quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Diário do absurdo e aleatório 51 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

51

Apesar de ter vivido no seio de uma família que nunca lhe faltou com amor e lhe deu todo o conforto e privilégios que o dinheiro proporciona, Adérito nunca se sentiu completamente feliz e isso dava-lhe uma enorme insegurança. Mesmo quando os astros pareciam estar alinhados a seu favor, havia um desconforto que o incomodava e a sensação de que as pessoas só se aproximavam dele pela riqueza que herdaria e nunca ninguém o havia amado de verdade.

Somente duas semanas após a morte dos pais, durante a leitura do testamento, é que Adérito descobriu a razão de sentir, desde que se lembrava, aquela angústia sufocante. Era filho adotivo! Como fosse pouco ser agredido por essa revelação, que esteve em segredo durante cinquenta anos, ainda foi esbofeteado com a existência de um irmão gémeo.

Munido de todas as informações, e capacidade financeira ilimitada, não foi difícil encontrar aquele que seria, muito provavelmente, a única hipótese de eliminar a tristeza que o consumia desde sempre. Pelo menos poderia atenuar as dores mais recentes.

O encontro dos irmãos, separados à nascença, foi emotivo e, tal como previsto, aplacou o desconforto sentido toda a vida.

Adérito ouviu o irmão, Zeferino, admitir que sabia da sua existência e que, apesar da extrema pobreza em que vivera, desde o berço, e da ausência de informações sobre o seu paradeiro, nunca perdeu a esperança de encontrá-lo e que esse reencontro era a última ambição que tinha na vida.

Mais surpreendente para Adérito foi ver que o seu irmão, mesmo com todas as dificuldades e privações, revelava-se um homem feliz e seguro.

Ao contrário de si, que andou sempre de caso em caso sem conseguir encontrar quem lhe transmitisse a confiança necessária para assentar de vez e prolongar a sua existência, Zeferino casou com Constância, tão humilde quanto ele, que o abençoou com a descoberta do amor incondicional e verdadeiro ao dar-lhe cinco filhos, que cuidaram e educaram dentro das possibilidades que o sacrifício de ambos permitiu.

Vinte anos mais tarde, no seu leito de morte, Adérito confessou ter feito as pazes com a vida quando foi abraçado, acarinhado e amado pela humildade da família. que o destino lhe escondera durante meio século, como se tivesse feito parte dela desde sempre.

Morreu com um sorriso nos lábios e uma pequena lágrima de felicidade a escorrer-lhe no canto do olho.

EMANUEL LOMELINO

Pura inspiração (excerto) - PAULO GALHETO MIGUEL

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Desses teus lóbulos apensos, pendentes sobre os meus ...
Escorre o mel, marejam os sentidos, sobram gotas de discretos risos
Como se tudo isto me apetecesse e se eternizasse no preciso momento
Eras sem dúvida, tu, essa volta de mar intrépida, que me inundava de serenidade, por dentro
Qual crescença de um impaciente arremesso, este de saciar a minha vontade, a de te dizer no momento, versos que me prendem, sem que o seja, à fala
Assim como o são as outras coisas contidas que nos movem, que surgem súbitas; no limbo, na orla de uma qualquer vontade
O descansar nas águas mansas, o deixar estar nos braços estreitos, devotos, amancebados pelo teu corpo, que na propulsão de um condensado abraço, sempre adensa
Sinto ainda a tua pele, que num caudal morno, se foi do receio, às cegas libertando
De uma forma tão doce quanto eloquente, plausível de aos meus olhos, sem fingir, acreditando

EM - AMANTES DA POESIA E DAS ARTES - COLETÂNEA - IN-FINITA

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

Diário do absurdo e aleatório 50 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

50

Não quero louvores porque os epítetos, que outrora significavam admiração e reverência, perderam o fulgor e tornaram-se adjectivos vulgares expelidos com interesses ocultos.

Não quero aplausos porque as salvas, que outrora significavam encanto e respeito, perderam o brilho e tornaram-se estampidos comuns musicados com intensões obscuras.

