quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 142 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

142

As pessoas têm um medo insano do silêncio que as leva a urrar as maiores atrocidades, como quem faz piruetas sempre que a luz dos holofotes incide sobre si.

São poucos aqueles que sabem valorizar a solidão consciente e reconhecer o silêncio como um lugar privilegiado onde ninguém, para além do próprio, deve ingressar.

Um espaço, bem no âmago, onde a consciência consegue respirar livremente e restabelecer-se num ambiente de intimidade e conforto, em que o vazio total é sinónimo de paz.

Infelizmente, há quem desconheça o carácter paliativo do silêncio e o confunda com solidão emocional, e por essa razão usam todos os artifícios para jamais ficarem fora do alcance dos olhares alheios. Esses, pobres vítimas do engodo, nunca serão capazes de compreender o quão falaciosa pode ser uma multidão e como é um engano pensar que caminhando em grupo se ludibria a solidão nefasta.

Mas o pior é não entenderem que existe quem faça do silêncio um porto de abrigo e reflexão, opte por trajectos alternativos, longe das ribaltas e sem grandes alardes, porque é dentro de nós que nos encontramos verdadeiramente.

EMANUEL LOMELINO

Ilhas de paz (excerto 18) - Glória Gomes

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Após o começo das cimenteiras, prática cada vez mais adiada para quando vier a chuva, após as cimenteiras debaixo de um sol tão ardente que torna visível as ondas da temperatura à distância, não sei se é o sol ou o cansaço, mas até o invisível se torna visível nestes momentos. Uma prática feita à base da força do braço dos homens e das pernas das mulheres, completamente não mecanizada devido não só a falta dos equipamentos, mas acima de tudo devido ao difícil ou mesmo impossível acesso de qualquer objeto que movimenta. Após as cimenteiras, todo o trabalho árduo que demora vários dias ou meses e em diferentes locais, não existe nenhuma certeza de que o ano será bom, a espera que o mês de julho chove, e nada, a espera que o agosto chove, e nada. A este ponto toda a conversa enreda a volta da chuva, é uma preocupação geral e a fé do homem entra em ação, “se Deus quiser” ou “Deus há de nos dar”, “Deus é que sabe”.

EM - ILHAS DE PAZ NUM MAR DE TORMENTO - GLÓRIA GOMES - IN-FINITA

quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 141 - Emanuel Lomelino

Imagem pixabay

Diário do absurdo e aleatório 

141

A vida tem-me escamado os sentidos como se a minha existência fosse um cúmulo de estações que se repetem ciclicamente.

Sinto-me um objecto renascentista, nas mãos do destino, quando os dias revelam ser dejá vu em looping, uma e outra e outra e outra vez.

A aspereza vulcânica, que pensava ter exterminado e dera lugar ao reinado de uma gentil suavidade, nascida de uma necessária e útil cordialidade, e que me impedia de reagir em impulsos nefastos, regressou ainda mais explosiva, como quem retorna ao ponto de partida após uma ausência consciente, deliberada e com horas contadas.

A tolerância escoa-se em animalescas correntezas de impaciência, tal como o rio mais feroz e indomável.

Conclusão… por mais que embelezemos os cenários a essência jamais se altera porque as pedras serão sempre pedras, por mais que alisemos as rudes arestas pontiagudas.

EMANUEL LOMELINO

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 140 - Emanuel Lomelino

Imagem recreio

Diário do absurdo e aleatório 

140

Existem livros que nos permitem reencontrar a chama de vida que o tempo, inclemente, procura extinguir.

São páginas de sabedoria que enchem o âmago e conseguem entranhar-se no canto mais íntimo de nós, ressuscitando a vontade de sorrir para a lua e abraçar as estrelas.

Existem livros que nos falam as palavras certas, no momento mais necessário, como uma poção de energia rejuvenescedora.

São páginas paliativas que reforçam a nossa imunidade às maleitas desta era de inversão, de radicalismos fúteis e bacocos, de pragas analfabetas e desinteligência nata.

Existem livros que são portas e janelas abertas para mundos de ideias, pensamentos e raciocínios, cada vez mais escassos, e que provocam as nossas próprias reflexões, fazendo-nos exemplos perfeitos da máxima de Descartes “Cogito ergo sum”.

