sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

A cruz haitiana (excerto 6) - IARA LEMOS

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Em Jérémie, logo percebi que a composição das letras na parede do pequeno aeroporto, mais que dar nome à cidade e desejar uma boa estada aos raros visitantes que por lá apareciam, eram responsáveis por manter vivos artistas que a história cultural do país se encarregou de sacramentar. Foi assim com Etzer Vilaire e Émile Roumer. Poetas de pele negra, aparência sofrida e alma iluminada, que traduziram em versos a busca do povo haitiano por melhorias. Etzer e Émile ajudaram a levar o nome do Haiti para o mundo, expondo as dificuldades de uma terra que corrói seus filhos prematuramente.
Em um país onde a média de vida gira em torno dos 56 anos, as responsabilidades começam cedo para os que precisam ganhar o seu próprio pão, mesmo que o “pão” não seja bem a referência de alimentação por lá. A infância se funde aos compromissos e responsabilidades da vida adulta, fazendo com que muitas crianças sejam forçadas a transformar os afazeres domésticos, e outros mais, numa rotina de trabalho intensa, na tentativa de garantir a própria sobrevivência.

EM - A CRUZ HAITIANA - IARA LEMOS - IN-FINITA

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

As nossas almas solitárias (excerto 6) - C. GONÇALVES

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Quando finalmente nos instalamos na beira da piscina, o sol já vai alto. Deito-me numa das esperguiçadeiras de lona amarela, debaixo de uma pérgula verde-escura. Ponho os óculos de sol e tento abstrair-me do romance permanente da Sara e do Santiago. Mas fico feliz por eles, muito feliz mesmo. Viro-me para o outro lado, a tempo de ver o Salvador chegar. Tem o cabelo ainda molhado do banho e veste uns calções pelo joelho e uma t-shirt. Traz um livro na mão e deita-se em silêncio na cadeira em frente à minha. Por sorte, tenho os óculos de sol e consigo observá-lo sem que me veja. Isso não fará mal certamente… As suas mãos são compridas e seguram firmemente o livro enquanto o folheia. As vozes do Martim e da Carolina, ouvem-se no caminho que vem da horta até à piscina, despertando-me da minha divagação.

EM - AS NOSSAS ALMAS SOLITÁRIAS - C. GONÇALVES - IN-FINITA

terça-feira, 27 de dezembro de 2022

tetras e tretas (excerto) - FLÁVIO ULHOA COELHO

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De todos os assuntos frivobanais possíveis de serem tratados em uma mesa de bar, seguramente o preferido do Thio Therezo é o futebol. Por sua vez, o menos preferido é falar sobre o tempo e o Thio justificava essa não preferência lembrando de um personagem de um romance que ele sempre esquecia o nome e nunca se lembrava de seu autor que dizia que “na falta de assunto, fale sobre o tempo...”. Não à toa que os canais de TV hoje em dia gastam tanto tempo (sem trocadilho) com isso. Não que não haja uma profusão de assuntos a tratar, mas apenas que há a opção por não os tratar, mas isso é outra história, talvez séria demais para uma conversa em uma mesa de bar...
Mas falava-se de futebol e o que vamos relembrar hoje se passou em um bar aqui perto de casa durante a copa de 2014. Estavam, em volta de meia dúzia de cervejas, além do Thio e de alguns tantos brasileiros, dois amigos estrangeiros: o Guaio, uruguaio de Montevidéu, e o Quesejô, mardelplatense, ambos radicados em Sampa há anos. O Thio Therezo se perguntava sempre o que eles faziam por aqui, afinal, trocar as famosas ramblas que ambos poderiam frequentar diariamente em suas cidades de origem pelo, no máximo, o Parque do Ibirapuera era meio inexplicável a ele. Por outro lado, eram excelentes companhias para as famosas cervejas de final de tarde.

