sábado, 7 de setembro de 2024

Lomelinices 9 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

9

Quando os pensamentos querem ser vistos transfiro-os para um suporte e visto-os de palavras. Essas dão os braços, umas às outras, como numa roda de dança, e fluem a seu belo prazer sem a minha intervenção.

No início, na inocência do meu desconhecimento, mal se expunham, tentava dar-lhes um sentido mais legível, mas esse processo acabava, inevitavelmente, por lhes cortar o fluxo e, o que era uma ideia sólida, diluía-se no tempo com a busca da alternativa de discurso e perdia a força da mensagem base.

Com o tempo, e a experiência, aprendi a ser paciente e comecei a esperar o fim da transição para depois, então, fazer as alterações necessárias.

É por isso que, mais do que escrever, gosto da transpiração de limar verbos, raspar pontuação, desbastar complementos, cinzelar advérbios, polir sentenças.

E se me perguntarem a razão deste trabalho eu respondo que o meu cérebro é disléxico e tem sempre muita dificuldade em estar sincronizado com os pensamentos que lê.

EMANUEL LOMELINO

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Contos que nada contam 21 (Não passa de amanhã) - Emanuel Lomelino

Não passa de amanhã

Serôdio semicerrou as pálpebras numa vã tentativa de enxergar os dois vultos embaciados, que passavam diante de si.

- Tens de ir ao oftalmologista! – aconselhou Beatriz pela milésima vez.

- Um dia destes…

- Respondes sempre isso, mas o dia nunca chega.

- Ando com o tempo ocupado.

- Pois. – disse Beatriz num suspiro de enfado. – Quando cegares de vez, quero ver como vais ocupar o tempo. – sentenciou.

Serôdio sentiu todo o impacto das palavras proferidas pela esposa, mas não retorquiu. Sabia que a preocupação dela era legítima e verdadeira. Nos últimos meses os seus olhos revelavam a extensão do cansaço provocado por anos e anos de esforço a que tinham sido sujeitos. O óculo de relojoeiro ainda conseguia disfarçar a deterioração das duas vistas, mas ler os jornais diariamente, aquilo que mais gostava de fazer quando não estava a arranjar os mecanismos dos relógios, passou a ser uma tarefa árdua. As letras encavalitavam-se umas nas outras e, pouco a pouco, perante as dores que sentia para tentar decifrar o corpo das notícias, Serôdio começou a ler somente os títulos, e depois apenas as letras garrafais das capas. Mas o pior de tudo era quando queria ajudar Beatriz na cozinha. Os olhos já não ajudavam a identificar os frascos dos temperos e, acaso ela não estivesse atenta (às vezes acontecia), lá tinham de comer salada temperada com pimenta branca em vez de sal, ou sopa com vinagre em vez de azeite. Pelo menos por ela, a sua companheira de uma vida, ele tinha de arranjar tempo.

- Não passa de amanhã! – disse ele agarrando a mão de Beatriz.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Contos que nada contam 20 (O tímido ingrato) - Emanuel Lomelino

O tímido ingrato

Desde muito novo, e apesar de ser visto como o ser humano mais tímido do mundo, Martin granjeou, junto dos habitantes da sua aldeia, a fama de ser perfeccionista em tudo aquilo que fazia. Todos o admiravam e ninguém poupava palavras na hora de elogiar os seus trabalhos.

Na escola, as suas redações eram as que mais fascinavam os colegas e professores, que faziam questão de as lerem em voz alta, algo que ele nunca fazia.

No campo, quando ajudava na sementeira, ou na colheita, e apesar de nunca ter cantado as modinhas com os restantes, a sua dedicação era louvada por todos.

Na oficina de carpintaria, onde iniciou a sua carreira de marceneiro, todas as peças de mobiliário que produzia, mas sem revelar como haviam sido feitas, causavam espanto geral.

Nas festas da aldeia, ninguém dispensava comer as rabanadas confecionadas por ele, cujas receitas nunca revelou.

