quinta-feira, 30 de março de 2023

A cruz haitiana (excerto 24) - IARA LEMOS

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Para conseguir recursos para manter a escola, as religiosas buscam apoios que ultrapassam as barreiras haitianas. De entidades da Alemanha, chegava parte do auxílio, mas ainda era insuficiente para nutrir a necessidade de aprendizado. Alguns estudantes tinham a sorte de contar com padrinhos, boa parte deles americanos, que depositavam quantias mensais para ajudar nos estudos. A fim de manter o auxílio, as freiras se responsabilizavam por encaminhar aos padrinhos fotos das crianças, onde estão expressos relatos da situação familiar e escolar. A ideia era municiar os doadores com o máximo possível de informações sobre as crianças, a fim de que os depósitos mensais nunca deixassem de existir e ainda fossem capazes de mobilizar novos doadores, independentemente do local do mundo onde estiverem situados.
Manter uma criança na escola no Haiti pode ser complicado para a situação social do país, mas, em relação a custos, costuma ser mais acessível que em outros países, inclusive no Brasil. A média de gastos anuais calculados pelas religiosas, incluindo desde o uniforme até o material e a merenda escolar, chega a US $200 para cada estudante. Dinheiro que para muitos pode ser insignificante, mas que para as crianças haitianas pode ser revertido na esperança de um futuro com menos dificuldades sociais. 

EM - A CRUZ HAITIANA - IARA LEMOS - IN-FINITA

quarta-feira, 29 de março de 2023

As nossas almas solitárias (excerto 24) - C. GONÇALVES

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Já passaram duas semanas desde a nossa conversa. Os dias arrastam-se tão lentamente que parecem não ter fim. O trabalho vai-se acumulando e sinto não ter energia para nada. No fim-de-semana tratei das compras do material escolar e de organizar as coisas para o regresso dos meus filhos às aulas, que, entretanto, já começaram. Sinto-me esgotada e a precisar de descanso. Tenho constantemente adiado o jantar combinado na casa da Sara. O Santiago está ainda em convalescença e não quero atrapalhar. Também tenho medo. De o encontrar. O Salvador não me disse mais nada; nem um telefonema, nem uma mensagem. Melhor assim. Talvez se tenha esquecido de mim. Talvez aceite a minha decisão sem hesitar. Eu não sei o que fiz. Nem porque o fiz. Gosto de estar e de conversar com ele. Atrai-me o seu olhar e o seu modo rude de estar. Os seus braços e os seus beijos levaram-me onde já não me lembrava. Talvez tenha sido isso. De repente percebo que não sei lidar com isto. Tenho medo. De me entregar, de ficar vulnerável. De querer lhe pertencer e ser sua. De não conseguir voltar à superfície. De me afogar nos seus olhos e perder-me. E nunca mais conseguir voltar...

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segunda-feira, 27 de março de 2023

dois de julho, coelhão (excerto) - FLÁVIO ULHOA COELHO

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Há inúmeros motivos para se festejar o dia dois de julho e certamente pouca concordância sobre o principal. Há quem insista, por exemplo, que o mais importante é o aniversário do Thio Therezo mas é justo dizer que nesse grupo o próprio Thio não se inclui, humilde que é e sempre foi. Quando perguntado sobre quando aniversaria, o Thio responde que é no dia dos bombeiros, o que, além de dar um charme todo especial à data, acrescenta credibilidade. Faz todo o sentido, ainda mais que o seu ascendente zodíaco é libra.
Mas vá lá você mencionar ao pessoal da cidade baiana de Guanambi a data dois de julho e dificilmente conseguirá se livrar tão cedo das histórias envolvendo o estádio de futebol local. Ouvirá de tudo e mais um pouco, mas pouca convergência, no entanto, sobre o principal jogo lá disputado, é claro que os torcedores dos dois times que lá mandam seus jogos jamais iriam chegar a um acordo. Dizem muitos que foi o jogo entre Flamengo de Guanambi e o Esporte Clube de Vitória no longínquo dia dezanove de março de 1978. Outros apontam os jogos do Guanambi Atlético Clube que, de 1994 a 2001, disputou a segunda divisão do campeonato baiano tendo, por duas vezes, sido quase o seu vice-campeão.

