir-se ao pastor e perguntou-lhe: Sabes dizer-me a quem pertence esta Capela. Responde o pastor: Pertence ao “manhola” da santosa de Asturães. Miguel exclamou: Que idioma é esse? E o pastor respondeu: É o Verbo... ou Verbo da Gata Lapardana.
Então o pastor esclareceu: O Verbo é uma forma de dizer que os Asturianos usavam quando queriam comunicar sem que os estranhos percebessem. Olhe: manhola da santosa é o padre e manhola da esgrabilhação é o professor. Bacalhau diz-se “portela” e vinho é “zola”. Copo ou malga é “cachefre” e então um “cachefre de zola” é um copo de vinho. O verbo que mais se usava era o verbo “besar”; andar, correr é “lastideiro” e casa é “faunho”. Meu, minha é “meu enes”. Então “besar da lastideiro pró faunho de meu enes” significa eu andar para minha casa.
Hoje já ninguém sabe este Verbo e só a circunstância de um antepassado do Miguel ter feito uma espécie de dicionário permite que não se tenha perdido totalmente. O que é uma perda não pela erudição em si mesma, mas pelo que representou para os utilizadores e para a história.
E o pastor mais informou: o penedo que se encontrava a norte da fonte se chamava “cabeça de padre” em homenagem ao padre que erigiu a capela. Então, seguindo a linha de águas vertentes será a linha divisória, comandada pelo alto do espigueiro, o ponto mais alto da serra.
O caminho que Miguel foi sinalizando contemplava as linhas de “águas vertentes”. Nada de especial se apresenta excepto duas situações: a porta do lobo, local onde deveriam passar os lobos quando acossados em montarias, e o Alto do Cavalinho com esplendor igual ao Alto do Castelo. São por assim dizer, duas elevações irmãs.
Foi aqui que Miguel fixou outro ponto divisório.

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quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

A MINHA TELA... (excerto) - SÓNIA CORREIA

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São tantas as mulheres que me habitam numa só alma, tantas as versões que o espírito acorda e adormece, tantos os sentires quantas as paisagens que pincelo num quadro único, remarcável do tamanho absurdo de uma vida com anos corridos de história.

Os pincéis já desgastados prevalecem nas mãos cansadas com relevos e traços concebidos pela luta, das pontes que teimo em atravessar, entre sorrisos de campos coloridos de esperança e lágrimas de temporais. Sou alma por inteiro, sou todos os segundos desenhados a preto e branco ou em arco íris, nesta tela infindável de emoções.

Viajo nessa unicidade de alma onde, residentes todas elas, clareio de brilho ao redor de todas as fantasias que me nascem exuberantes, extensões de areal junto ao mar enquanto anoiteço acompanhada da lua e conto todas as estrelas, como luzes que se me acendem na força tantas vezes puxada do fundo de um poço no descampado rural que me assola.

Sou a alma dessa tela de que me orgulho, elas, as tantas que acamparam para ser e ficar na minha morada não escoam os rios de sentimento, nem tão pouco cabem nas barragens erguidas a cimento que transbordam e desmoronam se preciso for.

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quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS (excerto XXIII) - MARIA MAGUEIJO

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Entraram em casa ainda ao som das risadas de uma tarde feliz. Camila ao ouvir as suas barulhentas meninas foi até ao hall onde, entretanto, Isabella descalçava as botas completamente encharcadas, assim como as meias.
– Mas que preparos são estes, menina Isabella? Nem pergunto o que andou a fazer, uma poça de água e lá vai disto, não é sua marota? Tire já isso tudo e vá tirar também as calças para as secar.
Nunca mais cresce, Jesus, Maria, José (expressão espanhola que Camila utilizava quando estava um pouco zangada).
As primas riam e faziam troça de Camila com um ataque de cócegas a que Camila não resistia, eram as suas meninas e sentia-as felizes. Que alegria.
– Parem lá com isso, tenho um envelope para a Maria. Estejam quietas! - saiu dali o mais rápido que pôde, pois corria o sério risco de chegar à cozinha e ter o jantar a transbordar do tacho.

