domingo, 31 de janeiro de 2021

Enquanto Quarentena - MARIA ESMERIZ-THOMAS

LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
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A nossa vida é como uma tela gigante onde registamos diariamente
as nossas ações, as nossas emoções, as nossas aventuras e, por vezes
apenas nos entretemos a desenhar garatujos (que até há quem diga
que revelam muito sobre nós) em momentos de um pensar mais
profundo ou abstrato. Porém, nesta quarentena obrigatória ou
auto-imposta deparamo-nos com a nossa rotina desmantelada.
Desmantelada. Diferente. Dolorosa. Aborrecida.
Pensamos que iríamos ler todos os livros que tínhamos em
“standby” na prateleira ou a viajarem dentro das nossas bolsas,
que iríamos pintar a cozinha, consertar roupas, exterminar os
lepismas que invadiram a garagem, dormir mais ou até darmo-
-nos ao luxo de criar uma certa anarquia (ou letargia(?) à nossa
volta. Tivemos a ideia de que para além do tele-trabalho
Ainda poderíamos iniciar um hobby, uma nova e inovadora
profissão. Quem sabe. Tanta alternativa e tanto que fazer. Depois.
Mas depois, à medida que os dias passam, devagarinho, acordamos
para a dura realidade e ao percebermos que o vírus virou viral e
que a sua devastação invadiu o mundo e o nosso raciocínio, caímos
nas incertezas, constatamos que não somos os maiores, que não
somos invencíveis e então pusemos logo de imediato todos os
gadgets e redes sociais ao nosso alcance a funcionar e os noticiários
televisivos em todas as “células” da nossa casa a noticiarem o que
queríamos ouvir e a bombardear com as imagens que queríamos
ver e, desta vez, pelo menos, o spectrum da morte é verdadeiro.
A morte anunciada a cada segundo é verdadeira. A morte acontece.
A morte reclama vidas. É verdade que o “dito cujo invisível” anda
á solta e rouba-nos a vida com um ténue bafejo.
É verdade que nos priva dos nossos gestos mais nobres: dos
beijos, dos afagos.
É verdade que nos priva dos nossos direitos mais básicos e
gratuitos - do sol que através das vidraças o vemos sorrir, mas que
por enquanto não é para todos, e para quem já “partiu” este sol já
não faz falta - para sempre - aos nossos pais, aos nossos avós - para
apenas mencionar família.
Já disse que o sol sorri lá fora. A primavera. Mesmo com um
nó na garganta dizemos que a primavera chegou luminosa e luxuosamente
vestida de verde e flores. Muitas flores. Flores a bordear
os campos com as suas grinaldas coloridas, flores bordadas
na relva onde aqui e ali já uma ou outra papoila espreita. O sol
a sorrir lá fora. A primavera meiga e criativa. Andorinhas. Onde
andam as andorinhas com o seu voar de rajada rente ao chão e
olho ligeiro.
Não as vemos. Só vemos as ruas austeras, tristes, silenciosas.
As casas de janelas fechadas à Morte. Ruas desertas e o silêncio.
Silêncio aterrador onde até as casas de Deus se fecharam. As casas
de Deus. Fechadas. Ruas ermas onde apenas anjos físicos lutam
labutam para nos manter sãos e salvos nos nossos próprios lares,
confortáveis ou não, a pensar no que o futuro próximo nos reservará,
a pensar no futuro mais alargado que se adivinha ainda
pandémico(?) assolador; ou podemos ansiar/imaginar um futuro
sociocultural e económico remodelado, numa estrutura mais
humanamente abrangente. Mais inclusiva ou até simplesmente
desejando/acreditando num mundo verdadeiro, firme, transformando
as nossas reflecções em ações para que possamos contradizer
Calderon de la Barca:
La Vida es un Sueño
Que es la vida? Un frenesi.
Que es la vida? Una ilusion,
Una sombra, una ficción.
Y el mayor bien es pequeño
Que toda la vida es un sueño,
Y los sueños sueños son.

E podermos um dia abrir os braços abrir os braços e dizer
que a vida não é para se entender. A vida é para se viver e, ainda

Calderon de la Barca:
La vida es un hermoso sueño
Y lo quiero vivir despacio

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sábado, 30 de janeiro de 2021

Cangalha do Vento (excerto XVIII) - LUIZ EUDES

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Esther era freguesa da mercearia de José Paulo e estava sentada numa esteira feita por ela mesma com palha de licurizeiro. Gostava de mergulhar em lembranças e isso era salutar a José Paulo e ao Fernando, que observava dona Esther com um preceito de que ela estava além das coisas mais comuns do lugar. Para ele, uma mulher com aquela idade conhecia histórias e fatos do mundo.
– Hein! É você o menino de Aristeu? – disse a anciã, com um sorriso agradável apertando os olhos para melhor enxergar José Paulo.
– Sim, sou eu! – respondeu José Paulo carinhosamente.
– Pois sim. Posso estar bem velha e fraca, mas se eu disser para você que lembro do seu pai quando lhe deu na veneta ir para a floresta, vai ver sim que tenho uma cabeça boa. – disse a velha negra batendo com o indicador na cabeça.
– Puxa! É incrível que se lembre tão bem.

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segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Cangalha do Vento (excerto XVII) - LUIZ EUDES

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No meio do caminho havia uma casa, às margens da estrada, era da negra Esther, neta de escravos. Aos oitenta anos, ela não tinha mais forças para as duras tarefas da vida na roça. As suas pernas não respondiam mais ao desejo de manter-se de pé. Sentia- se velha e enfadada. 
Passava os fins de tarde a contemplar o sol pôr-se por trás das jaqueiras atrás da casa e quando chegava a noite e seus mistérios, ela rezava o rosário para afastar o medo e descansava o corpo pesado de mulher que pariu dezoito filhos numa cama de vara de cipó coberta por um colchão de palha seca de capim. Sempre que aparecia prenhe, o seu marido pedia-lhe; “me dê um filho homem, é melhor para ajudar-me nos roçados”. O marido foi-se e ela sentia a sua hora aproximar-se.

