domingo, 11 de maio de 2025

Devaneios sarcásticos 16 - Emanuel Lomelino

Devaneios sarcásticos 

16

Na penumbra dos becos, os tijolos quebrados são testemunhas assíduas das vidas que se cruzam, entre pestilências, azares e necessidades, regadas a vícios e adições.

Abrem-se pernas e goelas ébrias, em rituais de praxe mundana, enquanto roedores e varejeiras, alheios aos marujos caídos e carochos ressacados, procuram as águas-furtadas de um contentor chamariz.

As sombras são armários onde os cobardes aconchegam as vertigens, os corcundas ganham linearidade, as pegas aliciam sob pressão de lâminas e chumbo, e os vasilhames dividem espaço com latex e filtros alcatroados.

No aconchego da escuridão noturna, os corretores de fumo e caldo especulam piercings, ao ritmo dos batuques abafados que saem das caves guardadas por adoradores de halteres.

Há um gato que mia, um caixote remexido, um pneu que derrapa, um copo que se estilhaça, um isqueiro que é acendido, um rosto que se ilumina, uma baforada que se cheira, um tumulto que se gera, um grito que se escuta, um vulto que tomba, uma poça que se forma, passos que fogem e o silêncio cúmplice que nada viu ou ouviu.

EMANUEL LOMELINO

sábado, 10 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 42 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

42

Quando a Tília oferece os seus botões ao mundo, o ar fica impregnado pelo cheiro de renovação, que nem as águas choradas tardiamente conseguem disfarçar.

O vento assobia uma valsa, apenas bailada pelas alvas gaivotas desnorteadas e alguns pardais zombeteiros, que ainda não esqueceram a fábula de João Capelo e insuflam as plumas negras.

Há um grilo cantor a imitar cigarras roucas enquanto as formigas regressam, impávidas e indiferentes à cantoria, à sua vidinha de sempre sob o olhar guloso dos piscos e lagartixas que tomam banhos de sol.

O jardim verdejante é patrulhado por dois gatos vadios que desejam encontrar um pombo distraído ou um roedor imprudente, sem deixarem de ter um olho na refeição e outro em alerta canídeo.

Tudo isto acontece, entre calçadas, nas margens do movimentado asfalto, onde a vertigem é prioridade e os insectos atropelam para-brisas e olhos nus.

EMANUEL LOMELINO

A criação (excerto 2) - Rose Pereira

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Marta, entretanto, aproveitava a caminhada que fazia quase todos os dias, de casa ao trabalho e depois para o curso do magistério, para sonhar acordada, planejando a vida ao lado de seu amor. Contabilizava, na cabeça, as economias guardadas para realizar os sonhos com ele.
Quando René aparecia, enchia de carinhos e convidava para fugir na traseira da motocicleta. Era o bastante. Estava certa de que, cedo ou tarde, mais ajuizado, se tornaria um esposo responsável.

EM - ESTAVA ESCRITO - ROSE PEREIRA - IN-FINITA

sexta-feira, 9 de maio de 2025

Pensamentos literários 24 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 

24

Inflamam-se-me os genes da revolta quando os meus sentidos são atingidos pela imodéstia dos autodenominados vates da modernidade, que nem sequer sabem a diferença entre estrofe e estância, confundem haiku, tanka, limerick e poetrix, desconhecem o tautograma, fazem glosas sem mote, não sabem distinguir estruturalmente um soneto inglês de um italiano, de um monostrófico nem de um estrambótico e, valha-me Nossa Senhora da Língua Portuguesa, chamam acrónimos aos acrósticos.

Não se pede que todos saibam escrever odes, éclogas, elegias ou vilancetes. Tampouco se exige lirismo ou erudição específica, no entanto, saber identificar redondilhas, diferenciar trovas, canções ou baladas, não seria despiciente.