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sábado, 25 de março de 2023

A cruz haitiana (excerto 23) - IARA LEMOS

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Enquanto Santina ensinava a confecção de bijuterias às adolescentes, Davina cuidava da alfabetização dos pequenos, mesmo que soubesse que a maior parte das crianças pouco aprenderia das aulas. Era dela a responsabilidade pela coordenação das escolas que atendiam parte das crianças de Leyon. Mais que pregar o Evangelho, as missionárias defendem que a educação é o único caminho capaz de melhorar as condições de vida do sofrido povo. Nem que, no caso do Haiti, a escola seja apenas um trajeto para encurtar o percurso entre as crianças e um prato de comida.
As freiras compreendem que boa parte das crianças atendidas não terá chances de estudar durante muito tempo. Para aquelas crianças, as aulas servem mais para alimentar o corpo do que a alma. A escola, que deveria ser uma espécie de trampolim em busca de melhores condições, no Haiti é apenas por um período restrito. Mesmo que chegue até à sala de aula, muito raramente a criança conseguirá evoluir nos estudos, uma vez que a fome que a aflige dificulta a capacidade de aprendizagem. Saber que terão a chance de receber uma porção de alimento, por menor que seja, talvez a única do dia, é o que leva muitas das crianças às escolas auxiliadas pelas freiras. Há outros religiosos, contudo, que usam o alimento em troca de sexo.

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sexta-feira, 24 de março de 2023

As nossas almas solitárias (excerto 23) - C. GONÇALVES

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O seu olhar detém-se em mim com ternura, e o seu corpo encosta-se ao meu com gentileza. Antes de me beijar, estreita-me nos seus braços e a sua força faz-me ficar nervosa. Sei onde os nossos beijos e as nossas carícias nos irão levar, naturalmente. E nesse instante, sinto medo. Nunca tive grandes romances e a minha experiência sexual resume-se a um beijo dado a um miúdo borbulhento, ainda no secundário, e ao Miguel. Desde então, nada, zero. Isso, deixa-me inquieta e hesitante. Sinto um frenesim invadir o meu corpo e o meu sangue corre apressado nas minhas veias. Vejo o meu casaco ser-me despido e atirado para o sofá sem pressas. Quando ergo as mãos para lhe tirar os botões da camisa, os meus dedos tremem.

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quarta-feira, 22 de março de 2023

bueiros inteligentes (excerto) - FLÁVIO ULHOA COELHO

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O Thio Therezo é da época em que a palavra inteligente qualificava um ser humano, um elogio a uma característica desses seres aparentemente especiais. Não era algo que poderia se referir a coisas e objetos, muito menos a, por exemplo, um... bueiro!
– Sim, um bueiro – o Thio mostrava toda a sua indignação frente à televisão, estávamos vendo um daqueles programas noturnos de variedades – essa matéria aí é sobre um bueiro inteligente! Ach, a que nível chegamos!!!!
E o Thio agora estava de pé, olhando para a televisão em efusivo e adiantado estágio indignativo. Sim, o Thio era do tempo em que as pessoas ainda se indignavam com as coisas, com os absurdos ouvidos e lidos. Quando parar de se incomodar com certas coisas, o Thio Therezo costumava dizer, melhor morrer.
– Melhor morrer!!!! – gritou ele.
Mamãe, irmã do Thio, apareceu de supetão na sala para ver do que se tratava aquela gritaria toda. Anos de convivência e não tínhamos ainda nos acostumados com os repentes indignativos do Thio. A irmã do Thio, nossa mãe, convenceu-se após alguns instantes que, na realidade, tudo estava em ordem no universo, ninguém estava realmente a morrer e voltou para a preparação de uma daquelas deliciosas sobremesas que tanto adoçavam nossa vida.