Foi assim na sua infância, na adolescência, nos primeiros anos da sua vida adulta. Elogios atrás de elogios.

Mas os anos passaram e os seus conterrâneos começaram a ficar aborrecidos com Martin, pela simples razão de nunca terem ouvido, da sua boca, a mais singela retribuição por todo o enaltecimento, aplausos e honrarias que lhe prestavam. Nem um assentimento de cabeça, ou um sorriso agradecido. Todos consideravam essa atitude como sobranceria e falta de humildade. Por isso, um dia, todos deixaram de elogiar Martin.

Esta história podia terminar aqui, mas a verdade é que, no dia da sua morte, toda a aldeia formou uma fila na porta da igreja, para pedir penitência ao padre, depois de ser revelado o segredo mais bem guardado de Martim: ele era surdo-mudo.

EMANUEL LOMELINO

Embarques (excerto) - Noemi Shigetomi

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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A vida é apenas uma grande viagem. Não sei bem ao certo onde começa e realmente desconheço se tem um término. Acredito que sou pura energia, movida por uma Força Divina que rege todos os multiversos e fragmentos dessa jornada que compõem a minha história.
Um destes fragmentos começa em uma estação de trem, onde um homem caminha pela plataforma no meio de uma manhã de nevoeiro. Ele nem percebe que um trem para e que, do último vagão, desce uma menina de casaco vermelho segurando uma pequena mala marrom.

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quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Lomelinices 8 - Emanuel Lomelino

Imagem thestrive

Lomelinices 

8

O dia voou-se-me pelos dedos com a fúria premeditada de lâminas rombas. As mãos choraram desconforto enquanto a alma – essa eterna chaga tresmalhada – regozijou-se por não ser corpórea e celebrou a sua indiferença ao beliscar do físico.

Os segundos latejaram-me na pele; os minutos picaram o ponto; as horas cauterizaram os sulcos, infamemente, enfaixados com gaze inexistente. E ela – a alma arredada de empatia – manteve-se fiel ao seu umbigo narcisista.

A tarde sucedeu à manhã, como é habitual nestas coisas do tempo, e a cada tique-taque da ampulheta moderna mais rugas decidiram enfeitar-me a derme irritada de poeira e sedenta de tréguas. Da outra – a alma desgarrada de afinidades – nem um sopro refrescante de interesse ou sinal de afectação.

Foi apenas mais um dia que passou. O corpo ganhou umas quantas medalhas por continuar a superar etapas, enquanto a alma – vilã de si mesma – permanece na ignorância de que nada, nem ninguém, é imune à passagem do tempo e que este também se lhe aplica.

EMANUEL LOMELINO

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Lomelinces 7 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

7

Os dias tecem-se como macramé. Entrelaçam-se os nós à velocidade dos ponteiros, e a estética nunca é ditada pelo tecelão, mas sempre pelos fios do tempo. Os minutos são franjas e as horas urdem-se de forma aleatória, porém harmoniosa.

Hoje teci um dia pardo, entre refeições. Quis Aracne – deusa do ofício –, de porte altivo, como todas as divindades devem apresentar-se, que o padrão das pausas, para descansar as mãos doridas de tantas agulhadas, fosse obtuso, contudo geométrico. E os desenhos de mais um dia ficaram-me tatuados na pele.

A minha sorte é ter esta obsessão redundante pela etimologia das palavras e descobrir que, ao contrário de todos os “dejá vu” deste dia, macramé não tem origem francesa, antes árabe “migramah”, ou talvez do turco (língua aliada) “miskrama”.

Seja como for, assim que a noite se predispuser a embalar-me as escaras, enrolar-me-ei na tecelagem deste dia e dormirei na certeza de que na próxima alvorada serei artesão de outra arte qualquer.

EMANUEL LOMELINO

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Contos que nada contam 19 (O evento) - Emanuel Lomelino

O evento

Alcides era um amante das palavras quando, por uma das muitas casualidades da vida, assistiu a uma palestra realizada na sua livraria preferida.

