segunda-feira, 23 de junho de 2025
A biblioteca da Sofia (excerto 5) - Fátima Santos
domingo, 22 de junho de 2025
Pensamentos literários 34 - Emanuel Lomelino
Pensamentos literários
34
Ser adicto à leitura só se revela problemático se não existir a disciplina comportamental necessária, principalmente quando, após um livro, sentimos aquele impulso compulsivo de aprofundar uma temática ou contrapor ideias.
Nesses momentos de euforia literária, é preciso usar toda a força da resolução, e autocontrolo, para impedir-nos de correr à primeira livraria e comprar uma montanha de tomos relacionados com o original.
O mesmo acontece quando ficamos deslumbrados com a escrita de determinado autor e somos impelidos a adquirir, de supetão, todas as suas obras.
Aqueles que sofrem desta enfermidade cultural sabem o quão difícil é resistir aos ímpetos insaciáveis do conhecimento. A melhor forma de combater os sintomas é reler cada obra, pois a releitura sempre nos mostra algo que nos passou despercebido e pode responder a algumas questões, sem ser preciso ler outras abordagens. Outra forma de antídoto consumista é, sempre que possível, procurar antologias, colectâneas ou resumos biográficos, onde possamos estar em contacto com as obras de modo mais superficial, contudo, mais abrangente, porque, no final das contas, não precisamos saber todas as respostas. Muitas vezes basta conhecermos alguns fragmentos para alcançarmos, por nós mesmos, a ideia global.
Tirando isto, a leitura só traz benefícios.
EMANUEL LOMELINO
sábado, 21 de junho de 2025
Crónicas de escárnio e Manu-dizer 33 - Emanuel Lomelino
10-06-2024
Os abutres não deixam de pairar sobre as cabeças insufladas de modernismo. Fazem voos rasantes, com a desenvoltura de quem confia no anonimato que as suas sombras protegem, e não temem as vozes esclarecidas porque, essas, são minoria.
As ideias passaram a ser raros oásis num deserto, de areias ociosas, cada vez mais extenso e repleto de tendas ocupadas por neodepressivos que ficaram enfermos por escutarem demasiados nãos, e pensam que os pixéis dos ecrãs táteis são ingredientes de medicina alternativa probiótica.
Por este andar, ainda um dia, haveremos de encontrar embalagens de alucinogénios e pachorra-diet nas prateleiras dos supermercados, ao preço de uva-mijona e com a possibilidade de ser paga em suaves prestações de bitcoins, via transferência telepática e sem prescrição médica.
Valha-nos a Santa Imaculada Paciência de origem mandarim. Digo deste modo porque especificar a nacionalidade seria propalar um estereótipo (sentimento que apenas um caucasiano privilegiado, como eu, é capaz de expressar).
EMANUEL LOMELINO
sexta-feira, 20 de junho de 2025
Epístolas sem retorno 32 - Emanuel Lomelino
Malditas são estas noites brancas onde sobressaem os sonhos interrompidos e impropérios, porque no raiar do dia tudo será exponenciado numa frustração inigualável por viver nesta época em que já não há fugas revoltosas.
Quem dera poder, sem problemas de consciência e isento de responsabilidade, recriar os teus passos de adolescente despreocupado e pegar a estrada rumo a qualquer lugar, que não este.
Ao contrário de ti, não posso simplesmente preparar um farnel com fruta, pão e enchidos, e fazer-me ao caminho, por dias e dias, deixando a vida para trás das costas. Tenho de honrar contratos, pagar contas e amparar uns quantos.
Por conta desta nobreza de carácter, tão inoportuna como castradora, sobra-me a resignação e razões de sobra para lançar, entre dentes (por ser madrugada), mais umas quantas obscenidades. Cada um no seu tempo e com o seu fado.
Tua semente
Emanuel Lomelino
De todo mal (excerto 2) - Rose Pereira
quinta-feira, 19 de junho de 2025
Prosas de tédio e fastio 63 - Emanuel Lomelino
Prosas de tédio e fastio
63
Mais uma tarde pardacenta a atravessar-se no meu caminho, como se a minha percepção das coisas fosse uma contínua divergência. O sol e a lua nunca deixaram de revezar-se e as nuvens são transição.
Os espelhos não refletem novidades, além de uma ou outra ruga mais acentuada, fruto dos carinhos do tempo e da labuta, e os pintarroxos insistem em ser tema de conversa, tantas vezes quantas eu escrevi sobre a perfeita sensibilidade do nenúfar preferido.
O pão não deixa de ser vida, os iogurtes de frutos vermelhos têm pedaços de morango e amoras, os golfinhos sempre serão mamíferos e a Rosa é mãe de três, avó de quatro, trisavó de outra tripla (por ora), e tem um gato oportunista como um político em campanha eleitoral (depois de satisfeito o seu pedido, vira costas e não quer saber de ninguém).
As horas correm, as tarefas executam-se, as refeições confortam, os cigarros matam, as dores sentem-se, os pensamentos fluem, a mente viaja, e a campainha toca (devem ser os dois livros, da Graça Pires, que encomendei).
Volto já!