EMANUEL LOMELINO

O escutador da quaresma (excerto 6) - Renata Quiroga

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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A fala bonita entoava a rima perfeitamente, enjoadamente rimada entre os versos dos diversos cidadãos que nasceram distintivos, mas de tanto rimar unificaram-se em metade deles mesmos. Não mais reconheciam seus sinais de nascença, as sardas da padronização já haviam se multiplicado e transformado os Fala Bonita em iguais. Há tempos que também travaram guerra com a Dúvida. Não entendiam por que ela vivia o dia todo conversando e falando dentro da cabeça dos Fala Estranha. Uns achavam que era ciúme da fortíssima amizade entre os Fala Estranha e a Dúvida. Mas, na verdade, como os Fala Bonita não se identificavam com estranhamentos e questionamentos jamais iriam bater papo com a Dúvida. Como queriam a Verdade sem diálogo com a Dúvida, decidiram descartar em lixo desligável do planeta todo e qualquer curso de rio que desemboca incerteza.

EM - O ESCUTADOR DA QUARESMA - RENATA QUIROGA - IN-FINITA

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 139 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

139

Conheço-me por inteiro, de polo a polo, em todas as coordenadas e pontos cardeais. Sei os meus atalhos, desvios e encruzilhadas. Domino a minha geografia, até de olhos fechados, de trás para a frente e em linha recta. Vejo-me na plenitude do ser (pensante e corpóreo) e sinto-me na totalidade das fracções que me compõem.

Sou antropólogo, matemático e historiador da minha essência – para o bem e para o mal – ciente das multifacetadas circunstâncias e vicissitudes que me moldaram e, porque sou obra em permanente construção, continuarão a esculpir-me nos dias por vir.

Sou o mais feroz crítico dos meus defeitos e impetuoso defensor das limitadas virtudes que exalo, sem alarde, com plena noção de quão ténue é a linha que as separa da evitável soberba.

Sou como sou, na consciência dos actos e na legitimação de existir do meu jeito.

EMANUEL LOMELINO

Fiona (excerto) - Filomena Silva

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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E enquanto nos descobríamos um ao outro, Fiona é atropelada por um carro a alta velocidade. Esticada na rua, sangrava com feridas profundas. De imediato foi agarrada e transportada ao veterinário.
Minha mãe estacionou o carro à porta, saiu e tocou à campainha. O Dr. Malheiro logo abriu a porta e mandou entrar, pois tratava-se de uma urgência. Mandou colocar a Fiona na marquesa. Observou-a cuidadosamente. Avaliou o estrago das feridas e a sua quantidade. Tirou-lhe a temperatura e fez uma careta.
Fez o ponto da situação, dizendo que tinha três cortes largos, um buraco na barriga e faltava-lhe um naco de carne na coxa. Tinha perdido muito sangue e estava cheia de febre. Precisava ser estabilizado e a seguir anestesiada e operada.

EM - DAS RAÍZES AO CÉU - FILOMENA SILVA - IN-FINITA

domingo, 26 de novembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 138 - Emanuel Lomelino

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Diário do absurdo e aleatório 

138

Lancei, ao vento, um papagaio de papel, com o formato de diamante e frases que voam alto. Daquelas que nos levam a acreditar que as palavras fazem eco nos corações, mesmo os mais empedernidos.

A brisa acariciou cada letra, como quem beija o mais sagrado dos cálices divinos, e o ar ficou prenhe de plumas celestiais a oscilar como flocos de neve.

O céu chorou sete lágrimas pingentes, uma por cada cor do arco-íris que, sorridente, agraciou o mundo com a sua benevolência graciosa.

Duas cotovias ladearam o papagaio de papel, qual escolta imperial, numa sincronia notável. Ora para a esquerda, ora para a direita, ora planando, ora subindo, ora descendo, num voo perfeito de tão belo.

Rompi o fio, como quem corta o cordão umbilical, e deixei o papagaio de papel ganhar vida e escrever, nos céus, o seu próprio destino.

Ainda hoje escuto, nos murmúrios das aragens vespertinas, a sinfonia das palavras que escrevi no papagaio de papel. E sinto-me tão livre quanto ele. Só não tenho as cotovias ao meu lado.

EMANUEL LOMELINO

Emma Everston (excerto 24) - Ernesto Moamba

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Minutos depois a vítima estava exposta de cabeça para baixo, com as mãos atadas atrás das costas e suspensa por uma corrente presa nos pulsos. A dor tornava-se ainda maior quando, com auxílio de um fio de arame atravessado nas suas gengivas, o perfura lentamente, dente por dente, gengiva por gengiva. E na cabana, seus amigos já estavam há duas horas à sua busca, mas sem sinal ou pista do mesmo.
O medo e o nervosismo maltratavam cada vez mais a vítima que se encontrava, até então, com o rosto rodeado de baratas e ratos que atiçavam maior terror quando porventura pensasse em gritar, quando o assassino passasse o alicate de metal nos seus dentes. Passar a noite deitado era quase impossível, aliás, mesmo se quisesse nem tão pouco pegaria no sono, pois os mistérios de homicídios atingiam o auge de medo.