No início, vendo toda a pompa e festança, sentiu-se um peixe fora de água, mas tentou disfarçar esse desconforto e obrigou-se a assistir à totalidade do evento.

O moderador deu as boas-vindas, apresentou os palestrantes e disse que cada um deles era um poço de conhecimento do universo da escrita e, no final, todos os presentes sairiam da livraria mais ricos de sabedoria.

Alcides escutou todos os discursos, em silêncio, como quem assiste a um sermão na missa de domingo, mas o seu âmago estava a ser esmagado pelas palavras que ouvia. A fanfarronice era proporcional à incoerência; o pedantismo vinha abraçado a exageradas doses de bazófia; e o ar estava impregnado de uma altivez elitista que feria todos os sentidos.

Com muito esforço, Alcides conseguiu resistir até ao final do evento. Angustiado, fez uma rápida reflexão sobre tudo o que acabara de ouvir e descobriu que o moderador só tinha dito uma verdade: realmente ele ia sair da livraria mais sábio. Agora compreendia as razões que levaram Pessoa a dizer que os poetas são fingidores, e entendia, finalmente, as palavras de Celso Cordeiro: “para deixar de ser jumento, não basta a um burro saber ler”.

EMANUEL LOMELINO

domingo, 1 de setembro de 2024

Lomelinices 6 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

6

Durante anos, por acreditar que a escrita é, mais do que um direito, um dever, e a ninguém deve ser retirada a possibilidade de o fazer, tive dificuldade em entender uma das frases mais icónicas de Saramago, em que ele considerava ser um crime continuar a escrever não havendo mais nada a dizer.

Rebati essa afirmação por ser apologista de que a escrita, independentemente do conteúdo, mesmo vazia e isenta de propósito literário, é um instrumento válido para a literacia e desenvolvimento intelectual das sociedades.

Mas, como muitas vezes acontece na minha vida, só mais tarde, ao ler uma entrevista de Bukowski, onde ele afirma que é preferível não fazer nada do que fazer as coisas mal feitas, explicando que o grau de autoconfiança dos maus autores iguala o grau de incerteza dos bons autores (algo que pude confirmar em diversas ocasiões) e, por esse motivo, os primeiros são mais requisitados para darem palestras, quase sempre enfadonhas como a sua escrita, para plateias compostas, essencialmente, por outros maus autores, esperançosos em serem os próximos palestrantes, é que consegui enxergar a profundidade da sentença no Nobel português.

Nesse momento de epifania, ao entender que ambos os ícones da literatura, embora distintos, tinham a mesma linha de raciocínio - um mais polido (Bukowski) outro mais cru (Saramago) -, passei a acreditar ainda mais que a escrita é um dever de todos, mas isso não significa que todos tenham direito a verem-se escritores.

EMANUEL LOMELINO

sábado, 31 de agosto de 2024

Contos que nada contam 18 (O caminhante) - Emanuel Lomelino

O caminhante

Silvério encostou o corpo cansado à parede rochosa, tentando encontrar, com os olhos baços, a linha do horizonte, como quem tem urgência em molhar os lábios ressequidos, no meio do deserto. Olhou à esquerda. Observou à direita. Apenas copas de árvores em relevos de irregularidade, e, aos seus pés, tão literal como respiração ofegante, a falésia íngreme e instável. Tremeu. Todo aquele cenário era uma analogia, tão real quanto apropriada, à sua vida.

Sentia-se envolvido por um deslumbrante mundo de beleza que não podia tocar, sob risco de perder o equilíbrio e desabar, em queda livre, ao primeiro passo mal calculado. As pernas opuseram-se ao reinício da marcha, paralisadas pela responsabilidade dos próximos passos. Todos os membros foram atingidos por um calafrio sufocante, como se uma corrente elétrica acabasse de os trespassar. Silvério nunca sentiu a eternidade como naquele momento.