Não quero premiações porque as medalhas, que outrora significavam reconhecimento e cortesia, perderam o valor e tornaram-se insígnias outorgadas com conotações escarnecidas.

Prefiro as miradas silenciosas porque através dos olhares consigo ver a diferença entre as vénias sinceras e os galardões aparentes.

Prefiro os sinais discretos porque através dos gestos consigo ver a diferença entre as anuências puras e os falsos elogios.

EMANUEL LOMELINO

Alma - PAULA MIGUEL

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Tive sempre, aquela sensação que te conhecia, de algum lugar, de um tempo em que só as almas se reconhecem!
Sei, que o que sinto, vai muito além do que é racional e explicável.
E seria eu, uma tonta no caso de não admitir, que não sinto tudo isto:
Hoje, dispo, a minha alma e confesso:
– Por muito tempo não deixei uma única lágrima derramar pela minha face. Quem sabe se por orgulho ou teimosia?!
Sei que, não se pode tocar no fogo, pois, ele está dentro da alma e que arde, queima e consome.
Como, também, não podemos deter o vento, mas ele dança, quando estamos juntos, numa só dança, entre balanços e sussurros… e é nesta dança de corpos nus, que as minhas lágrimas caem. Lágrimas de azul ténue, fazem me… fazes me, suspirar!
Minha respiração, transforma se em neve branca e elas caiem; permiti que as visses, cair e não consegui escondê-las.
Assim, sendo, não tive alternativa senão admitir que amo te até à morte!
Quiçá, eu não tivesse sido fervorosa, em expressar _me; não quis arriscar tudo por algo tão instável como o amor!
E tantas foram as vezes, em que pensei: _"se desistir, não seria mais fácil"?!
Ainda, assim, eu decidi agarrar este amor e continuar a amar-te!
Já te disse que, estaria disposta arriscar tudo, por nós, por este amor?!
Portanto, juro que serei fiel às nossas confissões, continuarei a amar-te até à morte e verás isso no meu olhar.
Porque o coração é o mais importante, quando estamos apaixonados e amamos. Visto que, quando amamos, não é pela aparência ou se existe alguma disparidade biológica.
Quando amamos, é pelo simples fato de amar e nada é mais puro, verdadeiro e sincero quando amamos para além de...

EM - AMANTES DA POESIA E DAS ARTES - COLETÂNEA - IN-FINITA

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Diário do absurdo e aleatório 49 - Emanuel Lomelino

Imagem retirada da internet

Diário do absurdo e aleatório 

49

Não existem muitos estudos sobre a matéria e quase todos pecam pela escassez informativa, sendo pouco esclarecedores.

Não há consenso quanto à forma de classificar este género de transtorno porque a multiplicidade de sintomas não permite deduzir se estamos perante uma tendência patológica ou uma perturbação mental. Esta dificuldade deve-se ao facto de existirem diferentes graus de manifestação do fenómeno, sempre dependente de cada infectado.

Sabe-se que é um vício. Uma dependência incontrolável que, mesmo detectada precocemente, é difícil de combater porque a ciência, ao contrário do que fez com outras adições, ainda não conseguiu identificar uma origem concreta e universal. Os únicos factos comprovados são que, em nenhuma circunstância, e apesar de ser uma condição pandémica, não há casos de regressão, apenas de progressão, mas não se conhecem casos de mortalidade associada, logo, não tem características malignas.

Assim sendo, não existindo fármacos nem tratamentos paliativos específicos, recomenda-se que todos os adictos diagnosticados prossigam as suas vidas dentro da normalidade que a sua compulsão pela escrita permite, até que se descubra um antídoto.

EMANUEL LOMELINO

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Diário do absurdo e aleatório 48 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

48

O destino ordenou que Marcolina e Juvêncio estivessem sempre juntos desde o berço. Tiveram a mesma ama, frequentaram a mesma escola, seguiram os mesmos passos até que, chegado o momento, casaram e passaram a ser donos e senhores do seu próprio negócio.

Ambos aprenderam, com os seus progenitores, a arte dos ofícios que agora dominavam. Juvêncio era pastor e Marcolina era produtora de queijos.

