segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Lomelinices 36 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

36

Quando o tema de conversa é a Vida, existem quase tantas definições aplicáveis como gente no mundo. Para uns é isto, para outros é aquilo, para alguns é aqueloutro, para os demais é assim, para poucos é assado, para os restantes talvez não seja nada disso ou tudo junto.

Um dos aspectos comuns a todas as opiniões, mas sempre esquecido, ou melhor dito, nunca lembrado, é o facto de a Vida também ser uma unidade de tempo variável e os relógios que a medem sermos todos nós, com a particularidade de raramente estarmos no mesmo estágio de medição, porquanto cada um tem a Vida à sua medida.

A maior diferença da Vida para as outras unidades de medida do tempo é a sua perecidade. Enquanto os anos, os meses, as semanas, os dias, as horas, os minutos e os segundos serão eternos e existirão para lá da existência de cada um, a Vida, na especificidade aqui explicada, termina com a morte daquele a quem serviu.

Seguindo esta linha de raciocínio, pode-se aferir que cada Vida é tão única como as impressões digitais.

Assim sendo, à pergunta:

- O que é a Vida?

Pode-se responder:

- A Vida é… pessoal e intransmissível.

EMANUEL LOMELINO

Rezo vivo (excerto) - Mara Kalantia

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Durante a minha pré-adolescência e adolescência, aferrando-me àquela força masculina, que mesmo fisicamente ausente ainda era tão viva para mim, despertei a Estrangeira-Guerreira-Ferida, que encontrou seu desafogo no meu eu artista e buscador.
Na cruzada da minha vida adulta, ainda vejo as marcas da minha infância. Por vezes as revisito, mas por mais difíceis que sejam de se compreender, agora elas me envolvem de maneira diferente, sinto que são as molas propulsoras que ressaltam a mulher-estrangeira que me torno.

EM - ESTRANGEIRAS - COLETÂNEA - IN-FINITA

domingo, 20 de outubro de 2024

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 15 - Emanuel Lomelino

26-09-2024

Apesar de não ser saudosista, às vezes vejo-me confrontado com situações que fazem com que o sangue ferva nas veias e nasce-me no âmago uma espécie de conservadorismo (que não é coisa geracional, mas sim de bom-senso, estilo e honradez).

Poderia socorrer-me da famosa frase proverbial “eu sou do tempo…” mas, porque o agora também é o meu tempo, terei de escrever “longe vão os tempos” em que, até os calhordas, demonstravam coerência nos discursos.

Longe vão os tempos em que as pessoas pintavam-se com as suas próprias cores e jamais abdicavam delas nem se camuflavam ao sabor das correntes ou de interesses ocultos.

Hoje, o engodo é o pão nosso de cada dia, e ninguém se incomoda com o espírito do “vale tudo”. Bem pelo contrário, até aplaudem.

Hoje há uma cultura farsante, que passa despercebida aos menos atentos e desavisados, como o caso do fulano B – que conheço mas omito o nome para não ficar gravado na história – figura sempre presente na primeira fila das manifestações anticapitalismo, sendo proprietário de vários imóveis, que arrenda a preços inflacionados, e tendo uma frota de, pelo menos, quatro veículos topo de gama, nos quais se faz transportar até às imediações das arruadas.

E, mais uma vez, lá o vi, nos ecrãs da televisão, com o seu lenço palestino, a gritar pelos direitos à habitação e contra o perverso capitalismo. Desta vez não foi entrevistado, mas só a imagem e a ideia da existência de mais dissimulados como ele, é suficiente para fazer-me ferver o sangue.

EMANUEL LOMELINO

sábado, 19 de outubro de 2024

Contos que nada contam 29 (O faroleiro) - Emanuel Lomelino

O faroleiro

Franclim sentiu ter encontrado a profissão ideal para as características mais óbvias do seu feitio.