Cravou os olhos na cruz plantada à beira do precipício e, mesmo não professando religião alguma, murmurou uma pequena prece como quem coloca o cinto de segurança antes de conduzir.

Afastou-se da parede granítica, palpou as escoriações de quedas anteriores, baixou a cabeça, certificou-se da firmeza do terreno a seus pés, inspirou fundo e retomou a caminhada, ladeira acima, determinado a prosseguir sem olhar para trás porque, por mais obstáculos que viesse a encontrar, a sua vontade de alcançar o planalto da tranquilidade era mais férrea do que aparentava e ele sentia necessidade de provar, a si mesmo, que era dono e senhor do seu destino.

EMANUEL LOMELINO

Madame mim (excerto) - Marie Corbetta

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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São meus pais na fotografia, que hoje tem tons sépia. Ele era, de fato, um forasteiro. Tenho certeza de que foi dele que recebi esse meu impulso de viajar. Algo que veio embutido no sobrenome que ele me passou e nunca mudei, Silveira. Silvestre, que em algumas definições também é selvagem e selvático. Que cresce e se comporta na natureza de forma desordenada, não se limitando a corresponder ao espaço que lhe foi dado. Determinado. Aprendi com ele a nunca plantar muito fundo minhas raízes.

EM - ESTRANGEIRAS - COLETÂNEA - IN-FINITA

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Lomelinices 5 - Emanuel Lomelino

Imagem cegoc

Lomelinices 

5

A generalidade das pessoas confunde conhecimento com inteligência, mas este equívoco pode ser desfeito achando a relação entre ambos.

O conhecimento é acúmulo de saber. A inteligência é o entendimento prático do que se sabe e, após a primeira aplicabilidade desse saber, deixa de ser inteligência, passando a fazer parte do acúmulo de conhecimento.

Para melhor entendimento façamos este exercício: Temos uma criança pequena e um interruptor. Com o tempo ela vai saber que aquele objecto tem um nome, uma função, e que ela (criança) pode interagir com ele (objecto). Até aqui ela apenas tem conhecimento. A inteligência só aparece quando ela colocar em prática esse conhecimento e, através do interruptor, iluminar a sala escura.

No entanto, essa demonstração de inteligência não se repete, porque a repetição deriva do acúmulo de saber e já não de um acto de inteligência. Por mais vezes que a criança ligue ou desligue o interruptor, esse acto já não é de inteligência, mas sim de conhecimento porque, por experiência própria, já sabe o que acontece em cada um dos momentos.

Assim, podemos concluir que o conhecimento é uma condição evolutiva (porque há acréscimo de saber), enquanto a inteligência é uma condição momentânea (porque a demonstração de inteligência só tem uma aplicabilidade por cada saber).

Conhecimento e inteligência são dois conceitos que não podem ser confundidos, mas dependem, isso sim, um do outro.

A este meu texto, que agora reedito e acrescento o presente parágrafo, aplica-se a lei do paradoxo porque existe quem tenha vasto conhecimento sendo pouco inteligente e quem sendo inteligente tenha escasso conhecimento.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Contos que nada contam 17 (Indo à fava) - Emanuel Lomelino

Imagem retirada da internet

Indo à fava

Mandaram Alexandrino à fava e, como menino bem-mandado, preparou um farnel com duas fatias de pão saloio, uma tira de presunto fumado às escondidas, uma vasilha com os azeites, dois tomates secos, pedaços de queijo furado e um exemplar da Mensagem pessoana.

Com um cajado na mão direita, o farnel na esquerda, um pífaro ao pescoço e uma mochila enorme às costas, lá foi ele, estrada fora, acompanhado pelo fiel rafeiro sem dono, cumprir o seu destino de rumo incerto, por mais certo que o destino lhe fosse.

Subiu montes, desceu aos vales, bebeu chuva e, com a cabeça apoiada na mochila, dormiu ao relento.