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quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Na corda bamba - FARAH SERRA

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Sempre achei que um dia seria mãe, como parte do ciclo natural da vida. Uma época até bradava que queria quadrigêmeos, duas meninas e dois meninos – obviamente eu não tinha a menor noção do que significasse ser mãe. Quando me dei conta da doideira, comecei a dizer que queria ter uma menina primeiro e depois um menino, isso porque sempre senti que eu cuidava muito mais do meu irmão mais velho do que ele de mim. Mudei de ideia de novo, queria que eles fossem gêmeos, achava linda a ligação afetiva das minhas primas gêmeas. Mas, nunca quis um filho único.
Quando engravidei, curti demais a minha gestação. Adorava meu barrigão e amava aquele serzinho que estava se desenvolvendo em meu ventre. Eu já era toda dela, antes mesmo que a minha filha nascesse. E, por sorte, vivenciei um parto natural humanizado, vivi a nossa exogestação com toda a intensidade que ela nos exigiu e desde lá venho saboreando a desconstrução íntima de me tornar mãe.
Passados dois anos, eu e o meu marido, pensamos que fosse o momento de ter outro filho – ele também não gosta da ideia de filho único. Gostamos de casa cheia, mas não só por isso. Moramos longe da família e sentimos muito pelo fato da nossa filha não conhecer aquele convívio íntimo com parentes próximos. Acreditamos que com mais um filho a proporcionaríamos toda a beleza que é brincar, brigar, construir memórias e compartilhar histórias, com alguém que estará sempre ligado por aquele fio sutil da irmandade.
Bem, logo engravidei. Quanta felicidade! Não, não tanta. O destino quis me mostrar o outro lado dessa coisa toda de ser mãe. No início do quarto mês, quando finalmente bradaríamos aos quatro ventos que minha pequena não seria mais filha única, durante um exame de rotina, quatro palavras foram violentamente disparadas contra mim, sem dó nem piedade: “non ha più battito”. Esses tiros, não tem mais batimento, foram tão certeiros que sai daquela sala escura embalada a vácuo. Foi como se eu caminhasse no ar. Em meio a um terrível nevoeiro, eu via as pessoas, mas não as reconhecia. Via suas bocas se movendo em câmara lenta, mas não ouvia nenhum som. Eu não estava mais ali. Foi a pior experiência que vivi. Foi como se o meu maternar estivesse sendo perfeito demais, para uma vida real.
E como falar sobre a morte para uma menininha linda, super empolgada com aquela história esquisita de ser a irmã mais velha? Como chovia estrelas cadentes, era Notte di San Lorenzo, seu irmãozinho
resolveu pegar uma carona na cauda do cometa para passear entre os planetas e todas as maravilhas do universo. Juntei minhas forças, guardei essa história em um canto especial do meu coração e segui a vida. Afinal, eu tinha uma bombinha de energia e alegria, bem ali, ao meu lado.
Passado um tempo, veio mais um, outra perda. Sozinha com minha pequena (meu marido estava em uma viagem de trabalho na China), não tive como viver minha dor. Mas a vida também me acariciou, apesar da visceralidade dos acontecimentos, dessa vez foi mais sutil. Além de eu já saber que isso não era uma daquelas coisas que “nunca vai acontecer comigo”, eu estava no primeiro mês e meu bebê partiu sem procedimento. Naturalmente ele me deixou, pude vê-lo, me desculpar e falar para ele seguir a luz junto do seu irmãozinho. Em vez da lata do lixo hospitalar, esse meu rebento foi repousar no vaso mais lindo da minha varanda.
Foi então que entendi que ser mãe é andar na corda bamba. Onde segurando de um lado estou eu mesma, quem um dia fui, do outro está a minha mais nova versão. No entanto, quanto mais eu caminho tentando manter o equilíbrio – às vezes com cuidado, nas pontas dos pés, outras, completamente desajeitada, e algumas com toda aquela confiança que esse desafio nos pede – mais essa corda se afrouxa e mais distante fica para eu tocar a plenitude de me transformar nessa figura, tão idealizada e cheia de estereótipos.
Nessa escola chamada maternidade, venho aprendendo que ser mãe é uma revolução que acontece no ritmo das imperfeições e perfeições da vida. Nela estou me formando em aprendiz do desequilíbrio, da dualidade: dúvidas e certezas, erros e acertos; autocontrole e descontrole; compaixão e raiva; solidão e presença; ensinar e aprender; amar e ser amada; entregar e receber; vontade e medo de tentar mais uma vez.
Para mim, ser mãe é isso. É tudo isso. É isso tudo. Mas, mais do que tudo, é entrega.

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quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Cangalha do Vento (excerto XVI) - LUIZ EUDES

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Somente agora José Paulo sentia que haveria de voltar às lides rurais e este era o seu desejo. Não ia àquela região desde quando deixou o Junco, fugindo da seca num pau de arara cheio de ilusões e sonhos, naquele ano em que o Junco parecia querer ocupar um lugar no inferno, de tão quente. Somente agora sentiu a vontade invadir-lhe a alma, iria às lides rurais sim. É a sua sina, lidar com a terra. “Terra é sempre terra” dizia-lhe o pai, Aristeu, o herói do lugar. Cavar a terra, plantar as sementes, adubar, fazer a limpa, adubar de novo, colher o feijão, pendurar nos moleques para secar ao sol e esperar a noite de lua cheia para fazer a bata, regada a cachaça e cantos populares:
“Coragem, coragem,
Por cima do medo...
Coragem”.

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Luta pela vida! - LÚCIA D'VERONA

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Sei que este tempo é de angústia e lentidão. Estamos fechados em
casa e nada parece fazer sentido...
Sei que parece ser uma luta inglória, sem comparação, mas por
favor, não fiques nesse marasmo... Acorda para a vida, abandona
a tristeza, não deixes a impotência te ganhar, para que a esperança
volte a crescer no teu coração e o teu rosto irradie a paz, que é
comum te acompanhar!
Pai, sorri ao sol que brilha pela janela, ao cachorro que insiste
em te acordar e contigo brincar… Sorri muito, porque só assim
poderás mostrar que nada vence, a tua resiliência de quereres ser
feliz! Por que quando sorris, acalmas esta angústia que pretende
aniquilar-me e fazes renascer em mim uma réstia de esperança,
através desse teu brilhante olhar, que normalmente me impulsiona
a continuar, quando sou eu, que quero deixar de lutar!
Pai, só tu consegues mostrar-me com a tua positividade e persistência,
que a vida é para honrar e por ela se deve lutar... Não
podes desanimar...
Pai... Tu és o meu guerreiro... Por ti, por mim, pela família
toda... tens que continuar a lutar...
Se desistires, é como se um elo à vida quebrares e o nosso
mundo ruirá, como um castelo de cartas a desabar...
PAI querido, por favor... luta pela tua vida!!!