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segunda-feira, 20 de março de 2023

A cruz haitiana (excerto 22) - IARA LEMOS

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“Os homens do extinto Exército Nacional Haitiano entraram sem pedir. Procuravam qualquer coisa, em todos os cantos da casa. Atiraram gavetas e caixas para o chão, abriram todos os armários, nos colocaram deitadas no chão. Buscavam armas e outros tipos de instrumentos que pudessem ser usados numa espécie de revolução. Eles pensavam que estávamos mobilizando os haitianos. Porém não havia nada na nossa casa. Nunca lidamos com armas. Nunca incitamos a violência, em momento algum”, recordou Davina, com uma grande quantidade de detalhes que me fazia viajar na memória delas, como se o momento ainda estivesse vivo.
Nas longas conversas que tivemos, as missionárias garantiram que nada que fosse proibido pelo exército foi encontrado pelos militares durante a vistoria. Tanto que, diante da ausência de provas, as religiosas puderam permanecer no Haiti, conquistando uma vitória sobre seus próprios medos e sobre os opositores políticos da igreja. A grande arma que as brasileiras possuíam, todavia, estava num local onde, nem mesmo que quisessem, os militares contrários a Aristides iriam conseguir alcançar: a mente das religiosas e tudo o que elas pregavam junto ao povo, ao mais clássico modelo do personagem Winston Smith, do clássico sempre recente “1984”.

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Vi você - KATE OBRELLI

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Desperto, desperta você! Carrego um fardo de perfeição. Eu sangro, você sangra, desliza pelas veias, a vida se esvai. Entorpecida, penso estar imune à dor. Mas ao me olhar no espelho vi você.
E num sopro, num assombro eu me rendo, não sou só EU. Resistir dói demais, sentir o teu sentir e vi, somos extensão uma da outra. Ao olhar desatenta, pensei ver uma estranha, mas com cuidado vi encontro.
O feminino é infinito, é um fio invisível, é um pavio que não pode ser apagado. Estou perdida, acendo e um pontilhar extraordinário de luz se faz. Recordei quem eu sou, quem nós somos. Agora eu ando segura, não estou mais SÓ.
Posso SER imperfeita, posso estar cansada, choro em prantos e em meio aos soluços irrompe uma gargalhada livre.

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domingo, 19 de março de 2023

As nossas almas solitárias (excerto 22) - C. GONÇALVES

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No dia seguinte, sinto-me tão cansada que nem sei como vou aguentar a audiência. Fiquei até tarde a rever o processo e agora isso reflete-se no sono que sinto. Deixo os meus filhos na escola e sigo directamente para o Campus da Justiça. Assim que entro, vejo a Margarida esticar o pescoço nervosamente à minha procura. Faço-lhe um aceno e seguimos para a cafetaria para um café rápido. Não há tempo para mais nada, a audiência começa às 9:00. Já na sala de audiências, visto a personagem da advogada Ana Amaral, dentro do tribunal. Quando fazemos um intervalo, venho até cá fora tomar um café. Num dos bancos do corredor vejo-o sentado, as mãos pousadas nos joelhos. Num relance, ele olha para mim. Os seus olhos erguem-se e vejo o seu sorriso aflorar nos lábios, devagarinho. Eu trago a toga preta vestida, e quando me aproximo, ele levanta-se.