A partir do segundo dia, esvaziado que estava o farnel, tocou pífaro em troca de rodelas de chouriço de fumeiro, toucinho de salmoura, pescoços e patas de galinha, cebola picada e pepinos murchos, cachos de uvas morangueiras, pêssegos descalibrados, dióspiros maduros, medronho fermentado, púcaros de água benzida e ossos para o rafeiro.

Alexandrino passarinhou meio mundo e todos aqueles que o viram passar ficaram a saber que o rafeiro era o seu companheiro de viagem, o pífaro era o seu ganha-pão, o cajado era o seu protector e na mochila carregava um confessionário.

Perante a descrença generalizada, ele abria a mochila, retirava um travesseiro e dizia:

- Não há melhor confessor que este! É todo ouvidos!

- E quem te absolve dos pecados? – perguntavam amiúde.

- Este! – respondia, enquanto erguia bem alto o livro de Pessoa.

E por isso, ainda hoje, continuam a mandá-lo à fava.

EMANUEL LOMELINO

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Contos que nada contam 16 (O exilado) - Emanuel Lomelino

O exilado

Licínio era um homem forte e imponente, quase um paralelepípedo maciço, que impunha medo e respeito só de olhar.

O temor que impunha fez com que todos os habitantes da sua aldeia natal fossem morar em aldeias vizinhas, só para não estarem sempre em sobressalto. Até o corcunda de Notre-Dame o superou em afecto recebido.

Perante esta circunstância, ele construiu uma gigantesca muralha em redor dos limites da aldeia, como quem aceita um exílio forçado.

As suas mãos, descomunalmente densas, assemelhavam-se a bigornas de ferreiro – alguns acreditam que eram feitas de aço temperado, outros juram que eram iguais às de Atlas.

A musculatura do seu corpo era tão definida que muitos garantem ter sido ele o modelo dos escultores renascentistas. Só que ele era duas vezes mais volumoso do que qualquer estátua conhecida.

As suas pernas pareciam troncos de sequoia milenar e os seus passos eram tão pesados que, mesmo em bicos de pés, abria crateras no chão que pisava.

Licínio era tão grande e assustador que, durante toda a sua existência, jamais alguém se aproximou dele. Talvez, por isso, o dia da sua morte seja desconhecido e ninguém consiga dizer, com propriedade e conhecimento de causa, se ele alguma vez foi feliz.

EMANUEL LOMELINO

terça-feira, 27 de agosto de 2024

Lomelinices 4 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

4

Quando a mente é acometida pela tempestade do questionamento as dúvidas relampejam, antecedendo o trovejar das perguntas mais estrondosas.

Há uma energia voltaica que eriça a curiosidade e chove uma urgência de respostas definitivas, como se os ventos da tormenta acalmassem às primeiras gotas de sabedoria.

Nesses momentos de intempérie não existem boias de conhecimento que ajudem a flutuar nas marés da ignorância nem botes de erudição à prova de tsunamis docentes.

À falta de solução para amainar o temporal, o melhor a fazer é navegar ao sabor da corrente e esperar que as ondas de interesse sejam atenuadas a cada nova conclusão, na esperança de não sermos empurrados para um porto rochoso e ter de enfrentar outro género de desafio mental.

EMANUEL LOMELINO

segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Epístolas sem retorno 15 - Emanuel Lomelino

Aldous Huxley
Imagem pinterest

Prezado Aldous,

Não faço ideia qual a água bebida, no início do século XX, para que as vozes do seu Admirável Mundo Novo pudessem ser tão visionárias em relação àquele a que fisicamente pertenço.

Mesmo não achando difícil prever-se o declínio da humanidade pelas suas próprias criações, acredito que deve ter existido algo mais do que originalidade na sua pena quando profetizou a ditadura tecnológica a que estamos sujeitos.

A seu desfavor, e correndo o risco de lhe provocar algum amargo de boca, toda a trama que idealizou foi falha no tempo. E por larga margem. Estamos bem longe de 2540 e já mergulhámos numa era de grandes desenvolvimentos tecnológicos ao nível da reprodução genética e de manipulação psicológica.