Sempre gostou de ficar num canto com os seus pensamentos, longe do conflitos e arrelias permanentes de um escritório. Sempre desejou entrelaçar responsabilidades e lazer sem horas marcadas para coisa alguma. Enfim, organizar o tempo a seu bel-prazer, dividi-lo entre obrigações e o que lhe desse na gana, e envelhecer ao ritmo da vida, com paz e tranquilidade.

Aquele trabalho, de faroleiro, encaixava como uma luva nas suas pretensões.

O que Franclim não sabia, e descobriu com o tempo, é que nem os espíritos livres, por mais independentes que sejam, são compatíveis com a agressividade do sal ou a corrosão das lágrimas.

Hoje, passados trinta anos a iluminar as noites dos navegadores, Franclim não reconhece a face que o espelho reflete. A pele ressequida pela salinidade das marés tem rugas, em forma de desfiladeiros, por onde correm, amiúde, as saudades da família, que só vê uma semana em cada três meses.

EMANUEL LOMELINO

O princípio do mundo (excerto 4) - Jorge Chichorro Rodrigues

 

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Toda a hierarquia de bordo se diluía ali, a fraternidade impunha-se como uma força da natureza, o mistério do universo descia sobre o navio que balouçava igual a um menino. Os embalos vinham da voz doce e ondulada do orador ou das leves vagas que embatiam no navio? Mal o sabiam os homens de bordo... Mas algo parecia insinuar-se nas suas mentes: o mar era o berço da vida, o princípio de tudo, e a voz pausada do companheiro de viagem confundia-se com a própria música das ondas, benignas e temas a virem beijar de leve a expedição que levava no velame a cruz de Cristo.

EM - O PRINCÍPIO DO MUNDO - JORGE CHICHORRO RODRIGUES - IN-FINITA

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Lomelinices 35 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

35

Pesa-me mais o cansaço dos passos dados em vão do que os quilos de horas que se acumulam nas pernas. Nesses intermináveis momentos de fadiga, o corpo dorido implora pelo mergulho na calmaria do sentir e pede para ser anestesiado por uma qualquer chuva de verão fora de época.

Ofegante é o desejo de permanecer imóvel, sem obrigação de estender os braços aos céus em preces de mudança. Há um pedido mudo que se revela uma necessidade imperativa de ver o voo das pombas brancas, mas o mundo continua a girar inclemente.

O crepúsculo já não é de paz e serenidade porque paira no ar uma cãibra que ignora a urgência de sossego e vazio. As madrugadas são lençóis de lava e as noites prolongam as vigílias inoportunas. O sono é picotado por cada som dos megafones motorizados que fazem derrapagens tão imprudentes quanto estridentes.

Então vem a alvorada com marcas no rosto porque o sol que nasce não é novo, mas sim o pleonasmo do anterior – mais passos em vão e horas acumuladas nas pernas.

Assim passam os dias que enrugam a pele e gritam a monotonia cruel costurada nos caminhos. Uns chamam-lhe destino, outros creem ser fado. Isto é apenas o desassossego da vida e há mortes mais dramáticas.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Lomelinices 34 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

34

Nesta bruma cerrada escondem-se os limites das sombras que nos fogem ao olhar e os enganos vestem-se camuflados de farol.

Nesta neblina fechada escondem-se os finais de tarde que, nem os mais furtivos raios de sol conseguem iluminar.

Nesta névoa trancada escondem-se as margens vampirescas que se mascaram de anjos para levar-nos ao precipício.

Neste nevoeiro selado escondem-se as barreiras da ilusão com o simples e matreiro propósito de nos ocultar os embustes.

Nesta cortina de fumo espesso escondem-se as armadilhas sedentas de sangue, de quem, com esperança e boa-fé, se deixa guiar.

Os véus do engodo aproveitam-se da cegueira dos tolos e inocentes, como se o prejuízo dos desavisados fosse a única e suprema via para matar a fome da cobiça desmedida e cobarde.