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sexta-feira, 17 de março de 2023

setor 24, estádio da luz (excerto) - FLÁVIO ULHOA COELHO

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Há tempos o setor 24 do Estádio da Luz é, digamos assim, místico. E para o Thio Therezo, em particular, é o setor que tem o maior encanto no principal estádio português. Pois foi lá que ele assistiu, estupefato, à derrota de Portugal para a Grécia na final da Eurocopa de 2004. Chorou junto aos adeptos portugueses, naquela que seria a grande decepção futebolística do país (doze anos depois, Portugal iria ganhar o seu título, mas longe da Luz o que, digamos, não é a mesma coisa...). Foi nesse setor também que o Thio viu o Real ganhar do Atlético, ambos de Madrid, aquela final épica da Champions de 2014.
Não por outro motivo, quando o Thio Therezo foi comprar ingressos para o jogo do Benfica com o Ajax, ele escolheu justamente esse setor. Jogo crucial da Champions League para a equipa dos encarnados.
É lá que encontramos o adepto cego que acompanhou tudo com o seu fone de ouvido. Torceu, festejou o golo do Benfica que aconteceu bem na nossa frente, sofreu no escuro o seu sonho de vitória.

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quarta-feira, 15 de março de 2023

A bolha (excerto) - GABRIELA BECK

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Hoje é dia 9 de agosto. Há exatamente 4 anos atrás Mariana estava totalmente desnorteada e começando nova vida do zero. Ela e sua família chegaram a Portugal com 12 malas, 2 gatos e 1 cachorro. O português de Portugal não parecia familiar naquela época, era tudo muito novo, muito confuso.
Mariana veio do Rio de Janeiro, era uma adolescente que mal saia de casa, porque a ideia de estar vulnerável à violência a deixava em pânico e toda vez que se desafiava a sair. Certa vez Mariana a um centro comercial ao lado da sua casa, na volta o porteiro disse: "há uns 15 minutos teve um assalto a mão armada aqui na portaria, que bom que você não voltou antes". Coisas como aquela eram assustadoramente comuns. Ela não se sentia segura em lugar nenhum. Ela cercava-se de livros e filmes, isolada em seu mundo.
Mariana achou delirante o fato de poder andar tranquila em Portugal, andar de transporte público sem grandes tensões, experimentou toda aquela segurança e paz mental, antes ela estava sempre em alerta, ela podia abrir as janelas do carro a noite, enquanto o sinal fechava, sinal de trânsito no Rio era crítico. Além de ver famílias em uma situação extrema de necessidade, tentando sobreviver, muitas vezes eram crianças, indo de janela em janela, muitas situações de assalto.

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A cruz haitiana (excerto 21) - IARA LEMOS

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A Irmã Santina e sua colega de congregação, Davina Cardoso, conheceram Aristides em 1987, tão logo chegaram ao país da América Central. A raiz das religiosas foi instalada por lá no mesmo ano que o parlamento haitiano aprovou a Constituição do país. Um ano depois, viram o padre ser expulso da Igreja Católica por suas posições consideradas “radicais”. Nos anos que se seguiram, o colapso político e social começou a tomar contornos ainda mais intensos, inflados pela entrada oficial do ex-padre no cenário político.
Quando Aristides assumiu o poder em 1991, após vencer a eleição do final do ano anterior com mais 67% dos votos válidos, as religiosas comemoraram. Porém um golpe de Estado o derrubou do cargo no mesmo ano. Apoiadores de Aristides foram mortos pelos Tontons Macoutes em vários locais do país. Muitos tinham suas cabeças expostas nas ruas, como uma forma de ameaça aos que ainda insistiam em apoiar o ex-representante da Igreja Católica na sua jornada pelo poder. As freiras tinham medo de morrer também.

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terça-feira, 14 de março de 2023

As nossas almas solitárias (excerto 21) - C. GONÇALVES

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A semana começa como sempre, atribulada e com muita correria. No escritório, o trabalho não pára e não tenho mãos a medir. Não me consigo concentrar, e isso, afecta-me. As palavras do Salvador ecoam na minha mente e tento assimilar tudo o que me disse e aquilo a que nos propusemos. Sermos um bocadinho mais do que amigos; eu acho que define bem a coisa...
Preciso rever o processo que tenho em mãos e não consigo tempo para isso no escritório. Provavelmente só mais logo quando os meus filhos estiverem deitados é que terei possibilidade de acalmar e trabalhar. A audiência é quarta-feira logo pela manhã, já não tenho muito tempo...