O que mais dói é conhecer alguns que até sabem muito do ofício, mas deambulam no universo da escrita com complacência pela ignorância colectiva, limitando-se ao silêncio por medo de perderem aplausos se mostrarem conhecimento acima da média.

Embora a voz deste burro não chegue ao céu, continuarei a afirmar que a maioria não sabe a diferença entre verso livre e prosa poética e que poesia e poema são duas coisas distintas.

EMANUEL LOMELINO

Missão fada do dente (excerto 1) - Daniele Rangel

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Quando o pai chegou, combinaram de deixar três dinheiros de papel para surpreender a filha e esperaram que adormecesse num sono profundo. Ficaram os dois acordados, deitados, com sono, esperando… A mãe vez por outra ia até o quarto dela espiar, mas não se convencia de que havia dormido mesmo, pois ainda se remexia na cama. O pai pegava no sono e ela o acordava. Assim, nessa tensão, ficaram a madrugada.

EM - TUDO SOB CONTROLE - DANIELE RANGEL - IN-FINITA

quinta-feira, 8 de maio de 2025

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 32 - Emanuel Lomelino

07-04-2024

Por mais incompreensível que possa parecer, todos os silêncios têm um discurso acoplado e as asas das borboletas ficam mais fortes a cada batimento.

Nem todas as percepções correspondem à verdade dos factos e os hologramas, antes de serem avanço tecnológico, já faziam parte da vertente ficcional das prosas enxeridas e abelhudas.

Não esqueçamos que as pedras podem virar pó e este transforma-se em barro ou lama, dependendo da quantidade de água derramada.

Depois temos o vento que, num ápice reptílico, passa da carícia ao empurrão e tanto pode acelerar o passo como soprar contracorrente.

E santos são os caules espinhosos das rosas e os ferrões das vespas, menos perigosos do que os lábios famintos de qualquer drosera.

E tantas outras metáforas poderiam ser usadas para referir que há demasiada gente dissimulada e adepta da má-língua, da bisbilhotice, da difamação, da intriga e do falso-testemunho.

EMANUEL LOMELINO

quarta-feira, 7 de maio de 2025

Ao pé-da-letra 7 - Emanuel Lomelino

Ao pé-da-letra 

7

Quisera ser tempestade ribombante para, com a luminosidade dos raios e rouquidão dos trovões, atormentar as dualidades das marés lunares.

Quisera ser vulcão e cuspir rios de lava abrasadora sobre as vulnerabilidades infundadas que, quais etiquetas inamovíveis, falsamente denigrem o carácter mais brando e casto.

Quisera ter a acidez vernácula para combater a violência covarde de quem se esconde nas sombras do anonimato e depois passeia, altivo e de saltos altos, nas vergonhosas passadeiras vermelhas do engodo.

Quisera ter todos os verbos à flor da pele para, com a língua afiada, romper a brandura dos discursos, chamar os bois pelos nomes e colocar os pontos nos “is”.

EMANUEL LOMELINO

terça-feira, 6 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 41 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

41

Reconheço a precaridade dos meus passos e as responsabilidades alheias que coloquei nas costas quando, eu próprio, sentia a necessidade de outras latitudes, outros encargos, mais sensatez.

Porventura, deixei-me ficar no lado de cá do horizonte por achar que escalar outros cumes seria um acto de egoísmo descabido e só conheci a indiferença depois de muitos sapatos gastos.

O discernimento conquista-se a conta-gotas e a consciência precisa ser destilada para que a razão venha à tona. Por isso, só agora, passado o equador da viagem, é que dei conta do caminho circular – para não dizer espiral – que tenho trilhado.

Arrependimentos! Na prática nenhum porque, instintivamente, nunca fui acumulador de tralhas e abandonei algum lastro basáltico nas margens do esquecimento. Mas não se aflijam os ambientalistas porque deixei tudo bem acondicionado em embalagens recicladas e nos respectivos aterros.