As cabras que Juvêncio levava a pastar, todos os dias do ano, antes do sol raiar, forneciam o leite suficiente, e adequado, para que Marcolina produzisse os melhores queijos que alguma vez tinham sido feitos na região.

O sucesso deles foi imediato e o negócio cresceu tanto que viram-se na obrigação de contratar ajudantes para conseguirem dar resposta ao elevado número de encomendas que recebiam, todos os dias.

Felizes e empolgadíssimos com o êxito, Marcolina e Juvêncio trabalhavam de sol a sol e parecia que o tempo voava.

Mesmo grávida de gémeos, Marcolina nunca parou de trabalhar e só deixou de lado as tarefas mais pesadas quase no final da gestação. Simultaneamente, Juvêncio cumpria as suas rotinas diárias, verificando se as cabras eram levadas aos melhores pastos, se o leite era bem ordenhado e armazenado, se não faltava nada na queijaria e as encomendas eram expedidas correctamente.

O nascimento dos filhos reforçou-lhes a felicidade e renovou-lhes as energias para continuarem a ser bem-sucedidos no negócio da família. Com o esforço redobrado e máxima dedicação no trabalho, conseguiram que o filho se formasse em biologia e a filha em sociologia.

Marcolina e Juvêncio trabalharam até aos últimos dias de vida. Nasceram, viveram e morreram tal como o destino ordenara: juntos.

Para remate desta história, só falta dizer que o filho Marcolino é um obcecado seguidor do veganismo, e a filha Juvência é fervorosa activista dos direitos dos animais.

Adivinhem o que o destino reservou para a Queijaria MJ…

EMANUEL LOMELINO

O abismo (excerto 24) - CARLA SANTOS

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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No outro canto da localidade encontramos o antigo chafariz, outro tanque onde ainda hoje a água corre na bica de pedra vinda duma mina que permanece fechada todo ano ao público, mas que tem um reservatório com cerca de 2 metros de altura e outros tantos de diâmetros, revestido por várias camadas calcárias de pedra trabalhada, como se fosse uma obra de arte, em que a própria natureza se esmerou e fez com o passar dos anos em que a água escorre e forma calcite pelas paredes até ao solo... cristalizando numa diversidade de formas e dando uma decoração única e bela ao local. Atualmente requalificado, este chafariz foi utilizado por muitas mulheres como local para lavar roupa e dali seguia a água por canos escondidos até outra bica onde a povoação se abastecia diariamente, um fontanário centralizado, com um azulejo alusivo ao Santo António com o Menino Jesus ao colo.

EM - O ABISMO - CARLA SANTOS - IN-FINITA

domingo, 27 de agosto de 2023

Diário do absurdo e aleatório 47 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

47

Esta noite fui invadido por uma avassaladora vontade de comer algo que há muitos anos deixei de consumir. Para tristeza minha não havia leite em casa, já passava das onze e, por mais que me caíssem bem as sopas de leite, não me daria ao incómodo de ir até à bomba de gasolina – único local aberto àquela hora.

O que fazer numa situação destas? Bem, quem não tem cão caça com gato – coitado do Nico que nada tem que ver com esta história. A decisão foi tomada: as sopas de leite (com bolachas Maria) foram substituídas por uma pequena ceia composta por biscoitos de baunilha acompanhados com… cálices de vinho do Porto.

Os biscoitos acabaram rapidamente – talvez ao fim de três copos – já o vinho… foi a minha companhia nesta vigésima terceira noite do sexto mês do ano (detalhe ébrio que talvez corte antes de publicar o texto).

Não sei se é a bebida a falar, mas a verdade é que fiquei a noite toda a tentar-me convencer que a opção tomada estava repleta de lógica e o argumento final não deixa margem para dúvidas.

Da mesma forma que há muitos anos não comia sopas de leite, também já faz uns aninhos valentes que não ficava tão bêbado como agora.

p.s. apesar da embriaguez que originou este texto, o mesmo está sem erros porque agora (24/6) de manhã, mesmo com uma ressaca desgraçada (tremenda dor de cabeça e boca mais seca que um poço em pleno deserto), decidi endireitar as linhas tortas e expurgar o dialeto obsceno para deixar tudo mais apresentável.