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segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

Enquanto é pandemia - LIÈGE DE MELO

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Minha filha busca sua máscara e álcool gel para ir à padaria, localizada
em frente ao edifício onde moramos.
Minha neta, de apenas seis anos, apreensiva, pede que ela retorne
rápido e fala: “mamãe, sair é um perigo”. Contemplo a cena
com um aperto no coração...
Há alguns meses, como qualquer outra criança, ela tinha familiares,
amigos, escola, brincadeiras, parques e praias compondo
seu colorido universo.
Hoje, no entanto, como todos os seres humanos do nosso
planeta, minha pequena, sente um medo paralisante do “mau
invisível, coronavírus” que tem obrigado á maioria das pessoas
permanecerem enclausuradas nas suas moradias.
Sigo para o meu quarto, respiro fundo à procura de trégua
para inúmeros anseios que tem esbarrado nos meus limites e de
outrem, cujas escolhas me atingem e, por vezes, me afrontam.
Com esforço, tento entrar em estado de consciência pacífica,
onde revisito boas memórias afetas ao território da infância e
juventude.
Neste contexto, ouço as mesmas vozes... agora conversam
sobre a “aula on-line”, minha neta aumenta o tom e dá risadas
comentando ocorrências durante a revisão da tarefa de matemática.
Saiu do universo íntimo, para dar espaço à esperança teimosa
que ainda me habita.
Assim, percebo o aquecimento do sol tropical neste dia chuvoso,
aroma de feijão sendo preparado e o companheiro que carinhosamente
rega suas plantinhas na varanda... enquanto além
do perigo invisível do “sair” de casa, uma graciosa menina sai do
banho com seus cabelos molhados, repleta de alegria pelo iminente
encontro com amigos do seu colégio, através do atual universo
escolar on-line, trocando amorosas energias que, por certo,
irradiarão mundo afora.

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sábado, 16 de janeiro de 2021

Conversa de vaga-lumes - LÉA COSTA SANTANA DIAS

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Sempre me faltou noite para tanto sono. Porém, nos últimos dias,
as insônias têm sido minhas companheiras. Na última delas, lá
pelas tantas, apareceu em meu quarto um vaga-lume. Acontecimento
raro. Minhas lembranças desses seres de luz datam de
muitos anos, quando eu era criança e morava na zona rural numa
cidadezinha do interior.
De início, abundou em mim a alegria de doces reminiscências.
Por instantes, tive um sol inteirinho só para mim. Cá dentro,
acordara outra, aquela dos banhos de chuva em tardes com tons
de eternidade, aquela das brincadeiras de balanço que levava onde
se quisesse ir, aquela dos pirulitos mágicos que faziam desaparecer
até mesmo o medo de injeção. Depois, os lampejos do hoje e,
com eles, a dúvida: seria mesmo um pirilampo um mensageiro de
boas novas? Levantei-me da cama às pressas, no escuro, para não
espantá-lo. Usei o celular para a cata de dados. Enquanto pesquisava,
o vaga-lume voava de um lado a outro do quarto grávido
de luminescências. Depois ficou parado num canto, como se me
convidasse a ouvir segredos.
O interlocutor era incontestável sumidade. Eu, como caloura
em véspera de exame, peguei lápis e papel, discretamente iluminados
pela luz do celular, e me pus a rabiscar em página vazia
tudo o que me era confessado. Até que, sem perceber, caí em
sono profundo. Ao amanhecer, ainda descansava em meu quarto
o ilustre visitante. Tomada pelos afazeres cotidianos, somente horas
depois é que me apercebi da partida. Meu coração acolheu
bem a despedida. O sol não é astro de caber na palma de uma
mão. Contudo, mão tocada pelo sol é mão inscrição. Nela, o que
se vê e lê é segredo de vaga-lume:
– São pálidos os primeiros instantes da aurora. Ainda prenhes
das sombras do poente, anunciam páginas nuas, a serem
vestidas à medida que rompe o novo dia. O mais tímido sinal
de esperança faz nossos pés se agitarem em desejo de caminhada.
Mas, logo ali, a nos espreitar, a indesejada das gentes escarnece
da nossa contingência, e nos sugere, por meio de números em
ascendência, não mais haver panaceia possível. As macas comunitárias
se convertem em prenúncio de cruas despedidas. Não
há mais abraço. Não se pode velar o amigo morto. Pais e filhos
choram os abismos que os separam. Nossas certezas vagam em
suspenso, a nos exigirem um esforço sobre-humano para esperar
por um tempo que não assumiu conosco nenhum compromisso
de encontro. Longas noites emergem em nossos dias. As palavras
se esvaziam de sentido e nossos lábios se perdem em silêncio. No
caos interior que nos envolve, para se inscrever como suportável,
a experiência da pandemia requer o transmudar-se em vaga-lume.
São eles que invadem nossas almas, desde que lhes ofereçam guarida,
para iluminar insônias e desencantos, e anunciar que cada
crepúsculo esconde um amanhecer.

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sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Cangalha do Vento (excerto XV) - LUIZ EUDES

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Fernando curou-se e a bênção estendeu-se ao céu do Junco. A chuva veio, e um cheiro de terra quente e água envolveram a atmosfera, e pôs fim à seca de dez anos. Choveu forte e a água desceu num turbilhão em direção ao açude. Era o fim da longa estiagem no Junco.
Dias depois, José Paulo levantou-se cedo: queria ir à Fazenda Baixa Funda. No entanto, sentia uma fraqueza nos músculos. Era gripe, possivelmente. Precisava consultar-se com um médico e só havia atendimento na segunda-feira, o dia da feira no Junco. Talvez na botica de Zé da Perninha, misto de prático em farmácia e em medicina, houvesse um antitérmico, o que era bastante provável naquele estabelecimento repleto de frascos de remédios e medicamentos com fama de curar qualquer mal.