EMANUEL LOMELINO

segunda-feira, 5 de maio de 2025

Papaguear cultura 13 - Emanuel Lomelino

Papaguear cultura 

13

Os aforismos vivem e respiram em cada verso criado pelas almas noctívagas, sedentas por estancar silêncios e arruinar sossegos mentais.

As penas – nunca plumas – são torneiras abertas aos discursos atormentados, sem saberem que as tormentas maiores estão nos olhos da posteridade.

O maior sofrimento é sentido pela folha de papel por reciclar, por não ter história além daquela que lhe tatua o corpo em pigmentos desbotáveis e com prazo de validade.

Quanto ao vate… de pouco lhe serve o entendimento e um descodificador de ideias e processos porque tudo fica perdido na ausência de rasuras e notas de rodapé.

Mas, apesar de tudo ser efémero, desde a concepção até à fogueira, existem momentos de poesia que respondem às leis da natureza. Porque nada se perde, tudo se transforma e renova.

EMANUEL LOMELINO

A criação (excerto 1) - Rose Pereira

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Naquela tarde de domingo, a irmã caçula escapou novamente, e parecia não surtirem efeito os conselhos das irmãs mais velhas e do pai que sozinho tentava protegê-las, especialmente longe do filho do vizinho da rua de trás.
Moleque astuto, cometeu todas as contravenções possíveis com tão pouca idade, sem falar nos acidentes causados em cima daquela moto, que mais assustava a quadra toda, com o estrondo que fazia.

EM - ESTAVA ESCRITO - ROSE PEREIRA - IN-FINITA

domingo, 4 de maio de 2025

Papaguear cultura 12 - Emanuel Lomelino

Papaguear cultura 

12

Os olhos, hipnotizados pela maré vazante, ficam presos no coração do Tejo que pulsa, indiferente às traineiras e aos voos das gaivotas, com espelhos a surfar na serena agitação, das suas águas turvas, provocada pelo rastro de um catamaran. Há uma brisa que beija os rostos transeuntes como que anestesiando-os do abraço solar, fora de época, e oferecendo a maresia como perfume de consolo e paz.

Ouve-se, ao longe, a banda-sonora indistinta saída da garganta rouca de um violão, acompanhada pela voz melodiosa, mas murmurada, de uma cantora gospel, que faz da rua o seu anfiteatro, junto a um malabarista de sapateado clássico.

Só falta um pintor, de tripé em riste e as mãos ocupadas com pincéis e uma paleta mais colorida do que o arco-íris, para que se forme o cenário perfeito: a natureza, ela própria uma obra de arte, rodeada de artesãos vários.

EMANUEL LOMELINO

Entre mãe e filho não se mete a chupeta (excerto 3) - Daniele Rangel

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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O pior foi que do nada, de repente, quando a mãe olhou para o bebê mamando, achando que era só mais um denguinho, ele saiu de supetão do peito com um puxão na velocidade da luz. Não foi que dormiu mesmo? Os peitos ficaram a salvo dessa vez. Ela nem ligou o cronômetro. Arrependeu-se da ideia do tempo e se sentiu culpada por querer cronometrar “o sofrimento”. Quando a noite é assim, o tempo passa gentil na construção das memórias mais significantes para aquela mãe.

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sábado, 3 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 40 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

40

Como não bastasse a densidade do bosque, com as suas altivas árvores de copas escuras e tão espessas que o sol não as trespassa, ainda se pôs este nevoeiro cerrado que cega o início do olhar.

Apenas ruído. Uma espécie de assombro canalha que gela pedras e raciocínio. Um tilintar indistinto, contudo macabro, fúnebre e tão encantatório como um coro de sereias à caça de náufragos.

O caminho, à margem das vespas e espinheiros, faz-se irregular, qual montanha-russa num parque de diversões devoluto.

Ouve-se o piar de uma coruja-das-torres e um indefinido restolhar, ténue e miúdo, tão rasteiro como uma subcave invisível, mas presente.