EM - HISTÓRIAS DO THIO THEREZO - FLÁVIO ULHOA COELHO - IN-FINITA

Uma vez um grande amor (excerto 3) - TEREZINHA PEREIRA

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Naquela tarde em que ele chegou de manso, era uma daquelas de céu azul desbotado. Quase invisível, uma tirinha curva de lua com a estrela companheira do entardecer enfeitavam a palidez do céu. Abraçados, entramos em casa. Dessa vez, de amor foram outras as palavras que disse ele. Teria aprendido em outros sítios? Somente quando saiu na manhã, quando apenas acabara de ecoar os primeiros cantos dos galos, sem ao menos esperar pela chegada da noite mais uma única vez, pude então compreender que ele trouxera nos olhos e na face era uma expressão de adeus.
Hoje, deitada na cama onde ouvi as mais belas palavras de amor que alguma outra mulher, juro, vez nenhuma ouviu, o que posso sentir é apenas saudade.

EM - CONTOS E CASOS - TEREZINHA PEREIRA - IN-FINITA

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Felice natale - JACKMICHEL

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Os dias, as tardes e as noites dezembrinas correram, velozes, entre um sopro gélido de vento, entre uma bruma solta no ar, entre uma baça claridade solar, entre um chuvisqueiro frio, de momento...
Até que chegou o dia 24 de Dezembro, cheio de correrias, com os preparativos para a ceia da meia-noite!
Na casa das duas meninas tudo corria às mil maravilhas, como as caldas dos pudins que escorriam, como os confeitos dos bolos que enfeitavam, como as frutas cristalizadas dos pães que adoçavam, como os camarões temperados dos pastéis que salgavam, em meio aos vinhos, licores e refrigerantes que refrescavam.
Depois, houve a Missa do Galo que a tudo abençoou; mas, no final das contas, só o que interessava aos coraçõezinhos de Jajel e Mimú era o presente que, ambas, haviam encomendado ao paternal Papai Natal, que não lhes desapontou.
E quando o dia 25 chegou...

EM - ALMANAQUE PALHAÇO - JACKMICHEL - IN-FINITA

domingo, 25 de dezembro de 2022

A cruz haitiana (excerto 5) - IARA LEMOS

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Chegamos até àquele ponto quase desconhecido no mapa num avião do Exército Canadense, juntamente com mais alguns integrantes de organizações humanitárias e alguns estudantes universitários. Aos poucos, o turvamento foi-se abrindo, e o céu de um azul intenso ganhou espaço. Foi preciso, ainda, alguns segundos para que o azul e o vermelho da tinta na parede pudessem ser visualizados, e que eu conseguisse controlar minhas crises de rinite.
À primeira vista, lá adiante, estava um prédio completamente maculado pelas intempéries, que não são poucas naquela região. Tirei os óculos e pude ver que, avesso às dificuldades, o conjunto de letras caprichadas, todas bem torneadas, era como um aconchego. Fiquei imóvel por alguns segundos observando a parede, que provavelmente teve as letras feitas à mão livre, sem o uso de molde ou qualquer outro tipo de tecnologia. Eram letras simples, mas que, unidas, tinham a força da nacionalidade traduzida pelo azul e o vermelho, as cores que estampam a Bandeira do Haiti, o mais pobre dos países das Américas.

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sábado, 24 de dezembro de 2022

As nossas almas solitárias (excerto 5) - C. GONÇALVES

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O quarto é muito acolhedor e sinto-me rodeada por tamanho conforto assim que entro e que fecho a porta. Filhos? A sua pergunta não me sai da cabeça. É o costume, é o normal. Todos ficam muito admirados quando o digo. Eu sei que pareço demasiado jovem para quem tem dois filhos e tanta bagagem pelo meio, mas é assim a minha realidade. Quem não gosta, paciência. Quem não quer, que não incomode. Depois do divórcio, tem sido assim. Se conheço alguém, mesmo antes que algum interesse possa surgir, desaparecem logo assustados. Acho que este não deve ser excepção. Pareceu-me até simpático, eu diria normal, um pouco enigmático, talvez… Mas decerto não será diferente. Parece-me que é assim que devo estar. Dedicada a eles, sempre. Os meus filhos estão sempre em primeiro lugar. Sem eles, não sei viver, já nem me lembro da vida sem eles… é nisso que me foco, é neles que me apoio. Eles precisam de mim em primeiro lugar. Se o Miguel for embora do país, só poderão contar comigo, mais ninguém. Agora não quero pensar nisso, só quero encostar a cabeça na almofada e finalmente descansar…