EM - EMMA EVERSTON, A UNIVERSITÁRIA DA CIDADE DE SANGUE - ERNESTO MOAMBA - IN-FINITA

sábado, 25 de novembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 137 - Emanuel Lomelino

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Diário do absurdo e aleatório 

137

Muitas vezes, antes de dar asas ao cumprimento do meu ofício de lazer, revejo as primeiras páginas deste compêndio de exercícios e nasce em mim uma frustrante revolta pela pobreza franciscana que tenho derramado.

Apesar do número de fiéis leitores, sempre generosos no acompanhamento, os textos soam-me tão insonsos quanto miseráveis e dificilmente me satisfazem. Há sempre algo que, na hora da concepção, passa despercebido, mas na releitura ganha destaque como estivesse manchado de fluorescência.

Admito que o meu sentido de autocrítica ultrapassa, amiúde, os níveis de razoabilidade, mesmo na avaliação de meros exercícios sem pretensões literárias, porém, sem ele a minha escrita estagnaria.

E, convenhamos, os maus textos não só aborrecem como também emburrecem.

EMANUEL LOMELINO

Ilhas de paz (excerto 17) - Glória Gomes

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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É de conhecimento de todos que uma das maiores limitações de uma economia é a deficiência de um sistema produtivo, capaz de satisfazer as necessidades internas, mas também, acima disso, capaz de exportar. Produção capaz de reduzir o preço, criar competitividade e consequente melhoria de qualidade e pressão em desenvolver novos produtos cada vez melhor, contribuindo para a criação de riquezas e necessidade de inovação.

O desenvolvimento produtivo é um importante fator que contribui para a competitividade, uma vez que serve como base de desenvolvimento tecnológico e inovação, manter os recursos humanos na área científica, criação de novos produtos, serviços e a sua modernização.

EM - ILHAS DE PAZ NUM MAR DE TORMENTO - GLÓRIA GOMES - IN-FINITA

sexta-feira, 24 de novembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 136 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

136

Gosto de abrir os livros às vozes do passado e deixar-me envolver pelos trâmites de outrora.

Passeio nas diligências do saber pretérito, percorro trilhos e veredas, pernoito em albergues e estalagens, atravesso aldeias e lugarejos, escuto as modinhas camponesas, os fandangos ciganos, as valsas aristocratas.

Navego em caravelas, trirremes, faluas e outros batéis, lado a lado com marujos e outros navegantes.

Monto dromedários nos desertos, iaques himalaias, jumentos bérberes, cavalos mongóis, elefantes asiáticos, licórnios e outras mitologias.

Embrenho-me em jardins sumptuosos, bosques, florestas, searas, prados, castelos, palácios, cárceres, coliseus, fóruns, becos e tabernas.

Escuto filosofias e saberes milenares, observo comportamentos seculares, respiro superstições e crenças intemporais, bebo conhecimento universal, entro em estreito contacto com culturas eternas.

Depois fecho os livros e pondero no que aprendi sem acreditar na remissão da humanidade nem na absolvição dos desvios da modernidade.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 23 de novembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 135 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

135

A necessidade de trabalhar nas palavras é, mais que um dever imperativo, a solução para desanuviar a mente depois das escoriações provocadas pela dureza de um dia interminável.

Há uma urgência de reflexão que lateja no âmago até roçar o desespero e o corpo exige uma pausa restauradora, só atingida num estágio de solidão física e na ausência de lucidez da dor.

Respiro fundo. Fecho os olhos. Abstraio os sentidos. Sacudo os incómodos. Abraço o silêncio. Entro no universo do vazio. Nada.

Inspiro lentamente, como quem absorve o tempo a conta gotas. Olho a folha branca que espera, pacientemente, o primeiro beijo de tinta. Expiro como quem dá o tiro de partida, deixo que as palavras fluam a seu bel-prazer e abracem, com serenidade, a paz instalada.

Com elas surge a libertação suprema. Através delas instala-se uma harmoniosa conciliação com o mundo; com a vida; comigo.