Ah, terminando esta nota de rodapé, vou ali ao hipermercado comprar leite porque, vai-se lá saber porquê, a vontade de comer sopas de leite aumentou.

EMANUEL LOMELINO

sábado, 26 de agosto de 2023

Diário do absurdo e aleatório 46 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

46

Cansado de frases feitas e clichés de ocasião, o corpo embrulha-se em si mesmo e chora todas as dores – as que tem, as que sente, e as que estão por vir.

Nesse recolhimento não há verde nem outra cor qualquer que mascare a palidez da derme triste e dormente. Só escuridão absoluta e isenta de compaixão.

Assim retraído, procura defender-se das inclementes chuvas metafóricas e mordazes que não cessam de ferroar, como ponteiros no extremo da agudeza e perversidade.

Quanto mais se fecha, na sua redoma sem escudo, mais expostas ficam as cicatrizes que o abraçam, e mais abertas ficam as feridas que o retraem.

O processo repete-se tantas vezes que acaba por transformar-se num ciclo vicioso e o corpo cede ao inevitável, converte-se à dor instituída e deixa de sentir…

EMANUEL LOMELINO

Emma Everston (excerto 6) - Ernesto Moamba

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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A cada dia que passava, a cidade tornava-se mais temida e arriscada, tanto pelos visitantes assim como algumas autoridades envolvidas no caso. Semanalmente, o número de ocorrências de morte agravava-se muito, tanto que obrigou o governo local ir em busca de reforço policial, com mais experiência na área da investigação, para darem o seguimento. Enquanto ocorria o processo a sociedade, farta de tanta injustiça, em parceria com alguns sindicatos, resolveu sair às ruas, dividindo-se em avenidas a fim de repudiarem e chamarem atenção das autoridades sobre o assunto em causa. Continuar a morar naquela cidade era um caos, todos os bairros estavam contaminados, quando escurecia os gritos de socorro convertiam-se em pragas, aliás, um verdadeiro ciclone Idae, nenhuma família queria perder mais um ente querido.

EM - EMMA EVERSTON, A UNIVERSITÁRIA DA CIDADE DE SANGUE - ERNESTO MOAMBA - IN-FINITA

Peabiru (excerto 18) - CARLOS DOMINGUEZ

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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O lugar era antigo. Exalava antiguidade na profusão de imagens históricas em fotos que pareciam mostrar a história da fotografia, logo acima das estantes repletas de bebidas e dos maciços balcões de madeira. A mais velha, com data de 1920, parecia uma pintura com pontilhismo em preto e branco. Mostrava o salão, o balcão de madeira e os garçons, todos enfarpelados com chapéus e ternos da época. Havia mais seis, com intervalos de cerca de uns 10 a 20 anos entre elas. As imagens iam melhorando de qualidade, surgindo mais detalhes, mas conservando o motivo principal: o salão, os garçons e os fregueses. Os grandes espelhos nas quatro paredes do salão principal produziam um efeito de passado e futuro, imagem e reflexos, realidade e sonhos.

EM - PEABIRU - CARLOS DOMINGUEZ - IN-FINITA

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Diário do absurdo e aleatório 45 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

45

Jeremias é um homem vulgar, com um caráter vulgar, uma vida vulgar, uma casa vulgar, um emprego vulgar, e uma rotina tão vulgar quanto ele. Apesar da vulgaridade, é um homem feliz.

A ambição é um pensamento estéril que só teve em duas ocasiões da sua vida, e ambas por ter sido questionado sobre o tema. Jeremias, por sua autorrecriação, nunca perdeu tempo para aprofundar a ideia.

No entanto, hoje, Jeremias confessou ao seu amigo Gervásio, ter passado toda a hora de almoço a invejar a exuberante vida do Ezequiel, companheiro de ambos nas tertúlias domingueiras no café da vila.