EMANUEL LOMELINO

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 14 - Emanuel Lomelino

Imagem pinterest

10-09-2024

Desconheço o modelo educativo utilizado na formação dos novos jornalistas, mas desconfio que, ao contrário do que era ensinado, em tempos que vão longe, os princípios base da profissão devem ter sido colocados de lado e informar sobre os factos deixou de ser a sua principal e imperativa função.

Este paradigma do jornalismo, que não é novo, faz com que os noticiários e as colunas de jornal nada mais sejam do que enxurradas de hiperbólica adjectivação sobre coisa nenhuma, avalanches de especulação barata, aniquilamento do bom-senso e apologia de imediatismo, que resulta na estupidificação maciça.

Longe vão os tempos em que ler jornais e assistir a um espaço noticioso televisivo ou radiofónico, para além do aspecto informativo, enriquecia-nos linguisticamente, através de espessas doses de textos com qualidade literária.

Infelizmente, nestes dias de selvático consumismo descartável e sedentarismo mental, somos encharcados por meros rascunhos lamacentos, cheios de estrangeirismos bacocos, fraca dicção e ausência completa de ética e valores deontológicos.

Não posso negar que a era digital trouxe coisas boas mas, para mal dos nossos pecados, o que mais se destaca é a preguiça intelectual, como fica provado pelo miserável jornalismo que nos inunda os sentidos.

EMANUEL LOMELINO

Cordão umbilical (excerto) - Julia Seraphim

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Tem épocas em que a minha curiosidade em relação àqueles que me geraram se aguça. Tanto que, há alguns anos, procurei uma radiestesista para saber mais a respeito. Descobri que tenho um irmão que igualmente foi entregue, pela mesma falta de condições dos nossos progenitores. Curioso é que todas as minhas dúvidas poderiam ser sanadas com uma boa conversa com a minha mãe adotiva. O problema é que simplesmente não conseguimos dialogar sobre temas profundos, minha mãe e eu temos uma relação de difícil proximidade.

EM - ESTRANGEIRAS - COLETÂNEA - IN-FINITA

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Lomelinices 33 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

33

Não existem muitos estudos sobre a matéria e quase todos pecam pela escassez informativa, sendo pouco esclarecedores.

Não há consenso quanto à forma de classificar este género de transtorno porque a multiplicidade de sintomas não permite deduzir se estamos perante uma tendência patológica ou uma perturbação mental. Esta dificuldade deve-se ao facto de existirem diferentes graus de manifestação do fenómeno, sempre dependente de cada infectado.

Sabe-se que é um vício. Uma dependência incontrolável que, mesmo detectada precocemente, é difícil de combater porque a ciência, ao contrário do que fez com outras adições, ainda não conseguiu identificar uma origem concreta e universal. Os únicos factos comprovados são que, em nenhuma circunstância, e apesar de ser uma condição pandémica, não há casos de regressão, apenas de progressão, mas não se conhecem casos de mortalidade associada, logo, não tem características malignas.

Assim sendo, não existindo fármacos nem tratamentos paliativos específicos, recomenda-se que todos os adictos diagnosticados prossigam as suas vidas dentro da normalidade que a sua compulsão pela escrita permite, até que se descubra um antídoto.

EMANUEL LOMELINO

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Lomelinices 32 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

32

Cansado de frases feitas e clichés de ocasião, o corpo embrulha-se em si mesmo e chora todas as dores – as que tem, as que sente, e as que estão por vir.

Nesse recolhimento não há verde nem outra cor qualquer que mascare a palidez da derme triste e dormente. Só escuridão absoluta e isenta de compaixão.

Assim retraído, procura defender-se das inclementes chuvas metafóricas e mordazes que não cessam de ferroar, como ponteiros no extremo da agudeza e perversidade.

Quanto mais se fecha, na sua redoma sem escudo, mais expostas ficam as cicatrizes que o abraçam, e mais abertas ficam as feridas que o retraem.

O processo repete-se tantas vezes que acaba por transformar-se num círculo vicioso e o corpo cede ao inevitável, converte-se à dor instituída e deixa de sentir...