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terça-feira, 21 de janeiro de 2020

DA CANCELA À FONTE LAMEIRA (excerto) - ERNESTO FERREIRA

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Aí está o Monte do Castelo cuja conicidade nos leva a ilusões de óptica, parecendo que tudo gira à sua volta. O Monte do Castelo seria assim como o centro do espaço e bem merecia, pois à medida que o visitamos mais nos surpreende. São as fontes de água pura, são os penedos de grande dimensão e não menor variedade e forma, são as pedras com laivos de opalas e quartzo puro, são os arbustos de espécies várias, são ainda os vestígios de civilizações antigas (árabes, romanas e até celtas) e acima de tudo a panorâmica que se avista da Ribeira Lima. “e este sitio se olham vestígios de trincheiras, e estradas encobertas tradição que fora tudo fabricado pelos mouros, tem o castelo chamado da Formiga, que o cerca em ponta aguda sitio deleitável à vista, e é tradição que neste monte residiram muito os mouros, onde se tem achado vestígios da sua habitação, por aparecerem tijolos, e ferros velhos” (in descrições paroquiais de 1758).
Chegado ao Cume a vista era ainda mais deslumbrante e Miguel imaginou que muitas teriam sido as disputas por este paraíso e imaginou que teria sido o bom senso que levou as duas freguesias a considerar que o cume era a marca divisória.
Miguel pensou então: pois se considerar este ponto como mieiro, certamente que a linha continuará até ao alto da montanha.
E mais entusiasmado ficou quando avistou uma capela (a Capela de Santa Justa) e não distante os restos de outra capela (Capela de Santa Rufina) que eram, cada uma, propriedade de cada freguesia.
Miguel logo se apercebeu que teria de subir ao Alto da Serra D’Agra para continuar o seu desiderato. Mas a subida parecia dura e como se aproximava a penumbra, decidiu-se por fazê-lo no dia seguinte.

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sábado, 18 de janeiro de 2020

SOU... (excerto) - SÓNIA CORREIA

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Menina, princesa das que moram no momento de castelos, deitada na nuvem de todos os séculos em que as flores exuberantes que abraça lhe preenchem os sentidos, doce nos gestos que não estragam as pétalas que admira, cuida como cuidaria o amor que não existe, mas é esperança.

Não quer amarrotar as nuances do brilho azul que lhe desperta a fome desse tão grande prazer ou conforto. Deitada muitas vezes viaja pelo medieval uso de trajes pomposos que renega depois na nudez onde sente o veludo das rosas supremas e o cetim que as envolve na pele. É feita de sonhos e jamais saberia viver sem eles.

Navega em alto mar, ali deitada, como se lhe tivessem oferecido as arcas de moedas de ouro, perdidas em naufrágios que lhe afogaram o amar. Foi prisioneira de paixões doentes, viveu em sumptuosos palácios, cumpriu penas possessivas em pedaços de vida arrastada pela noção do dever, que desperdício, meu Deus!

Um dia, fugiu. Despiu-se das grades e deixou para trás tudo de exuberante que apenas a sufocava. Foi um basta numa hora em que a trovoada a deixou cair da nuvem. Quanto mais se afastava mais sofrer a vida lhe conferia e ainda assim foi quando começou a ser realmente feliz. Hoje tem liberdade e, mesmo que o azul das rosas seja presente seu, abraça como vitória.

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sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS (excerto XXII) - MARIA MAGUEIJO

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– Bom dia Camila. Que manhã bonita, quase tão cheirosa quanto o teu café.
Camila virou-se para Isabella e disse-lhe:
– Sabe que a vi crescer, menina, e que estarei sempre consigo. Preocupei-me muito quando cá não estava, mas sempre acreditei que voltaria mais forte. Mas encontro-a frágil e sempre a esconder o seu olhar, triste e melancólico. Não o faça. Todos a amamos e queremos que ultrapasse as dores e siga a vida bonita que merece.
– Sim Camila, eu sei e agradeço as tuas palavras. Apenas eu conseguirei ultrapassar com a minha força, tenho de ser mais positiva e, claro, com o vosso amor, tudo será mais fácil. Mas não tem sido Camila. Foram meses de muita dor, culpa, e ainda não consegui perdoar-me. Foi uma missão muito forte que Deus me colocou nas mãos e eu assumi-a sem pensar. O medo foi tanto, que algo de mau acontecesse, que fui em frente sem olhar em volta. Teria tido outras saídas, mas assim foi e agora já não se apaga como se apaga um risco num caderno. Serão páginas em branco que terei de (re)escrever com mais convicção e sem recear o meu valor e ser mais guerreira. Também sei que me tornei mais fria, mais cautelosa, mas mais frágil, ao contrário do que deveria ser.
– Ainda tem medo que algo mau nos possa acontecer? Foi por proteção que aceitou a missão.