- Sabes, Gervásio, nem que fosse por um dia, gostaria de ter o intelecto e o carácter efusivo dele. Queria viver como ele vive, viajar constantemente, estar em lugares diferentes todas as semanas, ter uma casa maior, um emprego mais relevante, poder desfrutar das coisas que ele desfruta e ter uma vida mais agitada.

Gervásio acendeu um cigarro, bebeu um trago de cerveja, olhou o amigo com apreensão e retorquiu-lhe:

- A vida é engraçada! Ontem, nesta mesma mesa, estive a conversar com o Ezequiel, e ele disse-me que era capaz de dar tudo o que tem para ser como tu: mais contido, mais humano, mais caseiro, mais modesto, ter mais serenidade em casa, no trabalho, e poder viver a vida de forma mais tranquila, sem a obrigação moral de agradar, seja a quem for. E deixa-me que te diga, Jeremias, sinto o mesmo que ele. Ao contrário do que pensas, a simplicidade da tua vida faz de ti um homem especial. Alguém que todos nós gostaríamos de ser, mas nunca conseguimos porque ficámos obcecados em obter coisas efémeras, em vez de nos limitarmos àquilo que realmente importa – a felicidade. E, no nosso grupo, tu és o único que sabe o que é isso.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Diário do absurdo e aleatório 44 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

44

Qual o problema em comer a última batata da travessa, beber cerveja directamente da garrafa, ficar concentrado apenas na refeição e recusar sobremesa?

Onde está o incómodo em ser somente ouvinte, conversar com os próprios botões e não rir de piadas sem graça?

Que erro se comete ao encarar as situações com leveza, ao não dar importância a coisas menores e definir-se prioridades?

Onde está a inconveniência de querer abraçar o silêncio, recusar companhias que não se quer e evitar repetir erros cometidos?

Que prejuízo advém de querer permanecer na zona de conforto, lutar pelo que se acredita e não apostar quando as probabilidades de vencer são ínfimas?

Onde reside o egoísmo da recusa em divulgar pormenores de foro pessoal, em reivindicar direito à privacidade e festejar a preservação da intimidade?

Como pode haver presunção na exigência de respeito, na necessidade de exercer direitos e deveres e preservar a individualidade?

Que obscenidade existe em, apenas, querer ser?

EMANUEL LOMELINO

quarta-feira, 23 de agosto de 2023

Diário do absurdo e aleatório 43 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

43

Quero avisar-te, leitor que agora me lês, que as letras diante dos teus olhos não são frescas como pão acabado de fazer, porque as escrevi há quase dois meses. O mesmo é dizer, isto que te escrevo, do passado, deves consumir com moderação e lentamente porque, apesar de estar dentro do prazo de validade, digeri-lo pode ser difícil.

Preciso que entendas a enorme diferença que existe entre escrever sobre um momento e estar a escrever o momento. Confuso? É simples!

Escrever sobre um momento é dissertar sobre algo que, não tendo acontecido, poderia muito bem acontecer, por ser plausível.

Escrever sobre o momento é contar detalhes de um evento, específico e real, ocorrido ou presenciado por quem escreve.

A diferença entre estes dois conceitos é a mesma que separa a ficção da realidade.

Se, mesmo assim, na tua cabeça persistir a dúvida, olha para a gramática e observa que num caso é usado o artigo indefinido “um” e no outro é aplicado o artigo definido “o”. O primeiro é genérico; o segundo é específico.

Sabes, leitor, estes pormenores fazem toda a diferença na forma como se interpreta um texto. Porque tudo deve ser entendido dentro do “contexto” que lhe deu origem.

A função de quem escreve é, na medida do possível, dar vida (e alma) às suas palavras e provocar uma reacção nos leitores.

Se hoje (no teu presente) estás a refletir nestas palavras que escrevi, então hoje (meu presente - teu passado) consegui cumprir-me como autor.