EMANUEL LOMELINO
Protesto por cinco minutos (excerto 2) - Daniele Rangel
quarta-feira, 18 de junho de 2025
Pensamentos literários 33 - Emanuel Lomelino
Pensamentos literários
33
Olho pela janela aberta ao mundo. Deixo-me seduzir pelos voos intermitentes dos piscos e procuro, entre as gaivotas, alguma que se assemelhe a Fernão Capelo.
Há um desejo de ver piruetas infames e cambalhotas irreverentes, como quem só consegue sentir-se quando deambula entre os precipícios da esquizofrenia e o jazigo frio.
Reduzo o horizonte ao solo espraiado diante de mim e surpreendo-me com um gato sem botas nem florete que usa o seu crédito pessoal de vidas ao desafiar, com mortais cabriolados, dois rafeiros parcos de senso e língua salivante.
Detecto no felino essa fome de liberdade criativa e adrenalina presunçosa que é a ascensão de um espírito aventureiro e vagabundo, como um qualquer Tom Sawyer cansado dos Sid desta vida, sempre prontos a demonstrar a sua originalidade formatada, em palcos carmins sob iluminação lilás.
Regresso ao interior da casa com o intuito de transformar os meus devaneios oculares em algo ligeiramente parecido com literatura, no entanto, fica reforçada a ideia de que, por mais voltas e reviravoltas que dê, as minhas palavras nunca terão a elasticidade das fábulas e serão sempre a representação por extenso da minha inaptidão gímnica.
EMANUEL LOMELINO
A biblioteca da Sofia (excerto 4) - Fátima Santos
terça-feira, 17 de junho de 2025
Prosas de tédio e fastio 62 - Emanuel Lomelino
Prosas de tédio e fastio
62
Este não é um texto de saudosismo, mas tempos houve em que as cores do dia-a-dia eram mais vívidas, mais aconchegantes.
Os rios refletiam o brilho dos céus; as searas ondulavam a cor do sol; os pomares eram arco-íris de pêssegos, laranjas e maçãs, os jardins eram viveiros de rosas, margaridas, jacintos e tulipas, que cresciam entre ilhas de carvalhos, azinheiras, rododendros, glicínias e, por vezes, jacarandás.
O amarelo era alegria; o verde era esperança; o azul era tranquilidade; o conforto era castanho, a paixão era vermelha; o romantismo era rosa; a jovialidade era laranja; o respeito era preto; a paz era branca.
Hoje, sempre que vemos algo semelhante ao descrito, dizemos estar perante uma visão paradisíaca porque tudo ficou pálido, genérico, demasiado pastel e acelerado, e ficamos sem saber em que momento perdemos as cores e nos entregámos ao cinzentismo moderno.
EMANUEL LOMELINO
segunda-feira, 16 de junho de 2025
Pensamentos literários 32 - Emanuel Lomelino
Pensamentos literários
32
Ausento-me de mim nas horas mais longas, à espera do momento certo para abraçar os pensamentos que me elevam.
Sou como um filtro de malha finíssima no garimpo da consciência, sem espaço para deixar-me enredar por irracionalidades pueris, que nada mais fazem do que emburrecer quem a elas se entrega.
Por não ser fácil manter a disciplina necessária para ganhar indiferença ao irrelevante, habituei-me a inundar a mente nos mergulhos que faço na literatura clássica - o meu eremitismo ajuda.
Com isto volto a reforçar a minha adoração pelo isolamento consciente e propositado; pelo silêncio solitário; pelas conversas mudas com os literatos do passado; com as minhas discussões internas. Mesmo que isso me coloque mais dúvidas do que certezas e mais perguntas do que respostas.
EMANUEL LOMELINO
domingo, 15 de junho de 2025
Pensamentos literários 31 - Emanuel Lomelino
Pensamentos literários
31
Felizmente, há coisas sobre as quais já não escrevo. Não é autocensura, tampouco é cansaço das temáticas. Simplesmente escrevi tudo o que queria, e podia, sobre cada um desses assuntos e nada mais me resta dizer do que silêncio.
O ofício da escrita – e destes exercícios – também inibe a exclusividade e exige uma faceta criativa múltipla e diversificada, sob pena de martelar sempre as mesmas teclas e parecer um gravador em looping.
Depois, existem toneladas de palavras que merecem a minha atenção redobrada pela amplitude dos ângulos que posso abordar, tantos são os sinónimos à procura de emprego.
Por outro lado, caso seja necessário apontar dedos e culpados, peçam-se meças aos livros que se abrem aos meus olhos e aos raciocínios que afloram nesta mente irrequieta e esquizofrénica.
EMANUEL LOMELINO
De todo mal (excerto 1) - Rose Pereira
sábado, 14 de junho de 2025
Ao pé-da-letra 8 - Emanuel Lomelino
Ao pé-da-letra
8
Neste tempo que é o meu, os anos são cúmulo de água, cloreto de sódio, sangue, reticências, pontos e vírgulas.
Reúnem-se dores e lamentos que se transformam em bagagem-de-mão e escalam-nos até aos ombros, para terem uma vista privilegiada dos horizontes que nos esperam.
