M. P. Bonde: Um Honesto
Artesão da Palavra
“…Que deve o poeta fazer para ser um bom poeta?”, questionou-se Mário
Faustino, crítico literário e poeta brasileiro, com um quinhão de sátira na
língua. Macvildo Pedro Bonde, que assina M. P. Bonde (quiçá, inspirado em C. S.
Lewis), lançou, no começo deste ano, o seu primeiro livro, “Ensaios Poéticos”,
um caderno de prosa-poética que caiu nas graças dos leitores e da parca
crítica: voz própria – ainda que seja um autor de várias referências, sobretudo
Rimbaud, Walter Benjamim, Pessoa e Patraquim –, e aceso cultor da palavra,
escolhida entre a descrença e a obsessão. Mas M. P. Bonde não é um “novo
poeta”, a sua actividade poética já era largamente sabida antes mesmo da
publicação destes “Ensaios”, publicado aos seus 37 anos. Participou em
antologias, publicou em web-revistas, foi (é) activista cultural e dizedor de
poemas. Para M. P. Bonde, o livro não sai tarde, por um lado, “o tempo foi-me
útil para conhecer e amadurecer a minha poesia”, por outro lado, o poeta ficou
à espera de um projecto editorial que o seduzisse. M. P. Bonde disse, em
resposta à minha provocação em torno dos “poemas geniais” (p. 33), que neste
caso compõem o livro, “ainda não estou lá, vou procurando, todos os dias, roçar
esta genialidade”.
Conheci o M. P. Bonde em 2011, quando Fernanda Angius criou a oficina de
escrita, no Instituto Camões. Por lá conheci, ainda, escritores como o Mbate
Pedro, Nelson Lineu, Mauro Brito, entre outros. Bonde, como todos os outros,
procurava aprender mais e, sobretudo, um revisor-editor. De lá para cá, voltei
a revê-lo em 2015, na casa da professora Angius, antes de passarmos a
frequentar mais lugares que nos passariam a ser comuns.
Este “Ensaios Poéticos”, editado pela Cavalo do Mar, é como o respirar
de uma baleia azul, junto à superfície, onde o poeta deixa de ser asceta, deixa
de viver no seu desassossego, nos tais “lugares incógnitos” (p. 32), em busca
de “um lugar ao sol” (p. 47). Enquanto via os “outros” publicarem, Bonde terá
vivido um inferno, se percebido o inferno como “possuir um talento que não pode
ser usado”, como diria o antigo senador americano Gary Hart. A prosa-poética de
M. P. Bonde é construída com bastante cuidado, de forma sigilosa, não a 180, como
o fazia Eduardo White, na sua insensatez, no seu “prazer invulgar em andar no
carrinho de rodas (White, 2008), mas a conta-gotas, como quem se vê metido numa
ampulheta, e “O silêncio é uma chacota” (Bonde, p. 41). O processo criativo de
M. P. Bonde é bem diferente do de White, mas os resultados são igualmente
excelsos.
Em suma, este volume de poemas sofre de um grande vício, o
comprometimento, a ideia de que tudo não passa de mero “exercício poético” (p.
52), que origina no autor um “desespero sem igual (idem). É por isso, creio,
que M. P. Bonde faz uma poesia neo-realista, “que não reproduz a realidade como
ela é, fotograficamente, mas, sim, a realidade dinâmica (o seu movimento), na
totalidade dos seus aspectos (Coelho, 1984). Como dissera antes, este é um
“livro do desassossego”, interior e exterior, por isso o autor vai desfilando
pelas noites, cidades, épocas e sentimentos (p. 13, p. 14, p. 16 e 17, p. 18 e
23, etc., respectivamente). M. P. Bonde levou 4 anos para ajuntar estes
“Ensaios”, sobrepõe o pensamento à sensação, e a sua poesia torna-se, afinal,
meta-poesia.
Conversei com o M. P. Bonde no final de Março, numa das mesas do
restaurante da Associação dos Escritores Moçambicanos. Atrasei-me, o poeta
queixou-se da minha demora, ele tinha ainda de retornar ao seu posto de
trabalho e, depois, pegar o filho na escolinha. Quando ia começar a entrevista,
outra tragédia, eu tinha deixado o guião na mesa da cozinha de casa. Que
remédio: tive de apelar à memória. M. P. Bonde contou-me que não sabe “como se
descobre o bichinho da escrita”. Ele sempre sentiu que havia algo dentro de si,
como uma semente por brotar. Os livros infantis, a começar, e leituras adultas
(“Portagem”, “Uma época no inferno”, “O Estrangeiro”, “O Livro do
Desassossego”, “País de mim”, etc.), depois, criaram condições para que o poeta
surgisse. “Viver é mais fácil do que escrever”, disse M. P. Bonde, citando
Hemingway. Algumas das perguntas que fiz, com detalhes pessoais, tiveram as
seguintes respostas:
Tem hobbies?
Música. Toquei flauta. Também dancei. Danças tradicionais, nada de
quizombas!
Há algum poema que já te fez chorar?
“Alquimia do verbo”, de Rimbaud. Há uma toda história por trás da obra.
Com o que trabalhas?
Comunicação, mas sou formado em história.
O teu trabalho, de certa forma, inspira a tua arte?
Estou a trabalhar com comunicação há poucos anos, logo, não influenciou
este livro.