EMANUEL LOMELINO

O abismo (excerto 23) - CARLA SANTOS

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Contornei-o... e o seu estado está muito degradado, mas não deixa de ter a sua beleza. Apenas as paredes redondas, uma janela por cima da porta de entrada e o pau principal das velas, nada mais... rodeado de mato e ervas altas. Mais à frente um baloiço de madeira e uma paisagem panorâmica, verde e dum alcance muito bonito... “Baloiço da Quinta do Penedo”... aproveitei para dar umas voltinhas... como tantas vezes o fizera em criança e adorava. Senti-me leve e livre por momentos. Aquele trilho tinha algo de especial... até ao Moinho do Duque, no final da estrada. Mas este estava em ótimo estado de conservação e parecia habitado regularmente... apreciei a vista em redor e voltei para trás...

EM - O ABISMO - CARLA SANTOS - IN-FINITA

terça-feira, 22 de agosto de 2023

Diário do absurdo e aleatório 42 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

42

Hoje, a palavra escrita é a representação gráfica de alguns gritos presos na garganta; de alguns impropérios que não podem ser proferidos porque ainda há crianças acordadas; de algumas imprecações lamechas que não combinam com a linguística socialmente aceite.

Hoje, a palavra escrita é uma fuga silenciosa aos fantasmas que teimam em assombrar os ingénuos; aos enfadonhos oradores que não sabem a diferença entre os sinónimos poéticos de festa e plenário; aos inúmeros arrolhadores das plataformas digitais.

Hoje, a palavra escrita é a excessiva glorificação do silêncio; é a exaltação dos pensamentos mais mundanos e vulgares; é o elogio à criação narcisista – dispensável como a maionese numa salada de frutas.

Hoje, a palavra escrita não é um exercício catártico; uma purificação de alma e espírito; um exorcismo de angústias, desilusões, desesperos.

Amanhã, a palavra escrita simbolizará outras coisas – ainda bem – porque também os dias são todos diferentes e merecem ser descritos com as palavras que melhor se adequam à sua singularidade.

EMANUEL LOMELINO

segunda-feira, 21 de agosto de 2023

Diário do absurdo e aleatório 41 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

41

Nesta loucura de mim, reflexo das piscadelas de olho dos meus (apurados?) sentidos, cravo todos os verbos auxiliares de memória e construo uma história sem futuro, mas intemporal.

Como criador que sou (e me sinto?) abro o kamasutra de possibilidades ilimitadas do estro (se o tenho!) e desenho a inconveniente postura de um adjectivo concreto, para expurgar o iodo das sentenças enfermas e, assim, eliminar a linha condutora dos raciocínios exactos que me invadem.

Enquanto autor de incoerências e paradoxos redundantes, mergulho na liquidez de um pensamento firme e dou-lhe características plásticas, como quem mastiga a dor de uma revelação insonsa - de cuja falta de encanto pode germinar a frase mais contundente e acintosa.

Há propósito nos casamentos que imponho às palavras porque de nada servem as solteiras, prenhes de solidão gramatical e mais susceptíveis ao embuste e ao narcisismo.

Acredito na desformatação das fórmulas e no aniquilamento do óbvio (advérbios e derivações!) em detrimento – que não substituição – dos recursos assessórios, que não os simples e básicos, porque essenciais e necessários.

Creio na encriptação metafórica e na irónica exploração dos verbos regulares, como quem personifica uma multitude de gestos comprometedores.

Por isso, todos os meus textos podem ser explicados numa única e definitiva frase, quando não por apenas uma singela palavra.

EMANUEL LOMELINO

Emma Everston (excerto 5) - Ernesto Moamba

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O silêncio já não parecia silêncio e a escuridão muito mais horripilante. As luzes pouco iluminavam e para quem não reconhecia o inferno... poderia imaginar. Mesmo com temor, Emma continuava sua busca na esperança de encontrar a moça que implorava pela ajuda. A cada passo que dava, os gritos pareciam mais perturbadores, mas a jovem permanecia forte e corajosa ao seu propósito.
No momento, nem o medo, nem os rios de sangue, que escorriam pelos arredores do apartamento do Guest House, intimidavam a jovem, aliás, cada vez que a vítima gritava mais força ela tinha. Já passava da meia-noite, Emma já havia revistado todos os aposentos e só lhe restava um que se encontrava a dez metros do local onde estava posicionada. O medo suprimia seus músculos e o corpo oscilava aceleradamente, a cada passo que dava, na esperança de alcançar o esconderijo.