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quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

a rubrica - FLÁVIO ULHOA COELHO

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Muito se tem especulado sobre as pequenas rubricas que aparecem nos cantos inferiores das páginas do primeiro contrato assinado pelos Beatles com o tal Brian, e lá se vão tantos e tantos anos.
Foi um aval? Apenas uma rubrica de testemunha? E, principalmente, quem a fez?
Tais dúvidas, ao longo dos tempos, produziram inúmeros artigos, científicos ou não, e até mesmo uma tese de Doutorado na Universidade de Liverpool, onde mais seria?
Thio Therezo, ao ouvir tantas especulações, apenas sorri. Nem nega, nem confirma, só sorri...

EM - HISTÓRIAS DO THIO THEREZO - FLÁVIO ULHOA COELHO - IN-FINITA

Uma vez um grande amor (excerto 2) - TEREZINHA PEREIRA

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De cada vez que voltava, noite inteira enchia-me de palavras de amor. Dizia que eu era a paixão de sua vida, o ar que respirava, o vento que ondulava o capim no pasto, o voar leve dos bandos de pássaros, o perfume que exalava das flores, o botão das roseiras do jardim, a chuva que umedecia a terra, a essência do seu próprio ser. Falava bonito. Declamava poesias. Dias depois, partia para negócios. Para onde ia, durante quanto tempo ficaria fora, negava-se a dizer. Aguarde. Ligo para você. Isso repetia após a chegada do celular. Antes, falava que mandaria um recado pelo motorista da linha de leite. Eu sempre esperei um recado que nunca chegou. E dele a voz, vez alguma, ouvi ao soar.
A cada entardecer ficava sentada no degrau da porta da casa. Meus dias seguiam o andar do sol. E, quando ele dourava de modo único toda a relva em volta da casa, a copa das árvores, a água da lagoa e os animais no pasto, sentia que, naquele dia, eu também acabava de cumprir uma missão. Depois dessa mágica, o sol sumia detrás da pequena serra quase de supetão. As cores da paisagem iam ficando escuras, as sombras começavam a tomar conta de tudo e eu entrava em casa. Para não ficar perdida no tempo, marcava então no calendário mais um dia após aquele em que ele mais uma vez partira. Deitava então na cama sem calor e, da janela, ficava a olhar o véu negro estrelado que cobria o céu e recordando de meu amado o toque suave e morno, o cheiro a que nada poderia comparar e as palavras de amor. Deitados juntos naquela mesma cama ouvira eu as mais belas.

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quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

Papai Natal lê a carta - JACKMICHEL

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Ninguém soube, ninguém viu, ninguém desconfiou ou descobriu que o magnífico Papai Natal passou com seu trenó puxado por renas, num suntuoso rastro de estrelas cadentes, pela sala de visitas, só para apanhar o bilhetinho de Jajel e Mimú.
O bom velhinho tinha esse costume e já fazia algum tempo: de passar pelas residências recolhendo as cartinhas com os pedidos que os pequeninos lhe solicitavam evitando, dessa forma, extravios ou trocas de presentes.
Assim sendo, numa piscada de estrela ou num rápido giro de trenó lá estava ele, o lendário Père Noël, de volta ao seu confortável lar, sentado perto da enorme lareira que sempre ardia, calorenta, para lhe esquentar os gordos pés que comumente tremiam de tanto frio devido aos tantos graus abaixo de zero que marcavam o termômetro e a infindável tempestade de neve que caia lá fora.
Sem mais delongas, ele coçou suas longas e fofas barbas prateadas, lendo em seguida o bilhetinho das duas irmãs para, logo após a leitura, concluir, satisfeito:
“Hô, hô, hô, hô, hô!... Pode ser feito!”.