– Ana? Estás a ouvir-me? Queres atender ou peço para ligarem mais tarde?
– Eu ligo de volta... preciso fazer uma pausa... – levanto-me da cadeira sem destino.

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domingo, 12 de março de 2023

aljube, resistência e liberdade (excerto) - FLÁVIO ULHOA COELHO

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Descendo lá do Castelo de São Jorge pela rua dos trilhos, pouco antes da Sé, lado direito, há o Museu Aljube, Resistência e Liberdade. No prédio que abrigava os presos políticos do regime salazarista é possível agora ter uma clara noção daqueles tempos sombrios de Portugal, mas também das técnicas de regimes totalitários.
Fernando Pessoa, fazendo o caminho inverso e indo em direção ao Castelo, em seu guia “Lisboa, o que o turista deve ver”, menciona assim esse prédio: “Um pouco mais acima, onde era antigamente o palácio do arcebispo D. Miguel de Castro, é a cadeia de mulheres conhecida por Aljube. Não merece a nossa atenção excepto no que respeita ao passado histórico do próprio edifício”. Mas isso foi antes de Salazar, pois esse guia foi escrito provavelmente em 1925.
Logo no primeiro andar, compartilhando o espaço sobre Portugal do século XX, há um vídeo em que se repete e se repete um famoso discurso de Salazar por ocasião do décimo aniversário do golpe:
“... não discutimos Deus e sua virtude, não discutimos a autoridade e o seu prestígio, não discutimos a glória do trabalho e o seu dever, não discutimos a família e a sua moral, não discutimos a pátria e a sua história...” (Salazar, 1936).

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sexta-feira, 10 de março de 2023

Encruzilhadas de uma imigrante (excerto) - ELIANA LUIZA DOS SANTOS BARROS

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Eu quero continuar sendo brasileira, mas decido expatriar-me para desabrochar. Já antecipo a saudade do meu país de origem, tão bonito e ao mesmo tempo tão desigual, incerto e abatido. Não é fácil desapegar da pátria, das pessoas que amamos, desprender de coisas que tanto tempo nos acompanharam. É sobretudo penoso aprender a amar nossos amores à distância. Insisto na partida incerta com esperança de suportar a separação que me aparta daqueles que me são queridos.
Portugal conversa com meu coração, tenho vínculos constituídos desse lado de cá, mas é preciso coragem e ousadia para sustentar a escolha de mudança. Não há como saber como será, sem ir. Deixo o país que é caro ao meu coração, inundada de expectativas e promessas feitas por mim mesma, perpassadas pelo desejo de uma inovação.
Redescobrir-me em novos territórios, num outro país, numa outra cultura traz contentamentos e consternações, às vezes o tempo parece suspenso e se eterniza num vazio. A falta de pertencimento desencadeia um furo nos laços sociais e frequentemente nos deparamos com o desamparo e a falta de acolhimento. Aqui, as vezes amanhece de noite, alguns dias são cinzentos e no verão arde um fogo morno. Outros dias há um sol quase poético.

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A cruz haitiana (excerto 20) - IARA LEMOS