EMANUEL LOMELINO

O princípio do mundo (excerto 3) - Jorge Chichorro Rodrigues

 

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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O oceano, além de ter a grande qualidade de irmanar todos os homens da nau capitânia da frota comandada por Pedro Álvares Cabral, fazendo-os partilhar as mesmas grandezas e os mesmos perigos, transmitia ao orador o estranho pressentimento, de muito vagos contornos, de que tinha uma missão a cumprir sobre a Terra. O seu carisma rejuvenescera homens que haviam embarcado com as faces causticadas pelo destino, os olhares fustigados por anos de sofrimento e de trabalho, os corações a sangrarem de saudades da terra e dos parentes deixados para trás, o espírito receoso quanto ao incerto futuro…

EM - O PRINCÍPIO DO MUNDO - JORGE CHICHORRO RODRIGUES - IN-FINITA

domingo, 13 de outubro de 2024

Contos que nada contam 28 (A cantora) - Emanuel Lomelino

A cantora

A plateia levantou-se, em uníssono, para ovacionar Severina, com a mesma intensidade emocional que a cantora emprestou à sua actuação.

Apesar de sentir no peito todo o esforço despendido durante as duas horas de espectáculo, Severina não precisou forçar um sorriso perfeito e repleto de humildade genuína, na hora de demonstrar agrado pela devoção do público.

Ela vivia para aqueles momentos de louvor. Os únicos que lhe transmitiam paz e davam motivos para não desistir. Durante o tempo que estava na sala de espectáculos, o mundo parava, a vida suspendia-se e Severina conseguia usufruir de algo que era mais do que um sonho. Era uma pausa no pesadelo diário que vivia fora dos palcos.

Entregar-se de alma e coração à sua arte, ver as lágrimas de comoção em alguns rostos e, entre gritos de reverência e admiração, escutar soluços pungentes e emocionados, por muito incoerente que pudesse soar, eram os estímulos que necessitava para esquecer momentaneamente todas as agruras que a vida lhe proporcionava diariamente, após perder a criança e descobrir que não poderia voltar a engravidar, e que o generoso público ignorava completamente.

EMANUEL LOMELINO

sábado, 12 de outubro de 2024

Lomelinices 31 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

31

Nesta loucura de mim, reflexo das piscadelas de olho dos meus (apurados?) sentidos, cravo todos os verbos auxiliares de memória e construo uma história sem futuro, mas intemporal.

Como criador que sou (e me sinto?) abro o kamasutra de possibilidades ilimitadas do estro (se o tenho!) e desenho a inconveniente postura de um adjectivo concreto, para expurgar o iodo das sentenças enfermas e, assim, eliminar a linha condutora dos raciocínios exactos que me invadem.

Enquanto autor de incoerências e paradoxos redundantes, mergulho na liquidez de um pensamento firme e dou-lhe características plásticas, como quem mastiga a dor de uma revelação insonsa - de cuja falta de encanto pode germinar a frase mais contundente e acintosa.

Há propósito nos casamentos que imponho às palavras porque de nada servem as solteiras, prenhes de solidão gramatical e mais susceptíveis ao embuste e ao narcisismo.

Acredito na desformatação das fórmulas e no aniquilamento do óbvio (advérbios e derivações!) em detrimento – que não substituição – dos recursos assessórios, que não os simples e básicos, porque essenciais e necessários.

Creio na encriptação metafórica e na irónica exploração dos verbos regulares, como quem personifica uma multitude de gestos comprometedores.

Por isso, todos os meus textos podem ser explicados numa única e definitiva frase, quando não por apenas uma singela palavra.

EMANUEL LOMELINO

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Lomelinices 30 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

30

Ao contrário de todos os outros sentimentos, acho que o medo ainda me espera no inesperado.

Não tenho medo de répteis, roedores ou gosmas, apenas asco e repugnância. Não tenho medo de agulhas, ou outros instrumentos pontiagudos.