EM - EMMA EVERSTON, A UNIVERSITÁRIA DA CIDADE DE SANGUE - ERNESTO MOAMBA - IN-FINITA

Peabiru (excerto 17) - CARLOS DOMINGUEZ

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Naquele momento, ao estar percorrendo o Caminho do Peabiru, sentia a necessidade inadiável de estar outra vez imerso na mata e sentir na pele os respingos do rio. Por isso fora até lá, depois de deixar o sítios arqueológicos de Pedra Grande, lá na região das Missões, cruzar pelas ruínas de São Miguel e também visitar Caemborá. Às vezes somos nós que fazemos o caminho. Em outros momentos é o caminho que nos leva. Assim andávamos pelas cambiantes paisagens do continente profundo. Do centro do estado do Rio Grande do Sul, subindo como que a costear o impressionante Rio Uruguai com suas corredeiras, um manancial cultural de histórias e personagens únicos, os ribeirinhos, mescla de culturas que se mantêm alheias ao universo ocidentalizado das cidades.
Um caminho marcado pelas pedras, sim. Da Pedra Grande até as pedras de Caemborá. Até que finalmente nos refugiamos no imenso lajedo de pedra do Salto do Yucumã para retirar os calçados e colocar os pés nas geladas águas, ali mesmo no miolo da cascata horizontal, observando a fúria e a força da água, a beleza única da floresta. O calor energizante do sol. O suor da vida e o calor das amizades que sacramentam trajetórias na contemplação de momentos onde os afetos são silenciosos, dada a grandiosidade do espetáculo.

EM - PEABIRU - CARLOS DOMINGUEZ - IN-FINITA

domingo, 20 de agosto de 2023

Diário do absurdo e aleatório 40 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

40

Ao contrário de todos os outros sentimentos, acho que o medo ainda me espera no inesperado.

Não tenho medo de répteis, roedores ou gosmas, apenas asco e repugnância. Não tenho medo de agulhas, ou outros instrumentos pontiagudos.

Não tenho medo da solidão porque a procuro. Não tenho medo do vazio porque me preencho. Não tenho medo do escuro porque me atrai. Não tenho medo de gritos porque os ignoro. Não tenho medo de falinhas mansas porque desconfio. Não tenho medo de traições porque as sinto. Não tenho medo da desilusão porque prevejo. Não tenho medo do futuro nem da morte porque os desconheço.

Não tenho medo de monstros, bestas, feitiços, crenças, seitas ou outras criações fantasiosas da humanidade porque também as sei criar.

Tenho vertigens, mas nunca me recuso subir ao penhasco mais alto e íngreme porque sou combativo mesmo sentindo angústia e desconforto.

Dizem que o medo dá arrepios, também a febre. Dizem que o medo faz tremer, também o frio. Dizem que o medo faz suar, também o ginásio. Dizem que o medo deixa a garganta seca, também a sede. Dizem que o medo dá nós no estômago, também a fome. Dizem que o medo gera apreensão, também a pobreza. Dizem que o medo causa ansiedade, também as drogas. Dizem que o medo acorda os sentidos, também o sexo. Dizem que o medo origina desconfiança, também a política. Dizem que o medo provoca lágrimas, também a cebola. Dizem que o medo assusta, também eu.

EMANUEL LOMELINO

sábado, 19 de agosto de 2023

Diário do absurdo e aleatório 39 - Emanuel Lomelino

Imagem wscom

Diário do absurdo e aleatório 

39

O meu modo de criação é distinto e dá-me imenso trabalho, porque sou um autor estranho.

Leio uma frase, escuto uma conversa, oiço uma música, vejo uma imagem, e logo acende-se em mim uma estranha necessidade, impossível de controlar, de desenvolver a ideia.