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Sendo religiosas de posicionamentos, como Santina conclui posteriormente, mais flexíveis, as brasileiras do Imaculado Coração de Maria tiveram de aprender que, num país como o Haiti, até mesmo determinadas regras impostas pela Igreja Católica precisam de passar por um processo de adaptação, sob pena de ficarem obsoletas e jamais serem assimiladas pela sociedade que queriam e precisavam de atingir. Nem mesmo os tradicionais hábitos, roupas caraterísticas das diferentes congregações, eram usados pelas brasileiras em solo haitiano. As freiras da Congregação Imaculado Coração de Maria primavam pelo uso da saia, mas sabiam que essa vestimenta não poderia ser usada em algumas ocasiões, e as calças eram grandes aliadas na hora de caminhar longas distâncias em busca das comunidades. O único momento em que a saia se tornava indispensável era na hora da missa, que, não raras vezes, chegava a ultrapassar cinco horas de duração, especialmente em dias festivos, como as que são celebradas na Sexta-Feira Santa e que pude acompanhar.
Para participar das celebrações, tanto as religiosas quanto as demais mulheres da comunidade precisam de vestir saia, ou vestido, com parte dos braços cobertos, sob pena de não receberem a hóstia das mãos do padre ou do bispo que estiver conduzindo a celebração. Uma punição dolorosa para quem segue as regras do catolicismo e que acredita que comungar é um caminho para chegar até o céu. Por via das dúvidas, em todas as missas que acompanhei no Haiti, sempre estive com um casaco a cobrir os braços. Em locais tão controversos como o Haiti, também chamado carinhosamente de “Pérola das Antilhas”, era melhor não descumprir orientações dos anfitriões.

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quinta-feira, 9 de março de 2023

As nossas almas solitárias (excerto 20) - C: GONÇALVES

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As suas mãos descem para o meu pescoço e quando me puxa para si, os nossos peitos encontram-se no ímpeto do momento, onde as bocas se procuram com intensidade. Lentamente, a sua mão direita desliza pela curva das minhas costas, fazendo-me suspirar baixinho. Faz muito tempo que não estou com ninguém. Não assim. Não intimamente. Isso, assusta-me um bocadinho. Nesse instante, deixo-me levar pelos seus beijos, pelas suas mãos que me seguram, pelo calor que o seu corpo emana. E devolvo-lhe os beijos com a mesma intensidade, e agarro o seu pescoço, e estreito-me nos seus braços.

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terça-feira, 7 de março de 2023

mestres treineiros (excerto) - FLÁVIO ULHOA COELHO

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Dia outro, Thio Therezo chegou à casa entusiasmado e, assim, contou-nos que tinha recebido o seu certificado de treinador de tartarugas de corrida, grau mestre. Finalmente, diz ele, pois simples não é, nem corriqueiro, imagine-se se poderia ser!
Recordou-nos, mais uma vez, todo o processo que era chegar a tal honraria. O primeiro passo é convencer um dos três mestres supremos que estão habilitados a ministrarem treinamento para treinadores de tartarugas de corrida. E não é fácil isso, pois por conta da dedicação inerente a tal treino, eles não podem aceitar mais do que dezanove alunos por vez e, sabe-se, candidatos não faltam.
Dezanove alunos, divididos entre todos os três mestres supremos. Claro que por esse número não ser divisível por três, há entre eles uma silenciosa, mas republicana, porém encarniçada, disputa por espaço. Quem tem mais alunos, é sempre melhor visto nessa sociedade meritocrática, pois aqui, ao contrário de outros lugares, quem ensina está no topo da cadeia de prestígios sociais.

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domingo, 5 de março de 2023

Vai, malandra (excerto) - ELAYNE ESMERALDO NOGUEIRA

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Ela, que nem gostava tanto de funk, passou a dar outro significado para uma música que diz “vai, malandra”. E não, não era pra brincar com o bumbum. Mas era pra persistir e ir atrás dos seus objetivos. Tinha ido cedo ao Instituto de Emprego em que estava tentando se cadastrar há algum tempo. Tinha a esperança de que agora desse certo porque já tinha os números dos documentos necessários. Um dos números tinha sido especialmente difícil de conseguir: o da Segurança Social. Ela sentia que estava numa espécie de limbo: para conseguir esse número, tinha de ter um contrato de trabalho. No entanto, sempre que era chamada para entrevistas de emprego, diziam-lhe que ela tinha que ter o número da Segurança Social para que o contrato fosse feito.
Na falta desse contrato de trabalho e desse número para o contrato, pesquisou o que poderia ser feito e achou uma possibilidade: se ela abrisse uma atividade de trabalho independente junto ao órgão regulador das Finanças, poderia pedir um número de registo junto à Segurança Social. Assim o fez. Foi orientada no órgão das Finanças a passar um recibo - e, como o primeiro ano da atividade econômica era isenta de impostos, não havia muito com o que se preocupar. De posse do comprovante do recibo, foi ao órgão da Segurança Social e lhe foi atribuído um número. Havia sentido um alívio e teve a sensação de que iria dar tudo certo. Comemorou, até. Mal sabia ela o que lhe esperava a seguir.