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segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Ser Mulher, Amante, Mãe, Amiga, Madrasta (excerto) - ANA MENDES

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Do alto daquele prédio, olhando o mar azul, imóvel e calmo,
esperei que não fosse verdade e tive medo. Medo do que seria da
minha vida de espírito aventureiro, de dormir tarde e levantar
cedo, de sair para trabalhar e só entrar em casa para me refrescar
no chuveiro, me arrumar e voltar a pôr o pé de salto alto, mini
saia e top na rua da alegria. A época dos grupinhos de amigos e do
maridinho, apaixonados... Eu ainda não estava pronta.
Ao nos casarmos, apenas queria viver um pouco mais para ele,
para mim, para nós. Não queria ser a esposa chata, que só contasse
fraldas e mamadeiras, ou que já estivesse tão cansada, que
só tivesse a oferecer um beijo distraído, cansado e sem ardor ao
marido que retorna a casa. Que não adormecesse só porque o sofá
a estivesse piscado o olho do cantinho da sala, que o choro do
bebê não a acordasse, depois de ter adormecido pela madrugada.
Pensei nisso tudo, me senti aprisionada, apavorada e sozinha,
com os meus medos de menina. Afinal, de mãe pouco sabia. A
minha, eu mal a entendia. Queria fazer bem melhor do que ela,
que fora mãe, numerosas vezes, e sendo eu a primogênita, nada
tive da sua companhia e ternura.
E a pílula? Onde tinha ido parar?! Não, ela é 99% segura! Decidi
tirar a dúvida e esperei na cozinha que os tracinhos não aparecessem,
naquele retangulozinho, dedicado às más e boas notícias.
Rezei, chorei, esperei minutos intermináveis, quando olhei:
dois! Dois traços! Não era só um que se avistava, mas sim dois!
Duplamente horrorizada, pestanejei, abri o frigorífico, peguei
a garrafa d’água gelada e me sentei no chão. Bebi pelo gargalo
mesmo, queria me afogar na tristeza de dizer adeus à minha vida
de menina, devido a um ser desconhecido e apressado.
O maridão ficou feliz, então me deixei viver os seus planos e a
felicidade me invadiu como que sem querer.

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domingo, 10 de janeiro de 2021

Cangalha do Vento (excerto XIV) - LUIZ EUDES

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Maria dava por cumprida a sua missão, com a certeza do dever cumprido e da cura do menino Fernando. Já seu marido desejava que tudo aquilo acabasse logo, pois fazia parte do pacote de viagem um banho de mar na vizinha Madre de Deus, onde havia praia boa para o banho, mar azul sem fim, e muitos bares aonde iriam fartar-se com caranguejos e cervejas geladas. A certeza da diversão na praia reduziu as horas, foi o que comentou José para os companheiros, e até Maria parecia aliviada e deixara-se alegrar com um pouco de cerveja preta, a sua favorita. Era um sentimento unificado de que o filho ficaria bom. Uma inexplicável paz acompanhou-os ali, enquanto o mar soprava num prenúncio de dias melhores.

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terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Cangalha do Vento (excerto XIII) - LUIZ EUDES

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Há anos tenta convencer o seu marido da necessidade daquela viagem à gruta de Nossa Senhora das Candeias. Precisavam pagar a promessa feita quando Fernando, ainda pequeno, adoeceu. O menino tossia muito, os vizinhos especulavam, falavam à boca pequena que seria asma, bronquite, até tuberculose. Levaram-no aos farmacêuticos e aos médicos, mas nenhum remédio combatia aquela tosse seca. Foi o padre João Batista quem sugeriu uma promessa à Santa. Prometessem levar o filho a beber água da fonte milagrosa, e com a fé seria curado. 
O barulho do motor da velha marinete acordou o pai e o filho. Levantaram-se e foram ao encontro de Maria que os aguardava com a mesa posta para o desjejum.

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domingo, 3 de janeiro de 2021

O que fazer agora? - FLÁVIA ALICE ZOGBI

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Agora estamos passando por uma situação muito difícil. Mas o
que me impressiona são os heróis anônimos que me enchem de
alegria e satisfação. O que fazem? Eles arrecadam comida para
doar para as pessoas que perderam tudo. Seu trabalho e até suas
casas. É algo que dignifica pessoas que tem esse lado humano em
seus corações. Vi o que está acontece em várias partes do mundo,
em contra partida, há milionários que construíram Bunkers, fortificações
debaixo da terra para sua proteção. Essas construções
havia muitas na época das guerras onde os generais e presidentes
planejavam suas invasões. Mas agora elas são luxuosas para abrigar
os ricos e poderosos. Então fica uma questão: será que levarão
seus empregados? E as famílias delas onde ficarão?
A solidariedade é, nos dias atuais, um valor inestimável que
todo o ser humano deveria ter. Será que um dia isso será possível?
Muitos questionamentos e poucas respostas.
Mas acredito que isso vai mudar, tem que mudar para o bem
de todos. Se pensarmos nisso quem sabe teremos transformações
inesperadas.
O importante é não perder a esperança. Fazer dela seu querer,
sua vontade.

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sábado, 2 de janeiro de 2021

MARIA DE FÁTIMA BERENICE DA CRUZ FALA DE... CANGALHA DO VENTO de LUIZ EUDES

Às vezes o melhor que podemos fazer por um livro, e respectivo autor, é dar a conhecer a primeira impressão. Assim sendo, aqui fica o texto que Maria de Fátima Berenice da Cruz escreveu para o livro CANGALHA DO VENTO, de Luiz Eudes.

A RELAÇÃO PSICOAFETIVA DO LEITOR NO ATO DA LEITURA: UM OLHAR SOBRE CANGALHA DO VENTO

THE PSYCHOAFFECTIVE RELATIONSHIP OF THE READER IN THE ACT OF READING: A LOOK OVER CANGALHA DO VENTO

Maria de Fátima Berenice da Cruz[1]

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo analisar a existência discursiva de três personagens masculinos da obra Cangalha do vento para detectar nos interstícios do texto como a hegemonia do discurso patriarcal, gerador da ideia de um corpo masculino forte e dominante se faz presente. Para isso, utilizamos como recurso metodológico a análise do discurso na perspectiva da teoria crítica e como base teórica os estudos sobre masculinidades, corpos dominantes, docilização do corpo e a noção de conserva cultural. Para consecução dessa análise, percorreremos de forma panorâmica os estudos de Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Durval Muniz com uma breve incursão no conceito de conserva cultural de Jacob Levi Moreno.

PALAVRAS-CHAVE: Masculinidade, dominador, dominado

ABSTRACT: This article aims to analyze the discursive existence of three male characters from the work Cangalha do vento to detect in the interstices of the text as the hegemony of patriarchal discourse, generating the idea of a strong and dominant male body is present. For this, we used as methodological resource the analysis of discourse from the perspective of critical theory and as theoretical basis the studies on masculinities, dominant bodies, docilization of the body and the notion of cultural conservation. To achieve this analysis, we will walk in a panoramic way the studies of Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Durval Muniz with a brief incursion into the concept of cultural preserve of Jacob Levi Moreno.