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quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

DO RIO À CANCELA (excerto) - ERNESTO FERREIRA

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Miguel levantou-se cedo para continuar a tarefa. Resolveu seguir o caminho de Estivada, onde só não ficou extasiado com a beleza dos campos porque já tinha visto igual na Veiga da Lousa e Veiga do Sobreiro. Aqui a diferença, nesta Veiga de Estivada, é a proximidade do início da montanha, o que torna o quadro mais diverso, corre o dito rio de norte para sul da ponte para baixo, corta uma grande planície de que é agricultada de lavradores, que aprimora uma das margens do Rio Lima, a que frei Bernardo de Brito chama os Campos Elísio (in descrições paroquiais de 1758).
Em Estivada mora um herói: Chamam-lhe “Cavalaria” dado ter sido um valente soldado dessa arma, onde passou a sua mocidade.
Regressado à aldeia o seu comportamento nem sempre tem sido pacífico e daí a tornar-se um “varredor de feira” foi um instante.
E ele nada fazia para que não o considerassem assim, antes pelo contrário. Mas como diz o provérbio, “cântara tantas vezes vai à fonte que um dia quebra a asa”.
Pois um dia em que uma das querelas azedava lá estava o Cavalaria, mas desta vez também, e do outro lado, um jovem chamado Manuel Sousa, jovem de boa apresentação, educado, generoso, galã, bem ginasticado e senhor da força que a natureza lhe deu e a profissão ampliou.
Ora bem, o Sousa vai-se ao Cavalaria, muito rapidamente o derruba e, sem humilhação, o aconselha a mudar de atitude.
E aconteceu o inevitável. Daí em diante, quando Cavalaria fanfarrona da sua valentia, sempre alguém o questiona: e o Manuel Sousa? E a resposta seca e envergonhada é: a esse homem, eu respeito!

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segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

DESCALÇA... (excerto) - SÓNIA CORREIA

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Descalça subiu no vento. Procurava um propósito que não fosse o de ver os ponteiros do relógio correrem pelos números, a esgotar o tempo, tinha perdido a bagagem, ao seu redor deixou de sentir o calor dos tantos que a decepção sangrou em sulcos, passaram anos desde então.

Entre a morte do desespero e os escombros da vida partida de lágrimas, ácidas sem rumo, aceitou arrumar os despojos e guardou todos os sapatos de princesa. Ficou sem chão, viu o castelo ruir, não foi feliz, ou foi, tantas vezes quantas acreditou nesse reinado que ainda hoje lhe lembra o lado dócil, o mesmo que detonou dentro dela a explosão e deixou vazios os baús.

Hoje anda descalça. Faz anos que congemina o plano da ascensão, enquanto serve outros castelos no lugar de Gata Borralheira que aceitou temporariamente resignada. Barafusta sozinha, mas aceitou que não há justiça em todas as coisas.

Não morreu, pelo contrário. Os olhos dela vêem beleza onde nunca antes a encontrará. A simplicidade humilde educou-a no caminho mais íngreme e em segredo tem traçado um lugar no mundo que esboça nas nuvens e cumpre em segredo.

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domingo, 12 de janeiro de 2020

HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS (excerto XXI) - MARIA MAGUEIJO

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Isabellla por sua vez adormeceu quase repentinamente, todavia, ter sabido que Duarte a procurara de novo foi desconcertante e teve um dormir muito atribulado. Entrou num sonho no meio de uma gruta aquecida com tochas. Um caminho estreito com o chão em areia branca como no mais belo deserto e no fim uma porta de dimensões gigantes e imaculadamente branca. Abriu a porta e a respiração ficou presa, o olhar incrédulo e a sensação foi uma explosão de cor. Perecia que estava nos jardins de Monet em Giverny na Normandia. O mar ainda ficava longe, mas existiam rios e todos com jardins como os de Monet. Tantos aromas, tantas cores maravilhosas, verdadeiras odes à beleza mais rara. Sentiu que conhecia tudo ao detalhe, que também a conheciam e tudo era alegria, até o seu caderno e a esferográfica estavam numa mesa pequenina e ao lado uma cadeira de cor lilás pintada.
O seu vestido era branco com bordados vermelhos, a acentuar a sua cintura fina, a fita do cabelo era do mesmo tom e pairava felicidade no ar.