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A cruz haitiana (excerto 19) - IARA LEMOS

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Diante dessa realidade, as aulas de português ministradas pela freira Lorena Barbosa, em Jérémie, por exemplo, não restringiam a participação de pessoas de outras religiões, nem mesmo daquelas que se declararam adeptas do Vodu. A cooperativa criada pelas religiosas, também em Jérémie, não proibia a participação de famílias que ajudassem a engrossar as tristes estatísticas dos restavésks, as crianças escravas que se multiplicam pelos diferentes lados do país. Somente estando perto de pessoas que desenvolvem essas culturas, recriminadas pela Igreja Católica, as religiosas acreditavam que conseguiriam, ao menos em parte, desenvolver a missão a que se propunham quando aceitaram o convite para atuar no Haiti. As formas que encontraram para atingir seus propósitos não são completamente aceites pela igreja, ou, talvez, até certo ponto tenham sido ignoradas, a fim de evitar possíveis conflitos. Santina Perin sabia bem encontrar as palavras certas para explicar a situação:

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sábado, 4 de março de 2023

As nossas almas solitárias (excerto 19) - C. GONÇALVES

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Estou na cozinha a preparar o leite da noite, que bebem sempre antes de dormir, e ouço o rebuliço que vai na zona dos quartos. Os risos soltos da Carolina enchem o ar e os passos do Martim ouvem-se no corredor. Olho para as horas e percebo que está na hora de se deitarem. Avanço em direcção às vozes com passos lentos, para que não me vejam chegar. No chão do quarto cor-de-rosa, o Salvador está sentado com um livro na mão; parece que conta uma história às bonecas que estão encostadas ao móvel; a Carolina está sentada ao seu lado. Nesse instante, o Martim vem com passos apressados do seu quarto, carregado com caixas de jogos, provavelmente para lhe mostrar. É no mínimo, um quadro insólito e não consigo evitar um sorriso. Encosto a cabeça à ombreira e olho para ele com ternura. O que se está aqui a passar? Pergunto-me se isto será bom para os miúdos. Ou até para mim. A presença de um homem nesta casa, é qualquer coisa de invulgar. Estranho e agradável ao mesmo tempo. Nesse momento, os seus olhos levantam para mim, e quando retoma a leitura, sorri com um ar de puro agrado.

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quinta-feira, 2 de março de 2023

santo dois de julho (excerto) - FLÁVIO ULHOA COELHO

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Dos inúmeros santos que povoam o dia dois de julho, o Thio Therezo tem lá os seus prediletos. Dois na realidade, um dos tantos santos chamados de Estevão e o santo Bernardino Realino.
Dizem, mas em se tratando de santos são coisas difíceis de se comprovar, que o Santo Estevão realizou inúmeros milagres. Dizem também que um desses milagres, dubiamente fundamentado e polemicamente divulgado, teria sido cometido contra a sua própria gente, a muitos uma heresia ao santo comportamento do Estevão.
Quando soube disso, Thio Therezo que nasceu no mesmo dia em que, séculos antes, tinha morrido o então príncipe moldavo Estevão III não se aquietou até conseguir entender esse disparate. Afinal, esse príncipe, por conta da resistência aos ferozes ataques do Império Otomano, fora canonizado pela Igreja Ortodoxa Romena e é, até hoje, considerado o maior moldavo de todos os tempos. Príncipe, santo, que importa? Importa a verdade da história e o Thio bem sabe disso.

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