KEYWORDS: Masculinity, dominating, dominated

Marielle Macé ao tratar da relação entre a literatura e a vida nos diz o seguinte: “É na vida ordinária que as obras se sustentam, deixam suas marcas e exercem sua força. Não há de um lado a literatura e do outro a vida; Pelo contrário, há na vida em si, formas, ímpetos, imagens e estilos que circulam entre os sujeitos e as obras, que os expõem, os animam, os afetam”. (2011, p. 9-10). As palavras de Macé nos remete ao domínio da relação afetiva que o leitor exerce com a leitura da obra literária. Quando falo de afeto amplio o sentido desta palavra a todo e qualquer sentimento e reação que seja tomado o leitor no instante da leitura. Roland Barthes (1987, p.12) nos diz que a gestação do texto é realizada no pacto do prazer. E esse prazer se realiza no paraíso das palavras, onde dialogam signos, adjetivos, rupturas, frases e miragens de objetos que eles representam. Dito isto, percebemos que a obra literária só tem vida e ação quando tomada pelos olhos e sentimentos do sujeito leitor.

Por essa razão, para iniciar uma reflexão teórico-crítica sobre a obra Cangalha do vento (2019) do escritor Luiz Eudes foi preciso investir primeiramente num aporte psicoafetivo para que a obra pudesse ganhar vida e ação. A leitura reflexiva de uma obra exige do sujeito leitor um recorte temático de análise em virtude das inúmeras possibilidades de leitura que ela nos oferece. Em vista disso, optei por analisar o aspecto da masculinidade presente na obra Cangalha do vento (2019). Certamente que outros leitores encontrarão diversas outras faces de leitura; mas nesse momento me interessa perceber de que forma é construído o conceito de macho no tecido narrativo da obra. Em vista disso, farei uma leitura desenvolta, cínica, pois fortemente comprometida com o afeto.

O objetivo de análise desse artigo é percorrer a existência discursiva de três personagens da obra Cangalha do vento, a saber: Aristeu, José Paulo e Fernando com o intuito de pensar como o autor contemporâneo lida com a hegemonia do discurso patriarcal, gerador da ideia de um corpo masculino forte e dominante. Para isso, utilizamos como recurso metodológico a análise do discurso na perspectiva da teoria crítica e como base teórica os estudos sobre masculinidades, corpos dominantes, docilização do corpo e a noção de conserva cultural. Para consecução dessa análise, percorreremos de forma panorâmica os estudos de Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Durval Muniz com uma breve incursão no conceito de conserva cultural de Jacob Levi Moreno.

Antes de iniciar uma apreciação sobre essas figuras masculinas que protagonizam a obra Cangalha do vento, faremos uma breve apresentação desses homens. Aristeu, patriarca da família, sai de casa aos quinze anos de idade em decorrência de contínuos maltratos desferidos por seu pai. Com a ajuda da irmã que lhe preparou uma mala contendo utensílios necessários para jornada, Aristeu viveu quinze anos trabalhando na extração de látex na floresta amazônica. Decorridos os quinze anos de trabalho pesado, Aristeu segue para outro seringal e se torna vítima de um criminoso acidente provocado pela companhia de navegação para receber indevidamente o seguro. A despeito do projeto criminoso, Aristeu consegue se salvar e ainda salva três figurões da sociedade amazonense. Como recompensa Aristeu tem o seu retorno garantido para terra natal.

Ao chegar, inicia namoro com sua prima Tereza e em virtude do compromisso assumido, resolve mais uma vez colocar o pé na estrada em busca de melhor condição de vida. Dessa vez Aristeu vai trabalhar como tropeiro nas fazendas de cacau do sul da Bahia. Após dez anos, ao fazer uma viagem acompanhando um carregamento de cacau para Salvador, o navio encalha e afunda. Bafejado pela sorte, Aristeu mais uma vez sobrevive ao naufrágio e retorna à Baixa Funda onde vem a se casar com 44 anos com a sua Tereza de “tranquilidade mórbida” (p.22). O casal forma uma família com dez filhos, vindo Tereza a falecer no último parto.

O segundo personagem que faremos apreciação é o José Paulo, filho de Aristeu. Em decorrência de uma grande seca que assolou o Junco em 1961, José Paulo viaja para São Paulo com apenas 18 anos com poucos recursos e munido de muitas esperanças. A cidade lhe trouxe muitas dificuldades, mas um encontro com um político influente da capital paulista lhe rendeu um emprego na metalúrgica Serralgodão. O emprego oportunizou José Paulo a realizar o seu casamento com Maria e levá-la para São Paulo. Entretanto, no fim dos anos sessenta, com a tomada do poder pelos militares, a vida em São Paulo se torna impraticável, fazendo com que José Paulo retornasse com Maria grávida de Fernando para o Junco.

Fernando é o terceiro homem que protagoniza a obra Cangalha do vento. Sua representação na obra se constitui como a síntese das duas primeiras gerações masculinas da sua família com uma nova percepção sobre o ser masculino. A rudeza do avó e a perseverança destemida e solitária do pai, agora são transformadas por Fernando em vontade de saber. Comunga com Fernando a força da reflexão e em muitos momentos ele domina a narrativa e toma do autor a pena da escrita. E como nos diz Todorov (2006), “Que é uma personagem senão um determinante da ação?” Então, o personagem Fernando toma a narrativa para mostrar a sua sensibilidade frente às dores do mundo e com a liberdade de um pássaro-poeta, ele canta a sua terra sem medo de mostrar-se como macho pleno de sensibilidades.

Cangalha do vento permite ao leitor transitar do lastro de superfície linguística do texto para uma profundidade semântica promovida por uma leitura subjetiva. A imagem visiva[2] que o texto Cangalha do vento transmite constrói no leitor uma relação psicoafetiva com o texto porque a narrativa desses três homens serve de gatilho para pensar falas silenciadas, imagens invisibilizadas de mulheres companheiras e mães que estiveram nos bastidores das vidas desses personagens. Todavia, é perceptível que o apagamento dessas mulheres seja reflexos diretos da condição patriarcal perversa, pela qual foi construída a formulação do ser macho na vida desses personagens. Durval Muniz de Albuquerque Júnior em um belíssimo artigo intitulado “Máquina de fazer machos” sinaliza sobre a construção histórica e cultural do macho, dizendo:

Um macho não adoece, não tem fragilidades nem físicas, nem emocionais, frescuras. Um macho sempre sabe o que faz, aonde quer chegar e ai daquele que se colocar em seu caminho. Um macho é um ser competitivo, está sempre disputando com outros machos a posse das coisas e das pessoas (2010, p.22).