Sempre quis ser poeta? Quando decidiste que querias escrever
prosa-poética?
Não sei se se decide ser poeta, penso que seja resultado de várias leituras.
Quanto à prosa-poética, foi depois de ter lido Rimbaud, Herberto Hélder, o
“Desassossego” de Fernando Pessoa. Eu percebi que escrevendo em verso, perdia
alguma coisa.
Os temas deste livro, são fruto de uma procura ou eles aparecem?
Para este livro, eles apareceram. Os outros (no prelo) são mais
temáticos.
Durante a entrevista, M. P. Bonde revela-se uma pessoa tímida, de poucas
palavras. Cruza os braços, fica calado, ri-se, ironicamente. Gesticula, às
vezes é um agricultor que planta arroz. Como poeta, Bonde diz que procura ser
“autêntico dentro duma realidade em que se cruzam saberes”. Aceita que vive
numa época em que tudo já foi dito e escrito, mas cita Walter Benjamim, “o que
faz com que uma coisa seja autêntica é tudo o que ela contém de originariamente
transmissível, desde a sua duração material até ao seu poder de testemunho
histórico”. Estamos cansados, ambos não almoçamos, fazemos uma pausa para tomar
uma sopa de legumes. Peço também dois copos de cerveja. Enquanto saboreamos,
analisamos a onda de oferta de livros protagonizadas pelo Fundo Bibliotecário
de Língua Portuguesa.
Minutos depois, volto a ligar o gravador do telemóvel. Pergunto-lhe se
tem, também, uma paranóia pela “ilha”, como Knopfli, Saúte, White e Sangare
Okapi, mesmo a propósito de um dos seus poemas (“Ilha”, p. 19). Bonde vinca o
sobrolho, diz que sempre gostou dos mistérios que envolvem a “Ilha”. Cita
Patraquim e a Ilha de Moçambique, a Ítaca de Kavafis, Zanzibar e a ilha
imortalizada em Robinson Crusoé, de Daniel Defoe: a “minha viagem imaginária”.
Na questão seguinte, pergunto-lhe se “tem tempo para a poesia”, sobre o seu
“projecto de poeta”, e Bonde dá a sua definição de poesia:
Terei sempre [tempo] enquanto tiver forças para tal. Se pudesse viveria
apenas esse mundo lúdico. Mas, a vida não é só de flores. Ela empresta-nos
outro status, como pai, irmão, filhos ou trabalhador com os quais
devemos conviver de forma harmoniosa, embora a poesia sempre mostre as suas
garras, porque transmite liberdade. É essa liberdade que procuro, e não ter
tempo para poesia, far-me-ia. Gosto de trabalhar a palavra. A poesia é verbo.
Durante o curso da conversa, vamos tocando vários assuntos, a sua
dificuldade em titular os textos, o que faz com que eles sejam identificados
por uma só palavra (p. 13, p. 15, p.16, p. 17, p. 40, etc.), a ausência de uma
dedicatória geral, já que alguns poemas são dirigidos (p. 15, p. 19, p. 33 e p.
47), e sobre as alusões a diversos autores ao longo dos poemas. M. P. Bonde
sorriu, parecia um poeta satisfeito: “São os meus autores”, disse.
Tinha ainda duas perguntas por fazer, mas o tempo escasseava. Resolvi
desistir de questionar sobre a ideia “de arte pela arte” nos seus textos
(“Quantos exercícios faltam para o poema vertical?”, p. 14; “Onde encontrar a
chama da palavra correcta…”, p. 25; “Palavras para quê?”, p. 41), e procurei
saber da sua relação com o falecido poeta existencialista Adolfo Saphala, a
quem Bonde dedica o poema “Adolfo Saphala” (p. 33). “Conheci-o no ICMA”, disse
ele, “depois de uma noite de poesia”. Bonde emociona-se quando fala de Adolfo
Saphala, os seus olhos brilham, fica boquiaberto, as palavras fogem-lhe com
insistência. “Éramos muito próximos”, explica, dando ênfase ao camaradismo e às
aventuras pelas ruas escuras da Baixa de Maputo. “Ele já tinha o seu talento,
nós estávamos ainda aí… Ele inspirou-me bastante. Ele era mais maduro. Era uma
pessoa insatisfeita consigo mesma”, Bonde parece recordar-se de um momento
específico, depois fecha. “Faltou-lhe tempo para mostrar o seu talento.”
Referências
Bonde, M. P. (2017), “Ensaios Poéticos”. Cavalo do Mar
edições: Maputo.
Coelho, Eduardo P. (1984), “A Mecânica dos Fluídos – literatura,
cinema, teoria”. Imprensa Nacional – Casa da Moeda: Vila da Maia.
Hart, Gary (1996), “O Príncipe”, in: Great
Books, documentário. Discovery Network: Nova Iorque.
White, Eduardo (2008), “O Homem a Sombra e a Flor &
algumas cartas do interior”. Texto Editores: Maputo.
Mini Biografia
Pedro Pereira Lopes é escritor, docente universitário e pesquisador. Fez
rádio, música e criou os blogs "Kumbukilah" (2009), "cadernos de
haidian" (2012), "Entre Aspas Escritor (2013), entre outros. Editou a
web-revista de literatura jovem “Lidilisha” e assina a coluna "Vão homens
ao meu lado distraídos", no jornal "Debate". Tem formação
superior em Administração e Políticas Públicas.