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terça-feira, 20 de dezembro de 2022

A cruz haitiana (excerto 4) - IARA LEMOS

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Chegamos à igreja sozinhos, sem as freiras, e nos sentámos nos bancos de madeira para acompanhar uma parte da celebração. Era final da manhã, talvez perto das 11h, e lembro-me de uma senhora jovem, com uma criança no colo, sentada na primeira fila, bastante concentrada na sua oração. Ela vestia uma roupa azul clara, composta de saia e um casaco de manga curta, e, ao longo dos dias, pude perceber que era quase uma vestimenta padrão para as senhoras que iam à missa. Os tons claros de azul, rosa e laranja predominavam entre as roupas femininas, assim como as calças sociais e camisa branca eram as preferidas dos homens.
Mesmo diante das dificuldades que enfrentam para obter alimentos e sobreviver em tão maculado solo, os haitianos que vão à Igreja estão sempre muito bem vestidos e ajudam a compor o caixinha da instituição, que circula de mão em mão durante a celebração, com as moedas que podem. As mulheres jamais estão com os braços descobertos nas cerimônias religiosas, como um símbolo de respeito a Deus.

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segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

As nossas almas solitárias (excerto 4) -C. GONÇALVES

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Desço as escadas e sigo em direção às traseiras da casa saindo para a rua. A noite está fresca e aconchego o lenço junto ao pescoço. Vejo a Sara e o Santiago ao longe, sentados. Avanço pelo jardim carregado de azinheiras e sobreiros e inalo o ar puro que me rodeia. Sempre gostei da natureza e do contacto com a sua essência. Aqui posso recarregar baterias para mais uma dura semana que se avizinha. Aqui posso não pensar em nada daquilo que me atormenta. Sozinha, posso finalmente tentar colocar as ideias em ordem e ser eu mesma. Desde que o Miguel me deu a notícia, nem tenho conseguido dormir de jeito. Nem sei como vou dizer isto aos miúdos, se realmente se concretizar. Como sempre, sou eu que tenho a penosa tarefa de os informar, de os consolar. Talvez seja melhor assim; por vezes, o melhor é o afastamento. Estamos divorciados há quatro anos; a Carolina ainda não tinha os dois anos feitos. Já não me dói. Nem me faz diferença. Tenho pena que não tenha dado certo. Por mim. Pelos meus filhos. Mas agora, já é uma mágoa que se vislumbra em mim muito longe e muito ténue. Tudo o que tentei foi em vão. Tudo foi sem sentido e só me trouxe dissabores e amarguras. Neste momento, conseguimos conviver o essencial para coordenarmos as idas do Martim e da Carolina, e pouco mais. No fundo, é triste, mas é a realidade; e não há volta a dar.

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sábado, 17 de dezembro de 2022

Uma vez um grande amor (excerto 1) - TEREZINHA PEREIRA

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Que ele se foi para sempre em agosto posso jurar. O ipê-amarelo estava carregado. Um tapete amarelo cobria o gramado verde. Sentada na porta da casa eu olhava as flores caídas no chão sendo deslocadas pelo vento que às vezes soprava forte, às vezes calmo, como se quisesse recuperar forças. O bordado amarelo do tapete ondulava-se, a mudar de forma a cada instante.
Ele chegara de manso quando o sol jogava seus derradeiros raios que acentuavam o amarelo das flores. Nos olhos, trazia um brilho que não dei conta de traduzir. No rosto, uma expressão que nem de longe decifrei. Ele foi chegando e eu fiquei de pé e fui correndo a seu encontro para envolver-lhe os ombros com meu abraço.
Durante todos aqueles dias havia eu ficado sozinha na fazenda. E em cada cair de tarde ficava a olhar o voar alegre dos pássaros, o andar paciente do gado no pasto, o rebuliço das galinhas procurando poleiro na coberta do galinheiro e a dança das delicadas flores amarelas no chão. Ele saíra numa madrugada de céu ainda estrelado para negociar mais uma carrada de meus herdados bois. Como de outras vezes, após cada uma de suas partidas, eu havia ficado só e sem ponto algum de referência de onde ele pudesse estar.