A descrição realizada por Durval Muniz revela o enrijecimento, a carapaça muscular, a ausência de afeto e de sensibilidade que compõe o universo masculino construído pela hegemonia patriarcal. Os homens de Cangalha do vento não seriam diferentes. Eles foram construídos para sofrer, trabalhar, amparar e se tornarem heróis da família. Todavia, ao rasgar a máscara da construção patriarcal, encontramos uns sujeitos frágeis, amorosos e com uma alma sofrida por ter escondido por toda uma vida a sensibilidade amorosa que neles habitava.

Desse modo, Luiz Eudes consegue magistralmente tecer um tapete linguístico com aparência simplória, mas com uma profundidade semântica invejável. As obras com aparente simplicidade discursiva escondem profundidade reflexiva. A velocidade com que são montados os quadros narrativos da obra, cria-se uma tela imagética de outras figurações não ditas, mas automaticamente sentidas. E como nos diz Umberto Eco (1979, p. 36) “um texto distingue-se, porém, de outros tipos de expressão por sua maior complexidade. E motivo principal da sua complexidade é justamente o fato de ser entremeado do não-dito”. E ele ainda ressalta que: “não há nada mais aberto que um texto fechado” (p.42). Então a leveza e simplicidade da escrita de Cangalha do vento transforma-a em leitura complexa e profunda. Essa profundidade é percebida no instante em que Cangalha do vento trapaceia o real dando-lhe o caráter ficcional.

A leitura dessa obra é para mim um exercício muito especial, pois ressuscita um contexto geográfico e afetivo vivido por mim durante toda infância e juventude. Reencontrar com o Junco, suas histórias e pessoas através da obra Cangalha do vento é perceber que a ficção e a realidade dançam juntas a ciranda da memória de uma leitora copartícipe da ação narrada por Luiz Eudes e tantas vezes narradas por meu pai na infância. Como não lembrar das famosas romarias da senhora Maria de Venança, das célebres missas do padre João Batista, do corpo franzino de Dom José Conélio, das fartas risadas do Dr. Linaldo e dos enfrentamentos políticos de Josias Cardoso na praça da Igreja de Nossa Senhora do Amparo. Esses e outros elementos acionam o gatilho da memória dessa leitora ao lembrar das narrativas familiares da infância, que por consequência, transformam esta obra num belíssimo texto recheado de lembranças, respeito e afeto. Por isso, passaremos agora a analisar a forma como a obra Cangalha do vento explora, atualiza e reatualiza a noção de corpo masculino, especificamente do sertanejo nordestino.

O CORPO MASCULINO: UMA CONSTRUÇÃO COMPLEXA

Cangalha do vento cria cuidadosamente para cada geração de homens um perfil de corpo.  O corpo do velho Aristeu carrega o peso da dor, a marca do sofrimento e um silenciamento do amor e da sensibilidade, mesmo quando sente amor ou dor. José Paulo por sua vez carrega a solidão e a luta de um menino que muito cedo conheceu a orfandade. Muito embora haja em José Paulo um comprometimento com o outro e um forte respeito para com a figura feminina. Fernando, representante da terceira geração, tem a sensibilidade de um sujeito leitor da vida. Isto posto, perguntamos: como ler os corpos desses homens?

Considerando que as masculinidades são corporificadas, logo, diferentes masculinidades são produzidas no mesmo contexto social. Daí a sua complexidade e contradição; visto que ela é mantida através de processos rudimentares de repressão. Cangalha do vento constrói e reconstrói as masculinidades do homem sertanejo partindo do princípio de que existe uma hegemonia de gênero traduzido ora pela força bruta, ora pela decisão silenciosa. Aristeu por exemplo é construído como um corpo maltratado, portanto desapegado de afetos. José Paulo, fruto desse desapego, aprende muito cedo a conviver com a dor e a solidão, produzindo uma personalidade masculina que subestima a energia, a felicidade, o riso e outras formas de vida que poderiam ser oferecidas à criança.

A obra nos faz refletir sobre a produção de masculinidades violentas no seio da cultura do homem. É necessário esclarecer que ao falarmos de masculinidades violentas, não necessariamente referimo-nos ao emprego da força bruta.  Mas essa masculinidade violenta pode ser percebida através da violência simbólica de que nos fala Pierre Bourdieu (2002), para o qual é uma forma de violência exercida pelo corpo discursivo sem que haja coação física, mas com sérios danos morais e psicológicos ao sujeito dominado. A forma como Aristeu descreve suas aventuras na Amazônia denota claramente o seu desprezo violento pelo feminino e a sua masculinidade violenta insiste em elevar o seu heroísmo e, ao mesmo tempo, enfatizar a insignificância das mulheres com as quais se deitava.

A esse respeito Robert Connell[3] (1995) afirma que: “A forma hegemônica de masculinidade se dividiu entre formas que enfatizam o conhecimento especializado e formas que enfatizam a dominação e calculismo egocêntrico”. O perfil de Aristeu se aproxima da segunda concepção apresentada por Connell, visto que aos quinze anos ele foge da opressão paterna que concebia a educação masculina a partir do protocolo de castigos e maltratos. A fúria paterna deserta Aristeu e o conduz a um impiedoso destino errante, aproximando-o da postura de dominação violenta, como podemos perceber na descrição do narrador:

Viajou vários dias sem arrependimento. Teve o índio desconfiado como amigo, o ladrão de gado como colega de trabalho, o traficante de escravas brancas como seu chefe, o matador de aluguel como companheiro de farra e as coxas morenas das índias e das prostitutas como refúgio e consolo. (p. 18)

Em nenhum momento a mulher é vista por Aristeu como companheira, amiga, colega ou chefe. Esses atributos ele reserva para os homens. A mulher é concebida como lócus depositário de mágoas. Esse discurso revela que a masculinidade hegemônica se estabelece e se fortalece exatamente na produção de inferiorização do outro feminino. É por isso que as coxas das índias e das prostitutas representam o corpo coisificado e insignificante, deliberadamente alimentado pelo imaginário masculino de feição patriarcal.