Escopros, ponteiros, macetas, hematomas, esfoladelas, sangue, suor, cansaço (não necessariamente por esta ordem) deixam de significar penosa realidade e, aqui, regressam à sua condição de meros vocábulos.

EMANUEL LOMELINO

O escutador da quaresma (excerto 5) - Renata Quiroga

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Coabitavam, na Cidade Luz, pessoas que frequentavam as praças, os cinemas e os cafés, contudo quase ninguém se entendia. O lugar era compartilhado por dois tipos de pessoas: os Iguais, conhecidos como Fala Bonita, e os Diferentes, desconhecidos como Fala Estranha. Os Diferentes descendiam dos Divididos e os Iguais, sucessores dos Normais, aqueles que de quase nada sofreram, além de narcisose, inventose e uma aguda normose.
Era certo que Diferentes e Iguais não haviam aprendido o mesmo idioma. Os Diferentes não usavam o código oficial do local que viviam e pior, cada um falava sua própria língua. A convivência entre os dois grupos sempre foi atravessada por muita confusão, e com o passar do tempo a qualidade das relações sofreu muitas rupturas.

EM - O ESCUTADOR DA QUARESMA - RENATA QUIROGA - IN-FINITA

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 134 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

134

Em criança, logo, numa fase prematura e ingénua da minha existência, comecei a acumular alguns sonhos, como tesouros preciosos que defenderia com a própria vida.

O tempo encarregou-se de concretizar uns, eliminar outros, substituir alguns e frustrar a maioria.

Os anos passaram, comecei a ver o mundo com outras cores e aprendi a delinear os objectivos com outra precisão, porque a experiência assim o exigia, mas sempre sem deixar de sonhar grande.

Durante a caminhada foram muitas as adversidades impossíveis de contornar que me obrigaram a fazer escolhas e a ser mais criterioso. Então deixei de ser um acumulador de sonhos para me transformar em coleccionador de projectos por realizar.

À falta de oportunidade, ou capacidade, para levar tudo a bom porto, apertei mais a malha da exigência e segui na luta escolhendo as batalhas a travar.

Porém, porque a vida apresenta muitas encruzilhadas e o cansaço dos desaires não mata, mas mói, fui deixando cair grande parte da bagagem sonhada para dar algum alívio às costas.

Foi nesse momento que percebi que o meu sonho maior, que apenas vagueava no meu inconsciente, foi o único que sobreviveu à caminhada, resistindo a todos os meus tropeços, enganos e quedas.

Feitas as contas, não fui eu que concretizei este sonho. Foi ele que me filtrou.

EMANUEL LOMELINO

Mudança (excerto) - Filomena Silva

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Reunidos em volta da mesa, pais, avós e filho, comiam juntos num silêncio preocupante, de saber o que fazer, trocavam irmãmente ideias de possíveis resoluções, com argumentos e contra-argumentos, e finalmente, apertaram as mãos de um acordo final – todos estariam com ele no que fosse necessário. Iriam libertar o mais possível o pai de o transportar, assumindo as mulheres outros afazeres.
Com grande capacidade de adaptação, o rapaz rapidamente se integrou na nova escola. Aí sentia que a comunicação era mais fácil. A partilha das brincadeiras no recreio também. Cedo fez amizades para a vida.

EM - DAS RAÍZES AO CÉU - FILOMENA SILVA - IN-FINITA

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 133 - Emanuel Lomelino

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Diário do absurdo e aleatório 

133

Não sei se alguém já escreveu uma tese de doutoramento, sobre genética, abordando a possibilidade do ADN humano conter um gene oleiro. Acredito que, estudando o assunto de forma aprofundada, há grandes probabilidades de ser um ótimo tema para dissertação, uma vez que podemos encontrar inúmeras provas que nos levam a considerar como possível a existência desse gene.

Nos primeiros anos de vida, todos nós, sem excepção, somos moldados pelos país e professores. Este processo, chamado educação, é socialmente aceite, por se tratar de simples transmissão de conhecimento.

No entanto, depois de ultrapassada essa fase de aculturamento natural, em muitos momentos da nossa vida, encontramos muita gente com a pretensão de nos moldar segundo os seus critérios, procurando adequar a nossa forma de agir e pensar, não ao que mais nos convém, mas sim ao que melhor serve os seus interesses.

Outros há que nos querem “embelezar” dentro dos seus próprios padrões estéticos, sempre em mutação, como se estivéssemos numa linha de montagem para produção em série e permanente reciclagem.

O maior problema desta realidade é que o hábito de produzir clones, culturais ou plásticos, já está tão enraizado nas sociedades modernas que, pasmem-se os incrédulos, até os próprios clonados são responsáveis pelas novas clonagens.