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sábado, 11 de janeiro de 2020

DA LOUSA AO RIO (excerto) - ERNESTO FERREIRA

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Era meio da tarde e não havia nuvens no céu. Apenas uma ligeira brisa vinda do norte fazia tremer as folhas das árvores. O que Miguel via era tão profundo e tão belo que nem se apercebeu da presença da Poesia, que aliás não estava prevista. Miguel já não sabia se a beleza era a Poesia ou se a Poesia era a beleza. Fosse ou não qualquer delas, o certo é que sempre aparecia quando a paisagem ou o ambiente se aproximavam da perfeição. O que se avistava era uma sucessão de campos de forma rectangular, sendo as estremas bem definidas. Alguns dos campos já estavam com milho a crescer numa tonalidade verde que nenhuma tinta consegue sequer imitar. Outros campos estavam cobertos de ervas conhecidas, tais como malmequer, scilla, tremocilha, travisco, etc, de todas as cores, mas onde predominava amarelo, roxo, branco e púrpura. Miguel estava encantado e só a custo próprio desviou o pensamento para a tarefa que tinha de realizar. Então reparou que entre duas das leiras a estrema era mais elevada em direcção a sul e depois vira a ponte até ao rio. Miguel não hesitou em validar esta estrema como linha divisória.
Poesia pareceu muito alegre, não sabendo Miguel se assim estava por ver que ele já ganhara o espírito Asturiano, ou por compartilharem o mesmo quadro florido que dava pelo nome de Veiga da Lousa.
Miguel deu por acabada a tarefa do dia e aproveitou para tentar ouvir mais uma peripécia do Ti Reinaldo. Quando chegou ao Moinho estava o Tio Joaquim Landim, a contar heroicidades da sua existência. E sendo um exímio lutador do Jogo do Pau, também conhecido quanto a ser imaginativo ou mesmo deformador da verdade, contava uma das suas lutas “de varrer a feira” e terminava a descrição da luta dizendo: Oh meu amigo, isto tem que ser “pancada dada, pé mudado”. E fazia aí mesmo uma demonstração da técnica do Jogo do Pau.

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quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

ESCRITOS EM PAPEL... (excerto) - SÓNIA CORREIA

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Todos os dias na distância esperavam o carteiro. O coração batia esbaforido na expectativa semeada, uma distância entre as duas caixas de correio impossível de alcançar. Tempos gloriosos esses quando o amor passava através do mundo para chegar ao templo do destinatário.

Pedaços, folhas de papel, testemunhos de muitos sentires com borrões de tinta por entre as letras, as mãos trémulas e atrasadas quando o sentimento empurrava para o cérebro o tanto que queriam fazer saber um ao outro, mas a emoção explodia tão mais depressa dentro da alma, tsunâmica até.

Ela perfumava os manuscritos com o cheiro que ele já compreendia reconhecer. Sabia que ao abrir os envelopes que transportavam o amor lhe provocava o cerrar dos olhos num beijo de suspiros e quase que lhe tocava a pele com o aroma dela numa realidade transcendente.

Promessas gravadas em frases que desenhavam futuro, desejos escondidos num véu de confissões. Eram as cartas que tanto ansiavam que lhes dava vida, tesouros guardados em caixas de lata e embrulhadas em laços de cetim, o amor eternizado dentro de envelopes.

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terça-feira, 7 de janeiro de 2020

HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS (excerto XX) - MARIA MAGUEIJO

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Já era noite avançada e aquelas duas tagarelas continuavam no atelier.
Maria com o entusiasmo de quem ama a Arte que assumiu como profissão, tudo devido a, teimosamente, querer modificar uma escultura que lhe tinham oferecido e que já estava com traços de uso, até se transformar num hábito diário e apaixonante. Acabou o trabalho que devia e começou a colocar em cima da bancada tudo o que necessitava para restauro de uma imagem, do sec. XVIII, de uma Cruz de Cristo, toda em pau santo e que estava em muito mau estado de conservação.
– Esta vai dar-me muito trabalho. Não é enorme, mas precisa de um restauro de Amor. Trataram na com muito pouco cuidado.

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segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

DE BOUVIM A PORTELO DA LOUSA (excerto) - ERNESTO FERREIRA

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Uma vez encontrado o início dos limites, Miguel estava indeciso se deveria seguir para nascente, descendo o rio, ou para poente, seguindo a ribeira das Andorinheiras. Decidiu descer ao longo do rio, que resultou da junção das ribeiras, passando a ter o nome de Rio Ciadouro, mas mais nomeado de Rio Asturães. Olhando atentamente, para perceber onde estava, viu que a margem direita era morfologicamente diferente da esquerda, indicando imediatamente que seria o rio a linha divisória.
Mas de repente a situação inverteu-se: agora a margem direita era plana e verdejante e a esquerda tornou-se montanhosa. Facilmente se concluía que a linha divisória de aí em diante, não seria o rio. Se aí colocássemos um marco seria o marco de Bouvim.
Cansado da caminhada, Miguel subiu até um pequeno morro, onde uma formação rochosa parecia um Castelo. Aí se sentou, mas rápido se levantou quando, daquele ponto, avistou a beleza e diversidade de cores. Não teve dúvidas: podia colocar aí um marco divisório.
Miguel estava a estranhar a ausência da Poesia e nem de propósito ela aí estava. Perguntou ao Miguel se tudo estava conforme imaginou, e disse-lhe: Daqui até encontrares de novo o rio, possivelmente, não me verás. No entanto quero deixar-te uma indicação que podes ou não, utilizar:

Da amieira com paisagem
Até à fonte de frem
De cerquidelo passagem
E das lebres também

Na cabana a gente sente
A presença de casa nova
A eira de cima não mente
O marco de pedra é a prova

Destes campos de milho
Desprimorar ninguém ousa
Se seguires o trilho
Estás no Portelo da Lousa

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sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

VOU SONHAR SEMPRE... (excerto) - SÓNIA CORREIA

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Ao redor dela apenas um vazio, talvez o mesmo com que vive há muito, nesse sofá, entre paredes nuas de som e gargalhadas ausentes de outra presença.

Os céus chovem e o aconchego é apenas a manta de retalhos que deseja tenha o cheiro dele. Esmoreceu no frio da distância que os separa, da janela apenas colhe pedaços de imaginação, querer e sonhos que lhe trespassam a mente e afagam a alma.

Deixa cair a cabeça nas mãos, respira a esperança no silêncio, nada lhe alivia a falta do colo e os dedos por entre os cabelos, anda em círculos sem se mover sequer, está em paz, mas não preenchida, calma, mas não sossegada.

Já é rotina ao domingo entregar-se por escolha, à inércia que até podia ser o tricotar de um novelo de lã macia, transformá-lo em chão de algodão, frente à lareira a arder, onde fariam amor, onde se uniam nos fios de lã para os gravar num manto de vida, sentida intensamente no prazer suado, dos corpos unidos no gemer.

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quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

HOJE VISITEI UMA CASA LILÁS (excerto XIX) - MARIA MAGUEIJO

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Camila vivia com eles já há muitos anos e conhecia muito bem todos eles. Com Margarida tinha aprendido a gostar de boa leitura, escolhia os autores com cuidado e, a par com o jardim da menina Caetana, eram os seus melhores lazeres. Tinha o seu quarto perto do de Maria e, de vez em quando, ouvia-a chorar devagarinho.
Tinha saudades da filha que trocou Portugal pela Suécia, saudades de todos os que a tinham visto e ajudado a crescer e já faziam parte do reino dos mortos. Saudades das longas conversas que tinha com a sua mãe e que hoje já escasseavam devido à doença dela. Tinha saudades de quando brincava com Isabella no jardim, sujavam-se de pó até ao cabelo, e dos ralhetes da avó.

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quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

PONTE DO LOURINHAL (excerto) - ERNESTO FERREIRA

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Miguel acordou cedo, se é que se pode chamar sono a um descanso mental. Como disse, o tempo sobre o qual aqui tratamos não se mede em horas ou dias, mas sim em acontecimentos mais reais ou mais sentidos.
O dia estava primaveril e apetecia mesmo começar o trabalho de marcação. Por onde começar era o segundo problema, porque o primeiro era não ceder ao desejo de continuar a ouvir as estórias (peripécias) do Ti Reinaldo. Então Miguel tomou a decisão: vou mesmo iniciar o trabalho, disse para si mesmo.
Mas por onde começar? O melhor é perguntar à Poesia. Assim o fez, mas surgiu o primeiro obstáculo: Poesia estava super ocupada com as pessoas que, aproveitando o tempo magnífico, se resolveram a procurar a sua disponibilidade para melhor gravar os recantos de Asturães.
Miguel ficou um tanto desorientado, mas de repente lembrou-se: vou pedir ajuda ao Ti Reinaldo. Sabendo que dei a palavra a mim próprio que venceria o desejo de continuar a ouvir as estórias fantásticas.
“Palavra prometida, palavra cumprida”, pensou. E assim o fez.
Chegado ao moinho questionou o Ti Reinaldo, que lhe disse:
– Miguel, as tarefas devem começar pelo princípio e posso contar-lhe uma estória para o ajudar. Miguel ficou sem jeito, pois não podia ouvir a estória sem faltar à palavra que era honra, mas também não queria ser desagradável para o Ti Reinaldo. Surpreendentemente e na curva do caminho surge um pequeno grupo de pessoas, com a Poesia à frente, cada um trazendo um molho de linho que iam colocar no areal na extremidade da ilha, mergulhado na água para fazer parte do tratamento do linho. A Poesia percebendo a dificuldade do Miguel disse:

Esta ponte pede meça
À outra sua igual
Chamada do Lourinhal
Onde tudo acaba ou começa

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