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o reino do óleo fervente (excerto) - FLÁVIO ULHOA COELHO

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Quando Thio Therezo relatou suas desventuras passadas naquele pequeno reino asiático por ocasião da condecoração, que por sinal não houve, por sua façanha de ter assistido a todas as possíveis trocas de guardas existentes nesse mundão de Deus, o que mais nos impressionou, éramos jovens e tudo nos impressionava tanto, foi quando ele mencionou o caldeirão de óleo fervente onde os frequentes golpistas daquele reino jogavam seus inimigos depostos do poder.
Thio Therezo contou-nos que, além de uma ininteligível religião politeísta, aquele reino, que fora por muito tempo uma das inúmeras colônias inglesas, possuía duas características marcantes, arraigadas por milênios de tradição: o usual costume do golpe político e o tal caldeirão de óleo fervente.
Tranquilizou-nos o Thio ao assegurar que o óleo utilizado nessas horas possuía baixo teor de gordura trans, portanto muito mais saudável que um normal. Isso fora uma imposição de um grupo de ativistas que, até o final trágico do reino, buscou uma melhor qualidade de vida a depostos e golpistas, já que esses frequentes movimentos de troca de poder (tão frequente quanto o da troca de guarda) eram inevitáveis.

EM - HISTÓRIAS DO THIO THEREZO - FLÁVIO ULHOA COELHO - IN-FINITA

sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Correio secreto - JACKMICHEL

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Feita a carta a Papai Natal, as duas irmãs inseparáveis trataram logo de depositá-la aos pés do enorme pinheiro que decorava brilhantemente a sala de visitas, com seu verdor natalino.
Para ambas agora só restava esperar e torcer; se possível fazer figa com a mão bem fechada, com o dedinho polegar entre o indicador e o médio...
Mas a despeito de qualquer dificuldade, elas sabiam que o bom velhinho daria um jeito de ler a cartinha delas; afinal de contas, elas sabiam que os milagres existiam, principalmente na época do Natal!
Sim... os milagres existiam! Mas como aconteciam, isso ninguém sabia explicar.
E foi assim que, de uma hora para outra, a missiva das meninas desapareceu dos verdoengos pés do pinheiro da sala.
Quem teria pego o bilhetinho de Jajel e Mimú, endereçado a Papai Natal?
Brilhantes brilhos pálidos-vivos-refulgentes estrelejaram no ar, respondendo a esta pergunta.

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quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

A cruz haitiana (excerto 3) - IARA LEMOS

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A cor amarronzada do alimento, rodeado de moscas, não é bem o que uma novata em terras haitianas poderia esperar de um produto à venda. Porém, era o que tínhamos por lá. Nos dias que se seguiram, pude experimentar cada um daqueles alimentos com toda a calma que as refeições exigem. E confesso que, apesar de a aparência não ser nada apetitosa, o sabor do peixe seco não era de todo ruim. Dava até para fechar os olhos e imaginar ser bacalhau, de tão salgado que era e pelo processo semelhante ao que passava antes de ser consumido. Encontrei um método parecido da salga do peixe de Jérémie nas Islas Flotantes, em Puno, no Peru. O gosto do peixe em solo peruano também era similar ao dos haitianos.
Naquela primeira manhã, a exposição dos alimentos e o odor de óleo podre que impregnava as narinas era como um caminho preparatório para chegar até o que a freira, de facto, levava-me junto para comprar. No final de toda aquela fila de expositores, começava um outro agrupamento: o das responsáveis por produzir o pão. Era uma delas que procurávamos.

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quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

As nossas almas solitárias (excerto 3) - C. GONÇALVES

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Na verdade, os meus filhos não são muitos desassossegados. Falam e riem porque são duas crianças de seis e oito anos. O normal. Eu é que não quero incomodar. Nem causar confusão nas rotinas dos outros. Eles correm imediatamente pelos terrenos, finalmente em liberdade. Precisam também destes momentos para descontrair e para fugir à rotina casa-escola-casa. Não tenho o tempo de que gostaria de ter para lhes dar. Nem sempre sobra para estarmos mais momentos juntos como desejaria. Mas, aproveitamos cada pedacinho como se não houvesse amanhã. E quando passam os fins-de-semana com o Miguel, sinto-me vazia e perdida sem eles.