E são tantas as pessoas com essa tendência ceramista que não é difícil acreditar na existência de um gene específico. Falta só aparecer a tal tese de doutoramento.

EMANUEL LOMELINO

Emma Everston (excerto 23) - Ernesto Moamba

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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De tantas injustiças e sofrimento que passavam no meio daquela cidade, para eles a morte pareceu-lhes a melhor opção, uma alternativa de refúgio. Viver cercado de sangue e andar por cima de cadáveres desunidos das suas almas tornava-os imundos, desconhecidos e sem nenhum valor na sociedade. E foi desta forma trágica, lamentável e triste, que os dois agentes da SISE terminaram no alvo daquele inferno.
Algumas horas depois, a companhia já estava deserta e para o agente sortudo, que tinha escapado do assassino, quando escurecesse, depressa o medo lhe roçaria, lentamente, o corpo. Este encontrou-se indefeso, sem nenhuma arma, água ou comida. Poderíamos dizer que as esperanças e o amor pelo trabalho eram as únicas armas que o mantinham ainda vivo. Porque ninguém antes havia entrado e saído com vida naquela floresta.

EM - EMMA EVERSTON, A UNIVERSITÁRIA DA CIDADE DE SANGUE - ERNESTO MOAMBA - IN-FINITA

segunda-feira, 20 de novembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 132 - Emanuel Lomelino

Imagem freepik

Diário do absurdo e aleatório 

132

Alcides era um amante das palavras quando, por uma das muitas casualidades da vida, assistiu a uma palestra realizada na sua livraria preferida.

No início, vendo toda a pompa e festança, sentiu-se um peixe fora de água, mas tentou disfarçar esse desconforto e obrigou-se a assistir à totalidade do evento.

O moderador deu as boas-vindas, apresentou os palestrantes e disse que cada um deles era um poço de conhecimento do universo da escrita e, no final, todos os presentes sairiam da livraria mais ricos de sabedoria.

Alcides escutou todos os discursos, em silêncio, como quem assiste a um sermão na missa de domingo, mas o seu âmago estava a ser esmagado pelas palavras que ouvia. A fanfarronice era proporcional à incoerência; o pedantismo vinha abraçado a exageradas doses de bazófia; e o ar estava impregnado de uma altivez elitista que feria todos os sentidos.

Com muito esforço, Alcides conseguiu resistir até ao final do evento. Angustiado, fez uma rápida reflexão sobre tudo o que acabara de ouvir e descobriu que o moderador só tinha dito uma verdade: realmente ele ia sair da livraria mais sábio. Agora compreendia as razões que levaram Pessoa a dizer que os poetas são fingidores, e entendia, finalmente, as palavras de Celso Cordeiro: “para deixar de ser jumento, não basta a um burro saber ler”.

EMANUEL LOMELINO

Ilhas de paz (excerto 16) - Glória Gomes

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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O bem-estar de um país depende não só do crescimento económico, no qual tende a ser caracterizado somente pelo indicador quantitativo, mas também pela qualidade de vida das pessoas. Estáveis indicadores macroeconómicos atrai investimentos, encoraja empreendimento e cria postos de trabalho. Uma economia equilibrada constitui a pré-condição para a estabilidade económica, uma vez que reduz a vulnerabilidade aos choques internos e externos. Negócios que proativamente responde às mudanças do mercado, conseguem se ajustar as necessidades dos consumidores e se sustentar contra os riscos e contribuir para o crescimento do país. As políticas devem ser desenvolvidas com intuito de melhorar o desempenho da economia e capaz de ajudar a combater os problemas como o desemprego, inflação, altas taxas de juro, investimentos e poupança.

EM - ILHAS DE PAZ NUM MAR DE TORMENTO - GLÓRIA GOMES - IN-FINITA

domingo, 19 de novembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 131 - Emanuel Lomelino

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Diário do absurdo e aleatório 

131

Dei-me a liberdade de ignorar o tempo, e o clima, e iniciei a caminhada sem destino premeditado.

Deixei-me guiar pelo instinto e permiti-me mergulhar nos pensamentos de forma deliberada.

Pesei, na balança da consciência, os prós e contras de todas as possíveis decisões para a resolução das minhas dúvidas mais prementes.

Cirandei, pelas ruas da cidade que me enche as medidas, mesmo não sendo minha, quase em piloto automático. Apenas andando de mãos dadas com as reflexões.