Não tenho medo da solidão porque a procuro. Não tenho medo do vazio porque me preencho. Não tenho medo do escuro porque me atrai. Não tenho medo de gritos porque os ignoro. Não tenho medo de falinhas mansas porque desconfio. Não tenho medo de traições porque as sinto. Não tenho medo da desilusão porque prevejo. Não tenho medo do futuro nem da morte porque os desconheço.

Não tenho medo de monstros, bestas, feitiços, crenças, seitas ou outras criações fantasiosas da humanidade porque também as sei criar.

Tenho vertigens, mas nunca me recuso subir ao penhasco mais alto e íngreme porque sou combativo mesmo sentindo angústia e desconforto.

Dizem que o medo dá arrepios, também a febre. Dizem que o medo faz tremer, também o frio. Dizem que o medo faz suar, também o ginásio. Dizem que o medo deixa a garganta seca, também a sede. Dizem que o medo dá nós no estômago, também a fome. Dizem que o medo gera apreensão, também a pobreza. Dizem que o medo causa ansiedade, também as drogas. Dizem que o medo acorda os sentidos, também o sexo. Dizem que o medo origina desconfiança, também a política. Dizem que o medo provoca lágrimas, também a cebola. Dizem que o medo assusta, também eu.

EMANUEL LOMELINO

Entre mundos (excerto) - Farah Serra

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Acho que até os meus vinte e tantos anos vivi no mundo da magia. Apesar de alguns desajustes, no geral, dancei perfeitamente bem. Superei meus desafios sem esforços mirabolantes, sem nem mesmo me dar conta do tamanho e do peso deles. Talvez pelo meu encantamento, aquele que os jovens carregam no peito, a vida me parecia uma brincadeira, eu apenas aprendia as suas regras e me divertia. A minha existência fluía e eu flutuava.
Até que voei.
Voei longe, resolvi experimentar a bota que ficava lá do outro lado do oceano. Naquela época, no auge dos meus 30 anos, na urgência avertida de ter que conquistar algo, desembarquei no mundo real e iniciei a minha grande jornada em busca do meu complexo, emaranhado, ser.

EM - ESTRANGEIRAS - COLETÂNEA - IN-FINITA

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Lomelinices 29 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

29

O meu modo de criação é distinto e dá-me imenso trabalho, porque sou um autor estranho.

Leio uma frase, escuto uma conversa, oiço uma música, vejo uma imagem, e logo acende-se em mim uma estranha necessidade, impossível de controlar, de desenvolver a ideia.

Estranhamente, chamo os meus vizinhos dicionários, sondo verbos, adjectivos e substantivos, estudo sinónimos e antónimos, examino advérbios e pronomes, pesquiso significados e curiosidades, enfim, faço trabalho de laboratório.  Experimento conceitos, construo frases, burilo daqui, pinto dali, desenho acolá, escrevo e reescrevo até que o texto me informe da sua disponibilidade para ir ao forno, secar a tinta e temperar o aço que o sustenta. E espero…

Espero que o sujeito – meu ortónimo (mais estranho que eu) – decida se deve ou não divulgar o que escrevi. Quando há aval positivo, ele pré-agenda e tudo fica em suspenso, até à data de publicação.

O processo faz com que exista uma grande distância temporal entre o dia que vê nascer o texto e o momento em que lhe é dado sentir a luz da visibilidade.

Este texto, escrito hoje, certamente só terá leitores daqui a um mês, ou mais. Ou devo dizer: este texto que escrevi há um mês, ou mais, só está a ser lido hoje.

Seja qual for a forma correcta de expressar a ideia, de uma coisa tenho certeza: por causa do pré-agendamento, dependendo do ritmo de criação, só saberão da nossa morte – minha e do ortónimo obsessivo-compulsivo – meses depois de acontecer. E isso será um estranho prolongamento da nossa vida. Uma espécie de imortalidade temporária.