Por esta razão, quando Aristeu “se engraça” da prima Tereza (observe que ele não se apaixona, isto porque paixão é sinônimo de enfraquecimento masculino), ela o espera durante dez anos com “tranquilidade mórbida” diante dos seus olhos de “homem duro”. O pacto inconscientemente firmado com a construção de uma masculinidade de estrutura objetiva e cognitiva, fruto de uma sociedade androcêntrica, é tão forte que o retorno de Aristeu ao labor errante é justificado por ter perdido todas suas economias, segundo ele, consumidas por índias e prostitutas do Amazonas. Se torna interessante o poder de reprodução do discurso patriarcal. Há uma vitimização do discurso masculino que se sente injustiçado por ter explorado sexualmente o corpo de mulheres. O silenciamento impetrado pelo macho a índias e prostitutas o beneficia com o induto da falência econômica. Esta representação social da personagem Aristeu, protege e conserva o discurso “falo-narcísico”[4] próprio do pensamento androcêntrico, como forma de eternizar a essencialidade masculina.

Assim, fazendo jus à imagem de homem duro, Aristeu não consegue externar a dor pela morte da esposa; e apenas engole uma saliva grossa. Segundo Muniz (2010) esse perfil remete-nos a valores que circulam em nossa sociedade e são elementos de nossas práticas e formas culturais. Isso nos leva à questão apresentada anteriormente: como é construído o corpo desse macho patriarcal? O corpo é apagado, negado, domado, enrijecido, receoso e desprovido de afetos que possa externar. Com sagacidade a obra Cangalha do vento denuncia esse corpo violento e empreende um projeto de reconstrução desse corpo masculino através dos descendentes de Aristeu. A obra não recupera o lugar de fala do corpo feminino. O feminino permanece em seu papel construído pela tradição colonial do ser sensível, erótica, móvel, insinuante e acima de tudo obediente. Entretanto, o texto vai aos poucos humanizando o corpo disciplinado, adestrado e controlador do macho, dando-lhe sensibilidade, afetos e sentimentos.

Para iniciar a reflexão sobre o homem José Paulo, não podemos esquecer a emblemática imagem do menino-homem responsável por trazer a parteira numa noite fria.

Era uma noite densa, de nuvens carregadas e ventos frios assoviavam na vegetação criando a sensação de assombrações que ali se revelavam. Aristeu implorava à parteira Salustiana, que fora trazida às pressas pelo filho pequeno, José Paulo. O menino observou a velha parteira que fuçava no meio de Dona Tereza com um pesar na expressão. (p. 25).

         Naquela noite, José Paulo menino assume a responsabilidade do homem que carregará a dor e a solidão como marcas do primeiro jugo (canga) da masculinidade. Quando adulto José Paulo “vivia em pensamentos, em conflitos que se dirigiam aos seus sentimentos recônditos. Embora tivesse convicção do que queria, um sentimento de estranheza o tomava” (p.27). É perceptível nesta citação que José Paulo traz inscrito no corpo as marcas de uma criação insólita, repressora e solitária. As suas lembranças se encontram com um “sentimento distante” (p.27) para quem o vazio e o anonimato protagonizam a sua existência.

É esse corpo construído como objeto que Michel Foucault (1987) vai chamar de “corpos dóceis”; visto que o seu padrão é de submissão ao adestramento de uma cultura familiar opressora que o manipula e o transforma em corpo utilizável. Em geral este tipo de instituição familiar é o agente principal que contribui para dominação por intermédio da adesão permitida pelo dominado. E como diz Bourdieu (2002, p.46) “os dominados aplicam categorias construídas do ponto de vista dos dominantes às relações de dominação, fazendo-as assim ser vistas como naturais”. Contudo, José Paulo tem consciência desse adestramento que lhe foi impingido pelo pai e, num momento de reflexão ele afirma que o pai “precisava de reformas” (p.28).

Há em José Paulo conservas culturais (MORENO, 1974) muito próprias do formato disciplinado de educação familiar recebida. Tudo nele causava-lhe medo, vigilância, fuga de transformações bruscas, conduzia a vida através de gestos articulados e programados, produzindo desse modo, sentidos duros sobre um cotidiano vigiado. Essas conservas, como nos diz Levi Moreno (1974), servia-lhe como “muletas” para fugir dos seus medos e temores. Por isso que ao encontrar o seu irmão que tinha um papel político engajado, isso causou-lhe angústia e receio da postura atuante do irmão que lutava contra um mundo rígido e sem alternativas.

Em meio a esse receio nasce Fernando, que chega como arauto do novo homem. Não obstante a formação nos princípios doutrinários do catolicismo, havia no jovem menino um sentimento de libertação dos grilhões da masculinidade originários das gerações passadas. Essa mudança de paradigma em Cangalha do vento recebe uns toques de primeira pessoa, com a novidade do uso da linguagem poética. Porém, mesmo com essa breve abertura no texto, o narrador se revela vigilante diante das investidas do personagem Fernando, evoluindo ambos para a construção de um homem vivo e sensível.

Cangalha do vento possui algo de lúdico e cênico e acumula linguagens variadas sob o filtro da consciência problemática do mundo masculino, tomando como ponto de partida uma pequena cidade do interior do Nordeste. A singularidade desse espaço geográfico reside no fato de que, repensar a masculinidade a partir dos conflitos humanos e psicológicos que o mundo agrário carrega é estabelecer uma relação do homem com a terra e com os seus sonhos. Desse ponto de vista, o narrador foi muito audaz ao construir personagens homens carregados de contradições em suas identidades sociais, tendo como pano de fundo o imaginário sagrado popular que põe em conflito a cristalizada dominação masculina versus a espontaneidade sensível do homem. Fernando, representante da terceira geração, fruto do êxodo compulsivo que fez seus descendentes tentarem a sorte fora do Junco, agora quer viver na terra dos seus pais. Diz o narrador:

Na verdade, Fernando era apaixonado pelo Junco. Sua terra, seu chão. No Junco sentia-se seguro, era o seu lugar. Pensava em jamais romper com as suas raízes. Não queria rescindir as barreiras. Queria casar e continuar a morar no Junco. Ter filhos e no Junco criá-los, como o seu pai e o seu avô. (p. 104)

Esse homem sensível que rompe com o pacto da dor, alimento de gerações anteriores, cumprirá o roteiro existencial, mas convergirá sempre o olhar para si e para manutenção de sua família; com um olhar valorativo especial para Cristiane sua esposa. Nesse momento o leitor consegue perceber o plural de vozes no discurso narrativo de Cangalha do vento, visto que os múltiplos contextos geográficos apresentados por Fernando revelam, como foi dito por ocasião do seu nascimento, a vontade de saber do menino-homem:

Viajava muito em busca de novidades e por todo o país: Rio de Janeiro, Espírito Santo e Goiás; pelas Minas Gerais; do Pará ao Maranhão, e São Paulo. [...] O que Fernando não conseguia entender era o porquê de em todos os lugares enxergar um rosto, sempre o mesmo rosto em todas as pessoas. (p. 107)  

Fernando viajava por todo lugar, mas um rosto lhe atraia de volta para o Junco. Era o rosto de Cristiane, rosto de mulher que representa a terra, a força e o amor. Podemos observar que o narrador, numa evolução da representação social do personagem Fernando, apresenta-o como um corpo liberado. Fernando agora passa a ser sujeito da própria história e conduz sua vida conforme valores e descoberta através do autoconhecimento e do conhecimento do outro. Essa experimentação infindável é o que constitui a construção da identidade de Fernando como homem sensível. E como nos diz Bauman (2001, p.92): “A satisfação e o prazer são sensações que não podem ser postas em termos abstratos: precisam ser subjetivamente experimentadas – vividas”. Por isso que Fernando se liberta das dores, porque para ele foi preciso abandonar as narrativas cristalizadas e transformá-las em ato criativo da renovação.

Em suma, observamos que a rudeza dominante de Aristeu gerou a insegurança de José Paulo, que por sua vez produziu a vontade de liberdade em Fernando. Se tomarmos como pressuposto os estudos de Levi Moreno para entender esse conflito de gerações masculinas, podemos perceber três figurações bem marcantes nesses três homens, a saber: em Aristeu vemos um processo contínuo de cristalizações de suas práticas sociais; em José Paulo percebemos a promoção da permanência de conservas culturais. E como representante da terceira geração, Fernando chega como o arauto da espontaneidade essência do ato criador e criativo.


REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Máquina de fazer machos: gênero e práticas culturais, desafios para o encontro das diferenças. In: MACHADO, Charliton José dos Santos; SANTIAGO, Idalina Maria Freitas Lima; NUNES, Maria Lúcia da Silva. Gênero e Práticas Culturais: desafios históricos e saberes interdisciplinares. Campina Grande: EDUEPB, 2010.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perpectiva, 1987.

BAUMAN, Zygmunt. Individualidade. In: Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução: Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

CONNELL, Robert W. Políticas da masculinidade. In: Educação e realidade. Jul-dez, 1995.

CRUZ, Maria de Fátima Berenice da. Por uma teoria da apropriação do texto literário. In: Leitura literária na escola: desafios e perspectivas de um leitor. Salvador: EDUNEB, 2012.

ECO, Umberto. O leitor-modelo. In: Lector in fabula. São Paulo: Perspectiva, 1979.

EUDES, Luiz. Cangalha do vento. Inhambupe: Conceito gráfica editora, 2019.

FOUCAULT, Michel. Os corpos dóceis. In: Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987.

MACÉ, Marielle. Formas de ler, caminhos para ser, Gallimard, 2011.

MORENO, Jacob Levi. Psicodrama. São Paulo: Cultrix, 1974. 

TODOROV, Tzvetan. Os Homens-Narrativas. In: As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2006.



[1] Professora Doutora da Universidade do Estado da Bahia, membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural, Líder do Grupo de pesquisa GEREL. Este texto é referente a parte da pesquisa do Estagio Pós-doutoral realizado no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFS na área de Estudos Literários, Linha de concentração Literatura e Recepção sob a supervisão do Prof. Dr. Carlos Magno Santos Gomes em cooperação com o Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural/UNEB.

E-mail. fatimaberenice@terra.com.br

[2] Sobre a noção de “Imagem visiva” ver: CRUZ, 2012, p.169.

[3] Robert Connell teve mudança de nome para Raewyn Connell, cientista social transexual conhecida internacionalmente.

[4] Cf. em Bourdieu 2002 a discussão sobre a eternização do arbitrário masculino.

 

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Sou apenas um coração - ADRIANA MAYRINCK

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E de repente – um coração começa a bater em compasso ao seu

– no lado de dentro.

E a vida vai lentamente mudando a nossa percepção de mundo, de futuro. E tudo se transforma. Há uma mistura de felicidade, medo, insegurança e alegria. As emoções ficam à flor da pele e tudo se mistura e se confunde... E a vida vai pulsando, crescendo, na proporção que o amor pelo desconhecido aumenta e transborda.

Aqueles olhinhos brilhantes lhe fitam, o calor da vida lhe preenche, e o seu coração passa a bater fora do seu peito. Aqueles dedidinhos enroscam o seu cabelo, enquanto trocamos alimento por amor. E ficamos ali, entregues... nos doando... A vida ganha mais cor e tudo ao redor muda em instantes, em significados, entendimentos, sentimentos. Tudo fica mais forte, mais intenso, mais único, mais infinito.

Aquele pequeno ser é o centro de todas as suas atenções, motivo de todas as suas mais extremas e desencontradas sensações. E é para todos os minutos, todos os dias, para toda a vida, independente se está no seu colo, aprendendo a caminhar, indo à escola pela primeira vez, passeando com amigos, dormindo fora de casa, indo para a faculdade, levantando vôo, criando seu próprio mundo... Em todos esses espaços do tempo, esse coração bate junto com o seu, e todas as alegrias, preocupações, tristezas, decepções, vitórias, conquistas, frustrações passam a ser em dose dupla.

Mesmo que as mãos não estejam dadas, sentimos aqueles dedos em volta dos nossos, em todos os instantes, nos primeiros dias e sempre. É estar, permanecer, viver sempre em alerta, desperta, atenta a cada sorriso, a cada lágrima, em cada movimento, em cada momento, permanentemente.

Ser Mãe, é ser melhor como mulher, como ser humano, como essência. É a arte da criação, da doação, do altruísmo. Chegamos perto do divino e compreendemos com mais clareza o sentido da continuidade, da responsabilidade, da humanidade.

O meu coração já bate fora do meu peito há 23 anos, todos os dias, todos mesmos, perto ou longe, sentimos, tanto eu, quanto ela, os nossos dedos sempre entrelaçados, e os nossos pensamentos interligados nesse amor que não se explica ou define, é apenas sentido, vivido, compartilhado, em palavras, sorrisos, olhares, silêncios, abraços...

Somos apenas um coração, dividido em duas mulheres, dois universos, dois seres que se completam nesse amor incondicional, que ultrapassa os tempos.

Em todo esses dias, desde 20 de agosto de 1997 essa frase é falada, pensada, escrita: “Eu te amo muito mais do que o infinito” e sempre... com resposta, diariamente.

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