Estamos todos sentados à mesa, cuidadosamente posta para o jantar. A Laura preparou imensas iguarias e já me sinto cheia só de olhar. São pessoas extremamente hospitaleiras e gostam de receber. Por um momento, entre as conversas e as gargalhadas, esqueço-me de tudo o que carrego e deixo-me descontrair; entre um prato de carne assada e um copo de vinho, entre a felicidade estampada nos rostos da Sara e do Santiago, e sinto-me feliz, sinto-me bem.

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segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

O livro de Anita (excerto 4) - TEREZINHA PEREIRA

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Anita olhou o livro no chão – a primeira montagem de seus escritos. Manuscritos em diversos cadernos escolares. Três anos escrevendo sob a tênue luz de um abajur. Era quando se recolhia para dormir que ela escrevia a história. Sentiu-se nua, de corpo e alma. E havia sido ela mesma quem escrevera tudo aquilo... Aquela história haveria de ser só dela. Perante as leis dos homens, o padre era perfeito. Santo, caridoso, capaz de se unir aos ricos e de se sentar à mesa dos pobres. Claro que a biografia do padre Francisco encheria de emoção muita gente. Trinta anos de uma luta limpa e sincera. Desde as primeiras horas da manhã, até bem depois da hora do ângelus...
Ela havia escrito toda aquela história. E, três anos após começar, com o trabalho quase todo pronto, é que sentiu que havia coisa demais no enredo. Haveria gente capaz de ler nas entrelinhas e enxergar o que não estava escrito. Estava evidente, claro demais. O padre Francisco não havia sido apenas o seu terceiro pai...

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a troca de guardas (excerto) - FLÁVIO ULHOA COELHO

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Thio Therezo se gaba, e seguramente há inúmeras razões para tal, de ter presenciado todas as trocas de guardas reais existentes no mundo. Desde as mais tradicionais até as mais bizarras releituras modernas, não há quem possa reclamar da falta delas.
Ele sempre achou que havia um sentido muito especial na existência, e insistência, dessas trocas de guardas: algo assim como uma perfeita metáfora para o nosso quotidiano, para a vida que vivemos, para a sucessão das gerações. Ele tentou nos explicar essa sua teoria, mas nós, jovens que éramos, não conseguíamos perceber seus argumentos em todas a suas necessárias sutilezas. Agitado que era, logo desistiu da explicação ao ver nossos olhares ansiosos e confusos. Paciência para nos ensinar suas teorias nunca foi seu forte, o que há de se fazer...
Conta ele que, um dia, ao presenciar a troca de guarda de um pequeno reino asiático, ele foi reconhecido por um guarda que fazia serviços terceirizados nessa área de trocas e que já o tinha visto em outra ocasião e lugar. Nada mais natural reconhecer o Thio Therezo, mesmo em meio a uma multidão quem já o viu sabe muito bem o que quero dizer com isso.

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domingo, 11 de dezembro de 2022

Cartinha a Papai Natal - JACKMICHEL

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“Querido, amado, bem-aventurado, adorado Papai Natal!
Oi! Aqui, quem vos fala, é Jajel e Mimú, as duas irmãs que mais o veneram no mundo.
Ninguém gosta mais de você do que nós duas, creia!
Papai Natal, antes de mais nada, queríamos lhe dizer que passamos de ano na escola, somos filhas obedientes, comportadas e não damos preocupações à nossa família.
Mamãe não tem uma queixa sequer a nosso respeito; e, como boas meninas que somos, merecemos ser recompensadas!
Sabemos que você é bonzinho e que atende a todos os pedidos que as criancinhas fazem; portanto, agora, vamos fazer o nosso: será que você poderia nos trazer de presente, neste Natal, uma envernizada arca encantada com um lindo palhaço dentro dela?
Sem mais a acrescentar, vamos ficando por aqui esperando, ansiosas, a chegada do Natal e a vinda de nosso maravilhoso presente!
Tchauzinho, Papai Natal!
Beijinhos da Jajel e da Mimú.”.