Nesta deambulação, dei por mim a entrar na livraria por impulso, como se aquela porta fosse apenas mais uma esquina contornada, parei diante de um livro de capa preta, peguei-o, girei-o noventa graus, juro que sorri, levei-o à caixa, paguei, sai.

Fiz a caminhada de regresso, já sem pensar na vida. Apenas me indaguei sobre a razão de ter entrado naquela livraria, pela primeira vez em trinta anos, pegado no primeiro livro que cruzou o meu olhar e sentir que a caminhada, supostamente feita ao acaso, afinal, estava previamente destinada – por vontade de Nietzsche.

EMANUEL LOMELINO

sábado, 18 de novembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 130 - Emanuel Lomelino

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Diário do absurdo e aleatório 

130

Abram as portas do fórum e permitam que todas as testemunhas dissertem como lhes aprouver. Escutem as versões de cada uma delas, como quem escuta um hino – em reflexão silenciosa e contemplativa.

Anotem todas as denúncias, cismas, queixas, dúvidas, melindres, temores, desconfianças, suspeitas e imputações. Deixem-nas fazer todas as acusações. Anotem tudo. Deliberem na independência do vosso juízo e sentenciem - se tiverem de o fazer.

Eu, na qualidade de réu assumido, limitar-me-ei a escutar todos os relatos, como quem se delicia ao ouvir os contos mais fantasiosos, plenos de drama e repletos de “achismos”.

Seja qual for o desenlace, seja qual for o entendimento deste tribunal, nascido da vontade protagonista e alavancada em propósitos coscuvilheiros, receberei os autos de pronunciamento como quem anseia ler o argumento adaptado, para cinema, de uma ficção sensaborona.

Por mais que tentem, nunca conseguirão biografar o meu trajecto, a minha caminhada, os meus conceitos, as minhas decisões, sendo fiéis aos acontecimentos, sem que eu decida favorecê-los com a única verdade que me define – a minha.

Até lá, e para não caírem no ridículo, sugiro que no final da vossa colectânea de adivinhação coloquem a frase: “toda e qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência”.

EMANUEL LOMELINO

O escutador da quaresma (excerto 4) - Renata Quiroga

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Muita escuridão dentro de um canhão de luz. Foi assim aquela virada de ano, que virava noite e virava dia sem que ninguém mudasse de roupa. Na virada, encontrava- se o Escutador acompanhado por milhares de pessoas. Assim era conhecido porque ninguém mais lembrava seu nome de tanto que sua profissão se impunha como metonímia de seu próprio ser. No Pavilhão Auricular da Rua do Arco, o Escutador foi recepcionado por uma sofisticada orquestra dourada composta de membros de puríssimo cristal: Tímpano na bateria; Martelo na percussão; Estribo e Bigorna no vocal. Ele não era, exatamente, o personagem principal de toda multidão. Talvez, a própria multidão protagonize a história do Escutador. Um não prescinde do outro. A multidão era grito, calor, abundância, inquietude, plebeia. Ele era a audição em movimento. Era o ouvir atento e discreto que voava de pensamento de cabeça para fora. O Escutador não dizia nada fora da palavra: nunca falou o que ouviu, nunca escutou quem não falhou.

EM - O ESCUTADOR DA QUARESMA - RENATA QUIROGA - IN-FINITA

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Diário do absurdo e aleatório 129 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

129

Quando visto o uniforme para garimpar o que sou, olho-me ao espelho e louvo os traços que o tempo vincou no meu rosto, com a maestria que só ele possui.

Vejo minuciosamente, de lupa em riste, e não detecto ruga mal colocada, ou nascida sem razão. Todas se explicam, e aplicam, na minha essência, como um traje feito à medida, por encomenda.

Na aspereza natural da derme curtida, destacam-se algumas cicatrizes merecidas, outras tantas por negligência, mais algumas que, embora saradas, ainda tem memória dolorida.

Então, tento lembrar-me das minhas feições imberbes, como quem se entrega à tarefa de descobrir as diferenças, porque todas as fotos deixaram de estar em exposição quando foram colocadas nos álbuns do esquecimento. Nenhuma escapou à crueldade do engavetamento, não fosse alguma lembrar-se de ganhar vida e azucrinar, com feitio igual ao meu, o dia-a-dia de alguém.

E assim, quase sem traços visíveis da aparência anterior, mas honrado pelo desenho do tempo, caminho de cabeça erguida mostrando ao mundo a prata que a vida me vem outorgando.

EMANUEL LOMELINO