EMANUEL LOMELINO

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 13 - Emanuel Lomelino

30-07-2023

O útero foi fecundado, num ato de amor casto e inocente, com a esperança de ser a génese de uma nova realidade, plena, lúcida, feliz.

Mas os conceitos embrionários não têm correspondência nas atitudes progenitoras.  Todas as regras criadas são apenas para enfeitar. Os princípios morais não são para seguir. Os novos hábitos e comportamentos são meras figuras de retórica. As imposições jamais se cumprem. O respeito exigido não se dá. E a cegueira do obstetra de serviço impede que se diagnostique uma gravidez de risco.

Quando o parto acontece, todos aplaudem e celebram o rebento. Ninguém duvida da paternidade, mas também não reconhecem os traços da ascendência. Instala-se um silêncio inquisitivo e uma ânsia contempladora, mas há felicidade nos rostos.

A inocência infantojuvenil depressa se transforma em arrogância e prepotência, de forma tão natural quanto previsível. Dizem que é sinal dos novos tempos e, com o contágio da cegueira obstetra, vai-se alimentando as bizarrices do pequeno adulto.

Agora multiplique-se por toda uma geração e, pasme-se quem quiser, temos o sucessor do homo sapiens. Um inútil, sem interesse no passado, dependente e sem rumo, criado na ilusão dos novos tempos, em que todos são vencedores e os reis são aqueles com cabelo cor de açafrão ou colorau, maquilhados com filtros virtuais. donos de canais de TikTok e que questionam a utilidade de se ter inventado a gravidade.

Não escrevo mais nada porque ainda me cancelam.

EMANUEL LOMELINO

O princípio do mundo (excerto 2) - Jorge Chichorro Rodrigues

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Ao redor do vibrante orador, que gostava de explanar diferentes temas filosóficos, reuniam-se homens irmanados pela curiosidade, pela vontade de ouvir alguém especular sobre o grande mistério do mundo. O oceano em volta, mostrando a real dimensão do Homem, inspirava elevados pensamentos e sublimes ideias, que, contudo, não deixavam de ser relativizadas pelo orador. «As ideias são como as pessoas», dizia, «se as valorizamos excessivamente tendem a querer dominar-nos, a tornar-nos menores que elas... Devemos ter em relação a elas o suficiente espaço crítico para que jamais elas nos seduzam ao ponto de nos fazerem perder a lucidez...

EM - O PRINCÍPIO DO MUNDO - JORGE CHICHORRO RODRIGUES - IN-FINITA

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Lomelinices 28 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

28

Em certos dias, mais incertos do que a dúvida existencial, derrama-se sobre mim um desejo de não ter necessidade de extravasar, nas palavras que de mim se manifestam, a síntese de tudo o que esta mente, insaciavelmente, cria e inventa.

No cansaço dos dias modorrentos, e de outros mais fugidios, verte-se-me uma vontade de não precisar juntar verbos aos complementos; sujeitos aos predicados; advérbios às conjunções, que se formam, como hera incómoda e selvagem, e não consigo conter nas margens do anonimato.

Na fadiga das horas morrentes, e outras mais cheias, espalha-se sobre mim uma ânsia de dizimar este imperativo clamor de expelir as histórias que despontam a cada olhar, a cada som, a cada angústia, a cada pensamento, como quem sangra as debilidades do que não controla.

Nesses dias de lassidão e pouca pachorra, inundo-me de repulsa pelo assombro e inconveniência das palavras que germinam em mim e não sei como deixar aprisionadas nas prateleiras do descaso, como quem se renega três vezes diante da morte anunciada.

Na inabilidade de mim, em frustrar a criação, aborta-se-me sobre os ombros a força e querer de abdicar deste estro que não pedi e alguns juram que tenho.

E tudo isto porque, por mais absurdo que possa soar e parecer, mesmo sendo eu o criador, o que crio não me define e eu não me escrevo.

EMANUEL LOMELINO