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sábado, 10 de dezembro de 2022

A cruz haitiana (excerto 2) - IARA LEMOS

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Adorema e eu saímos de casa a passos lentos e atentos, observando a pobreza hipnotizante que cercava o local, em busca do primeiro alimento do dia. As pedras que desviamos na rua desfeita eram sinais das dificuldades que enfrentaria nos dias em que iria permanecer no mais pobre país das Américas. Por mais que tivesse me preparado por longos meses para estar lá, naquele momento não conseguia prever o que estaria por acontecer. Nessas horas sempre penso na minha mãe. Acredito que se ela soubesse como são alguns dos locais que frequento, nunca teria me deixado ser jornalista. Naquela manhã, caminhando pelas ruas de Jémémie, era os meus familiares que eu recordava e como eles estariam imaginando ser o local onde eu estava. Com certeza, em nada se aproximaria do que se consolidava diante dos meus olhos.
A caminhada ao lado da freira foi curta. Não cronometrei, mas me pareceu algo em torno de 10 minutos. Tempo suficiente para que começássemos uma conversa que era uma espécie de recapitulação do que eu poderia encontrar por lá. A orientação principal de Adorema era que eu tratasse tudo da forma mais natural possível durante o período em que estivesse no Haiti. A regra valeu para todas as vezes que desembarquei lá.

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sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

As nossas almas solitárias (excerto 2) - C. GONÇALVES

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Quando no telemóvel toca o alarme para despertar, são 7 da manhã. Levanto-me de imediato, é sexta-feira e não temos tempo a perder. Corro para o duche e tomo o meu banho em 10 minutos. Consigo sentar-me outros 10 minutos na mesa da cozinha para comer qualquer coisa. Em seguida, já vestida para trabalhar, vou aos quartos dos meus filhos, com os mimos do costume; beijinhos e abraços apertados para os acordar o mais calmamente possível. O Martim já se veste sozinho; já tem 8 anos e apesar de estar sempre ensonado, dá uma ajuda preciosa. A Carolina, ainda precisa da minha ajuda para se despachar e o seu cabelo encaracolado, requer a minha paciência para o desembaraçar e colocá-lo apresentável para um dia de escola. Está na fase das bandoletes a combinar com o que veste, e nunca quer a roupa que lhe escolho. Tem 6 anos, faz parte da sua afirmação. Enquanto estão sentados a tomar o pequeno-almoço, trato um pouco de mim: lavar dentes, pentear, maquilhagem; o básico. Mesmo quando não há aulas, vão para a escola em regime de ATL.

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quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

nobel por um dia (excerto) - FLÁVIO ULHOA COELHO

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Foi um verdadeiro lio quando o Thio Therezo foi indicado para o Nobel da Paz por “contribuir de forma inequívoca à fraternidade entre os povos” como constaria em um comunicado oficial da Fundação Nobel. Essa fundação, que normalmente se recusa a comentar sobre candidaturas que não foram premiadas, teve que abrir, naquele específico ano, uma estrondosa exceção frente às especulações que geraram o vazamento da concessão do prêmio ao Thio.
Foi assim.
Um emissário da Fundação ligou ao Thio Therezo às cinco horas da manhã do dia do esperado anúncio do Nobel da Paz para dizer-lhe que tinha sido agraciado com tal prestigioso prêmio e etc. e tal. E solicitava que o Thio guardasse segredo, pois o nome do premiado só seria divulgado mais tarde.
O telefonema acordou-nos a todos em casa, e fomos, um a um, encontrar o Thio pendurado ao telefone falando em um perfeito e educado norueguês (ao menos, pareceu-nos perfeito; está certo de que essa é sempre a impressão que se tem quando ouvimos alguém falar uma língua que não conhecemos direito, mas...). Após essa conversa, Thio Therezo comunicou-nos sobre o prêmio e, bocejando, completou.
– Que mania esses europeus têm de ligarem sem se importarem com o fuso... podiam ter esperado eu acordar, ora bolas! Vou continuar meu sono... – e seguiu para o seu quarto. Ainda sob o impacto da notícia, nem conseguimos articular resposta que fosse.

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