Subitamente, num passo de mágica, abre-se uma clareira tão larga quanto negra, como fosse o leito de uma gigantesca fogueira antiga, que oferece três trilhos. Um de seixos brancos e lisos de erosão, outro coberto por um tapete de folhagem calcada, o terceiro enlameado, íngreme e invadido por troncos tombados.

Os dois primeiros reentram no bosque. O último, menos convidativo, circunda a clareira e embica na direcção oposta. Por via das dúvidas, incorpora-se o espírito de Régio e segue-se adiante.

EMANUEL LOMELINO

sexta-feira, 2 de maio de 2025

Pensamentos literários 23 - Emanuel Lomelino

Pensamentos literários 

23

Começam a faltar-me fórmulas para explicar o gosto pela leitura e o prazer de ler livros em catadupa.

Chamem-lhe obsessão, vício, dependência, mania, sede de conhecimento, paixão, até loucura. Aceito todos os epítetos com a mesma naturalidade com que passo de Celan para Agustina, de Tchekov para Sophia, de Quintana para Hatherly, de Camilo para Pasternak, de Orwell para Vergílio, de Márai para Torga, de Eugénio para Gógol, de Pessoa para Steinbeck, enfim, de livro para livro, sem olhar a filosofias, épocas, proveniências ou géneros literários.

Sou um bicho das letras auto enclausurado nas badanas de um mundo paralelo, por onde deambulo em busca de respostas às perguntas que nunca fiz porque, só assim, consigo justificar a esquizofrenia que me abraça e faz-me sentir, bem vincado no âmago, este desenquadramento temporal.

Ler transformou-se numa epopeia lúcida com o objectivo de afastar a angústia de estar onde não pertenço, nem quero estar, e descobrir o espaço e tempo onde poderia encaixar-me como uma peça de puzzle.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 1 de maio de 2025

Prosas de tédio e fastio 39 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

39

De nada serve abrandar ou ziguezaguear a vida por medo da morte. Fazê-lo é prescindir das cores que a primeira contém, substituindo-as pela beleza daltónica da segunda, sempre em tons esbatidos e duvidosos.

Não adianta colocar pé no travão da existência porque as pétalas do tempo não se comovem com o abrandamento do passo e seguem, flutuantes, rumo à finitude da sua queda.

Não há fontes de água-benta que impeçam o pólen de Hades de espalhar-se entre a humanidade e aumentar a sua colecção de almas.

Mais confortável é aceitar com naturalidade o fim assegurado, deixando-o navegar nos mares da ignorância, como quem espera o sorteio da lotaria sabendo que as hipóteses de ganhar são superiores a qualquer outra sorte.

EMANUEL LOMELINO

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Devaneios sarcásticos 15 - Emanuel Lomelino

Devaneios sarcásticos 

15

Por mais inclusivo e tolerante que se seja aos diferentes pensamentos das múltiplas doutrinas literárias contemporâneas, existem confissões que, ao pregar a boa-nova, espargem paradoxos que só criam raízes nos menos avisados.

Estas facções evangelizadoras da literacia moderna, ao mesmo tempo que se apresentam estratificadas, criam uma auréola classista pela transmissão das suas mensagens

As liturgias são ocas de coerência estilística, não por definição profética propositada, mas por défice cognitivo inerente. Não existe raciocínio lógico fundamentado na solidez de ideias inovadoras, tampouco incentivo ao arrojo.

As eucaristias são cerimónias de pretensão e ufania mascaradas de certame abrangente, não por crença filosófica, antes pelo engodo pastoral dirigido aos devotos.

Os grã-mestres usam o eruditismo e eloquência das palavras frívolas para magnetizar a crendice dos fiéis simples, num catecismo de verdades e presságios que só a eles se aplica.

Por tudo isto louvo, cada vez mais, o meu entendimento agnóstico, que me impede de ingressar nessas seitas.