Estranhamente, chamo os meus vizinhos dicionários, sondo verbos, adjectivos e substantivos, estudo sinónimos e antónimos, examino advérbios e pronomes, pesquiso significados e curiosidades, enfim, faço trabalho de laboratório.  Experimento conceitos, construo frases, burilo daqui, pinto dali, desenho acolá, escrevo e reescrevo até que o texto me informe da sua disponibilidade para ir ao forno, secar a tinta e temperar o aço que o sustenta. E espero…

Espero que o sujeito – meu ortónimo (mais estranho que eu) – decida se deve ou não divulgar o que escrevi. Quando há aval positivo, ele pré-agenda e tudo fica em suspenso, até à data de publicação.

O processo faz com que exista uma grande distância temporal entre o dia que vê nascer o texto e o momento em que lhe é dado sentir a luz da visibilidade.

Este texto, escrito hoje, certamente só terá leitores daqui a um mês, ou mais. Ou devo dizer: este texto que escrevi há um mês, ou mais, só está a ser lido hoje.

Seja qual for a forma correcta de expressar a ideia, de uma coisa tenho certeza: por causa do pré-agendamento, dependendo do ritmo de criação, só saberão da nossa morte – minha e do ortónimo obsessivo-compulsivo – meses depois de acontecer. E isso será um estranho prolongamento da nossa vida. Uma espécie de imortalidade temporária.

EMANUEL LOMELINO

sexta-feira, 18 de agosto de 2023

Diário do absurdo e aleatório 38 - Emanuel Lomelino

Diário do absurdo e aleatório 

38

O útero foi fecundado, num ato de amor casto e inocente, com a esperança de ser a génese de uma nova realidade, plena, lúcida, feliz.

Mas os conceitos embrionários não têm correspondência nas atitudes progenitoras. Todas as regras criadas são apenas para enfeitar. Os princípios morais não são para seguir. Os novos hábitos e comportamentos são meras figuras de retórica. As imposições jamais se cumprem. O respeito exigido não se dá. E a cegueira do obstetra de serviço impede que se diagnostique uma gravidez de risco.

Quando o parto acontece, todos aplaudem e celebram o rebento. Ninguém duvida da paternidade, mas também não reconhecem os traços da ascendência. Instala-se um silêncio inquisitivo e uma ânsia contempladora, mas há felicidade nos rostos.

A inocência infantojuvenil depressa se transforma em arrogância e prepotência, de forma tão natural quanto previsível. Dizem que é sinal dos novos tempos e, com o contágio da cegueira obstetra, vai-se alimentando as bizarrices do pequeno adulto.

Agora multiplique-se por toda uma geração e, pasme-se quem quiser, temos o sucessor do homo sapiens. Um inútil, sem interesse no passado, dependente e sem rumo, criado na ilusão dos novos tempos, em que todos são vencedores e os reis são aqueles com cabelo cor de açafrão ou colorau, maquilhados com filtros virtuais, donos de canais de TikTok e que questionam a utilidade de se ter inventado a gravidade.

Não escrevo mais nada porque ainda me cancelam.

EMANUEL LOMELINO

O abismo (excerto 22) - CARLA SANTOS

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Montei a moto e subi ao castelo, também aqui os romanos passaram e deixaram inúmeros vestígios, desde as cisternas e as lápides epigráficas. Na porta principal vejo o brasão com as armas reais, ladeado por duas esferas armilares (referentes a D. Manuel I), as torres maciças semicirculares, para defesa da muralha e da fortificação, a muralha exterior para reforço do castelo e a cerca que envolve o recinto. Já, cá fora, a Igreja de Santa Maria construída no século XII, com vestígios de arte românica, tem duas torres sineiras, uma tábua do coro tem a imagem da ressurreição de Cristo, uma pia batismal e alguns painéis...
Esta cidade pertenceu ao domínio islâmico até ser tomada por D. Afonso Henriques depois de 1147. Terra de Rainhas e com influências de diversos mosteiros de várias ordens religiosas, foi aqui que se reuniu o Conselho Régio de D. João I, em 1414, para decidir a conquista de Ceuta. Também daqui partiram muitos aventureiros em busca de novos mundos...

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