Os caminhos; os elementos; as ideias; os anseios; as esperanças; as derrotas; os contratempos; tudo são facas de gumes afiados preparadas para cortar a derme à primeira oportunidade; ao primeiro deslize; à primeira desatenção; ao primeiro baixar de guarda.
Noutro tempo que também foi o meu, as cicatrizes (físicas e mentais) eram medalhas de crescimento e a sensibilidade recusava ficar à flor-da-pele e nunca despertava por dá-cá-aquela-palha.
Os monossílabos não originavam depressões. As encruzilhadas não provocavam ansiedade. Os arrufos não geravam separação. Os atritos não empunhavam belicismo. Todos sabiam que a banha da cobra era escorregadia e o óleo-de-fígado-de-bacalhau sabia mal, mas nem por isso havia dúvidas existenciais nem associações de apoio a seres cheios de não-me-toques.
EMANUEL LOMELINO
Protesto por cinco minutos (excerto 1) - Daniele Rangel
sexta-feira, 13 de junho de 2025
Pensamentos literários 30 - Emanuel Lomelino
Pensamentos literários
30
É nestes exercícios de escrita que me abandono e encontro, vezes sem fim, por inteiro, sem lamentar a sorte nem chorar fados.
As palavras sabem como despir-me a alma (sem pudores nem tabus) e vestir-me o âmago (sem estéticas ou estilismos) porque todos os trajes são assessórios dispensáveis, que só existem por convenção e vaidade.
Um dia pensei ser criador de frases (aprendiz de qualquer coisa semelhante a literatura), mas a realidade esbofeteou-me e agora sei que são elas (as frases) que me constroem, me definem, me escrevem.
O que escrevo não sou eu, nunca fui. Aquilo que escrevo é o que a escrita quer que eu pareça ser. E tudo isto porque eu medito no que ela me dita.
EMANUEL LOMELINO
A biblioteca da Sofia (excerto 3) - Fátima Santos
quinta-feira, 12 de junho de 2025
Pensamentos literários 29 - Emanuel Lomelino
Pensamentos literários
29
O vício de conhecimento empurra-me para leituras inquietantes que, apesar do desconforto da não identificação, têm o condão de plantar algumas sementes com fortes probabilidades de germinarem em algo útil.
Esta circunstância ocorre amiúde porque, por alguma razão que a própria razão me oculta, formatei-me de modo a conseguir ver qualidade literária naquilo que está fora dos parâmetros do meu gosto pessoal.
Quando isto acontece, fico sobressaltado pela indigestão que a leitura me provoca, no entanto, porque tenho um número considerável de neurónios sempre predispostos a saber mais, dou por mim a funcionar como uma esponja que absorve de forma selectiva, mas consciente, conceitos que posso aplicar nas criações por vir.
Este processo é a soma de duas máximas ancestrais: “O saber não ocupa lugar” + “Nada se perde, tudo se transforma”.
EMANUEL LOMELINO
quarta-feira, 11 de junho de 2025
Devaneios sarcásticos 22 - Emanuel Lomelino
Devaneios sarcásticos
22
Esta coceira subcutânea é uma reacção alérgica à imodéstia que voga nos ares circenses do universo individualizado das palavras.
Há um formigueiro que alastra corpo acima, como um farol de incómodo, e um outro, de jactância, que sobrevive à base de ácidos, pompa e circunstância.
A questão central é, precisamente, ser tudo lateral, periférico, limítrofe, marginal, à essência da arte. Tudo é engodo e subversão. Um chamariz veneziano para um corso de elitismo pedante.
O problema não está na vaidade presunçosa, mas sim nos rostos de plástico e sorrisos acetilenos, que escondem facas nos cós e fatuidade nos gestos, como se o mundo dependesse de esturjões e cosméticos, ao som de pífaros e violinos, numa noite de fábula e histórias da Carochinha, de portas cerradas aos pés-no-chão e olhos-abertos.
E não há metáforas suficientemente impactantes para descrever a arrogância pífia desta nova tendência aristocrata que grassa, e se alastra como sarna, nas letras Iscariotes.
EMANUEL LOMELINO
terça-feira, 10 de junho de 2025
Prosas de tédio e fastio 61 - Emanuel Lomelino
Prosas de tédio e fastio
61
Abrem-se as portas da introspecção e na balança do deve e haver são pesados todos os passos, recuos e avanços.
Na avaliação, somam-se virtudes, méritos, nobreza, honra e altruísmos, e subtraem-se defeitos, vícios, transgressões, imperfeições e fraquezas.
O resultado desse exercício meditativo nem sempre corresponde à realidade porque existe uma tendência para a parcialidade, contudo, sendo-se honesto, chega-se a conclusões interessantes que podem ser benéficas, se usadas para limar arestas e alterar comportamentos.
Seja como for, a reflexão é a base holística do autoconhecimento e jamais pode ser reprimida, bem pelo contrário, deve ser entendida como uma oportunidade única para analisarmos as diferenças entre aquilo que queremos ser e o que somos na realidade. Só depois poderemos concluir se temos a fibra necessária para nos transformarmos no nosso ideal.
EMANUEL LOMELINO