Sim, por muito distópica que possa parecer esta missiva, nada mais relato do que o estado hipnótico em que a sociedade actual se encontra. Uma letargia colectiva provocada pelo efeito tirano das novas tecnologias, que todos recusam ver e ao qual se entregam sem contestar.

Neo-escravo

Emanuel Lomelino

Quando me tornei uma estrangeira (excerto) - Rute Possebom

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Final de abril de 1970. Grupo Escolar Pedro Alexandrino. Minha professora querida, Dona Shirley, começava a preparar seus alunos para a festinha que homenagearia nossas mamães. Eu estava muito empolgada, pois ouvira dizer que a festa preparada por ela era a melhor da escola. Por que não dizer que arrasava corações e que todos saíam chorando após a apresentação das crianças? Eu não via a hora de começar os ensaios. No fundo do meu coração, queria que ela me desse a poesia mais bonita para decorar, pois meu desejo era homenagear minha mãe, eu a amava muito.

EM - ESTRANGEIRAS - COLETÂNEA - IN-FINITA

domingo, 25 de agosto de 2024

Epístolas sem retorno 14 - Emanuel Lomelino

Manuel António Pina
Imagem pporto

Prezado Manuel,

Sempre tive curiosidade em saber as razões para o obscurantismo de alguns poetas.

Durante anos alimentei-me de percepções e, ingenuamente, admiti que pouco mais havia do que consentimento e vontade própria em ficar-se nas sombras.

Apesar de reconhecer uma mão cheia de exemplos dessa tese, onde o incluo, quanto mais embrenhado ficava neste universo da escrita mais rápido fui aprendendo quão impactantes os holofotes podem revelar-se na transformação de muitos autores, cujos caracteres, num processo de destilação da personalidade, veem esfumar-se a importância dos princípios e valores essenciais ao ofício, sobrando o álcool dos egos e vaidades.

Depois… bem, depois tudo é medido em amperes e, quanto mais lâmpadas iluminarem os palcos, maior é a ofuscação e menor é o crivo.

Em consciência,

Emanuel Lomelino

sábado, 24 de agosto de 2024

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 9 - Emanuel Lomelino

24-07-2024

Enlouquecem-se-me os neurónios mais conservadores ao escutar as vénias que, os autodenominados vates da modernidade, fazem àqueles que realmente mereceram o epíteto.

Mesmo admitindo a existência de alguma admiração inicial, que inspire conceitos de beleza aos olhos de hoje, poucos são os que conseguem desenhar, com as suas penas, além de rascunhos e cópias forjadas.

Eu poderia relevar os discursos não fossem, varas de frases feitas, todas as estrofes construídas em nome de uma influência que acaba por nunca ser provada.

Em sã consciência, é difícil digerir palavras de louvor proferidas na hora de justificar criações disformes, como se todos os corcundas tivessem o encanto de Notre-Dame.

Não caem os braços ao mundo ao confessar-se pasmo pela excelência e reconhecerem-se as próprias debilidades. Seria tão mais engrandecedor do que simplesmente vomitar eruditismo de copia/cola virtual.  

Temo que o Olimpo da poesia esteja a contorcer-se com a vacuidade hiperbólica dos elogios, como se cada novo verso fosse um cutelo afiado e pronto a rasgar a essência da própria língua.

EMANUEL LOMELINO

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

Contos que nada contam 15 (O novo eremita) - Emanuel Lomelino

O novo eremita

Tibério olhou a paisagem e decidiu que aquele era um bom lugar para descansar. Encostou a mochila na base de uma oliveira, descalçou as botas, que lhe vinham torturando os passos, tirou as meias rubras de sangue e mergulhou os pés macerados no pequeno e cristalino ribeiro, deixando que a correnteza lhe limpasse as feridas.