EMANUEL LOMELINO

Na epístola (excerto 6) - Rose Pereira

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Pedi perdão na carta que deixei presa embaixo dos anjos. Por certo, compreenderiam os rabiscos de quem tem pressa, de quem não mais se contém. Espero que entendam essa vontade ou loucura.
Não queria mais atormentá-los, nem a mim mesma. Desejei somente aquietar meu interior definitivamente e fazer valer alguma coisa que restasse, ou que tenha ficado de bom nas lembranças. Bandeira branca para me retirar de cena, da luta diária que a vida me conferia. Não estava mais disposta a continuar. A exaustão me tomou por inteiro, corpo, alma, e seja lá o que mais estivesse compondo o espaço que me cabia.

EM - ESTAVA ESCRITO - ROSE PEREIRA - IN-FINITA

terça-feira, 29 de abril de 2025

Epístolas sem retorno 30 - Emanuel Lomelino

Paul Celan
Imagem pinterest

Amigo Paul,

Desconheço se a tua ligação emocional com a morte era mais do que revolta por Auschwitz e, por isso, não sei se este nosso não-tabu pode, de alguma forma, ser comparável.

Apesar da liberdade que me dou ao falar amiúde sobre ela, porque morro constantemente, e ao contrário de ti, não é um fascínio mórbido que me move, mas sim a consciência lúcida de uma inevitabilidade.

Posso dizer-te que, da minha parte, a morte nunca vislumbrará medo nos meus olhos ou coração. Não me intimida pelo breu, pela incerteza do que vem depois, nem pela imagética associada.

Mesmo desconhecendo a forma como a definitiva vai reclamar-me à vida, sei que ela espera por mim e está cada vez mais próxima. E quanto mais o relógio avança menos tempo sobra para falar dela.

Espero apenas que os meus discursos, quase tão negro como os teus, não me levem a um final igual. Neste momento prefiro ser abraçado por ela do que abraçá-la.

Lúcido

Emanuel Lomelino

Entre mãe e filho não se mete a chupeta (excerto 2) - Daniele Rangel

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Ela respirou fundo, pegou tudo de que precisava: a chupeta, por precaução, o cronômetro, a naninha e os seus peitos. Olhou para o bebê mais encantador da face da terra com o sorriso mais contagiante do mundo, olhinhos que eram capazes de derreter o coração mais congelado que o próprio oceano glacial ártico. Sei o que você está pensando: “ah, mas que exagero”. É exagero mesmo. Mães são assim. É uma tentativa de quantificar um amor imensurável. Então, o que resta é exagero.

EM - TUDO SOB CONTROLE - DANIELE RANGEL - IN-FINITA

segunda-feira, 28 de abril de 2025

Prosas de tédio e fastio 38 - Emanuel Lomelino

Prosas de tédio e fastio 

38

Nestes dias em que acordo com o reverberar da chuva pregado nos ouvidos e inspiro ursos polares, pela única narina desentupida, evito levar os dedos antárticos ao rosto coberto pela inclemência das horas.

Enrosco-me na fogueira de linho e maldigo a vertigem da noite, num gesto de revolta inconsequente que, por si só, aumenta o sufoco de mais um dia de pedras laminadas.

Contragosto, maquilho-me de feliz artífice, de uma arte que abomino, para mascarar o incómodo que o ambiente circundante provoca de véspera.

Nas ruas da cidade já deambulam outras carcaças abatidas pelos ventos gélidos da Fortuna, com as cabeças recolhidas num conformismo nefasto.

Tento alhear-me da lentidão dos ponteiros observando os voos caducos das gaivotas e interrogando-me sobre os guinchos negros dos corvos que fazem malabarismos acrobáticos nos cabos de alta-tensão.

E tudo isto, como uma sessão contínua de mau cinema, repete-se ciclicamente no turno do sol, cujo brilho há muito deixou de animar os meus passos.

EMANUEL LOMELINO