Suportou o doloroso incómodo sem perceber se a dor sentida era provocada pela temperatura, quase gelada, da água ou pelo contínuo toque do líquido nas inúmeras chagas abertas.

Tentou abstrair-se das moléstias centrando a sua atenção no vale que se estendia diante dos seus olhos. Lá, bem ao longe, ainda vislumbrava a pequena vila onde estivera, pela manhã, na intensão de comprar alguns mantimentos, mas cuja carga energética fez com que apenas a atravessasse, como quem foge de uma alcateia faminta. Desde o primeiro instante, sentiu que não era bem-vindo. Os olhares inexpressivos de todos - das crianças pequenas até aos velhotes enrugados - eram aguçadamente mais ameaçadores do que o tráfico veloz de uma autoestrada movimentada. Tibério sentiu que, a qualquer momento, podia ser abalroado pela fúria explosiva que esses rostos tinham, mas escondiam.

Tal como sucedera, dois meses antes, quando decidiu abandonar toda a sua vida na grande metrópole, para não ser contaminado pela idiotice dos pensamentos modernos, também a fuga da pequena vila o fez reflectir na sua postura. Ainda não conseguia entender se estava a ser fraco ou audaz porque não sabia identificar a ténue linha que separa a covardia da coragem.

A única certeza de Tibério era não ter forças, nem espírito, para enfrentar a mentalidade mentecapta das novas gerações que, na escassez de argumentos lógicos e válidos, tentam impor, através do confronto físico, as suas revoluções ideológicas. São moralistas sem moral (manifestam-se, despidos, contra a nudez de estátuas); idealistas sem ideias (são desocupados a lutar em favor do ócio); são incoerentes nas suas redundâncias (querem um modo de vida ambientalista, sem extração de minério nem combustíveis fósseis, mas não abdicam dos seus telemóveis de quartzo, gálio, lítio, tântalo, tungsténio, entre outros minerais, tampouco abdicam de usar poliéster sintético, acrílico e spandex nas suas tendas de campanha).

No meio dos seus pensamentos, Tibério deu conta de estar a ser observado, do outro lado do ribeiro, por uma lebre. No momento que os olhos de ambos se cruzam, o pequeno animal moveu a cabeça, que o humano entendeu como um gesto de aprovação.

Hoje, Tibério é um eremita, completamente afastado do mundo moderno e, ao contrário dos contestatários de fachada, vive a sua noção de sustentabilidade sem impor, seja o que for. Aprendeu que medo e valentia andam de mãos dadas, e um acto corajoso vindo de um cobarde ou demonstração de fraqueza de um bravo têm o mesmo valor.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Epístolas sem retorno 13 - Emanuel Lomelino

Pierre de Coubertin
Imagem retirada da internet

Senhor Barão,

Todos aplaudimos a sua intensão de fazer do desporto um veículo de desenvolvimento pacífico da humanidade, em que o esforço físico, a agilidade mental e, sobretudo, a capacidade de superação sejam valores universais na preservação da dignidade humana.

Louvo os intentos, mas não posso ser indiferente à evolução deturpada dos princípios olímpicos e à forma como são geridos e aplicados, nomeadamente na hora de definir os critérios de avaliação em algumas modalidades, e na inclusão ou exclusão de outras.

Porque mencionar todas seria exaustivo, limito-me a fazer referência a duas situações flagrantes.

1 - Se o olimpismo se identifica como um modelo desportivo apartidário, apolítico e a favor dos direitos humanos consagrados, por que carga de água se proíbe, aos atletas, o direito fundamental da liberdade de movimentos fora da “aldeia” olímpica?

2 – Sendo as olimpíadas um evento desportivo, como se justifica que uma vertente de cariz cultural (breakdance) seja considerada desporto e algumas modalidades com expressão mundial (rugby, hóquei-em-patins, xadrez, etc.) não façam parte dos jogos?

Os critérios estão longe do meu entendimento e, creio não estar enganado, subvertem em absoluto a génese do seu idealismo.

Com indignação

Emanuel Lomelino