quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

IN-FINITA APRESENTA... A PAIXÃO - ESCRITOS E DEMÊNCIAS

Por vezes o melhor que podemos fazer por um livro, e seu autor, é dar a conhecer a primeira impressão. Assim sendo, aqui fica o prefácio que Armando Nascimento Rosa escreveu para o livro, A PAIXÃO - ESCRITOS E DEMÊNCIAS, de João Dordio. 

Paixão da Poesia

«O ‘logos’ – palavra e razão – divide-se pela poesia, que é a palavra, mas irracional. É, na realidade, a palavra posta ao serviço da embriaguez. E na embriaguez o homem é já outra coisa mais que o homem; alguém vem habitar o seu corpo; alguém possui a sua mente e move a sua língua; alguém o tiraniza. Na embriaguez o homem dorme, cessou preguiçosamente a sua vigília e já não se afadiga na sua esperança racional. Não só se conforma com as sombras da parede da caverna, mas, ultrapassando a sua sentença, cria sombras novas e chega inclusive a falar delas e com elas. Atraiçoa a razão usando o seu veículo, a palavra, para deixar que por ela falem as sombras, para fazer dela a forma do delírio.»
(María Zambrano, Filosofia e Poesia)

Pede-me o João Dordio algumas palavras para servirem de introdução a este seu novo volume de poesia em prosa, e eu aceitei fazê-lo, mas são palavras supérfluas, sei-o bem, uma vez que estes seus escritos falam por si sem a necessidade de mediação junto aos leitores que se cativarem, sintonizados, pela sua «incontinência verbal», assim designada, irónica e objectivamente, pela voz poética que aqui fala, intérmina e insone. «Esta noite há uma incontinência verbal na minha escrita. É mais uma noite de insónia... sempre necessária para eu voltar para aqui. Sempre para aqui! Para escrever!» (JD)
Para Dordio, a escrita mostra-se como um acto contínuo de paixão; palavra primeira do título deste livro, à qual regressarei mais adiante. Dordio inventa a personagem de um Poeta, seu alter ego literário, e, estando oculto e exposto por esta sua intensa persona, ela proporciona-lhe livre curso a uma litania perpétua, um êxtase com a própria ideia de poema a haver que, em embriaguez logorrágica, se derrama como o vinho dionisíaco; esse mesmo vinho que alimenta e atordoa a personagem do Poeta que connosco comunica, incessante, pela pulsão da escrita.
Uma escrita que mantém um diálogo de eros, mesmo que a voz interlocutora não seja escutada pelo leitor, mas apenas adivinhada, na intimidade que partilha com a personagem do Poeta. Dordio dialoga em permanência nestes escritos com a entidade a que Carl Gustav Jung, psicólogo inspirado pela arte dos poetas, chamou pelo nome latino de anima; essa figura feminina, metafórica e mítica, que projectamos interna e exteriormente nos nossos relacionamentos passionais e que está muito activa em toda a psique criativa, dinamizando-a (verbo ele próprio filho da anima), como musa não já proveniente do Olimpo de outrora, mas antes da vida interior dos poetas, do seu inconsciente. Não é por acaso que a psicologia junguiana nos diz que a morada dos deuses antigos passou a ser, a partir da modernidade, o inconsciente, que também sonha acordado a linguagem dos mitos.
E há deuses nesta escrita, várias vezes nomeados, que instigam a palavra poética, e nos quais o sujeito da escrita reconhece o papel fundador da imaginação, bem como a persistência da alma (a anima) e da paixão que sustentam a escrita.
O peso dos meus livros leva o peso da minha paixão. Talvez por isso, venhas comigo em cada letra, em cada frase, em tudo o que até os deuses sonham! Porque eles também sonham! Escrevi que sim! Li que sim! Imaginei que sim!
Os deuses sonharam, um dia, com o peso dos livros dos poetas. Bem calculado, logo perceberam que era assim que os iriam fazer voar. Com alma! Com paixão!
O voo das asas é uma imagem recorrente nestes escritos de Dordio, aplicado ao voar dos poetas: «Só os poetas voam por dentro». Isto dá mesmo azo a uma curiosa parábola que conjuga a imagem material do pote (cujo conteúdo se adivinha pleno) com a natureza dos poetas, a presença dos pássaros, a imaginação que concebeu os potes e, em suma, o lugar originário e primordial desta mesma imaginação genesíaca: a infância. Como se o autor nos quisesse recordar que a chave da criação poética radica na capacidade de conservar viva em nós, ao longo da vida, a criança aventurosa e sonhadora que começámos por ser no alvor da nossa individualidade vivente.
O pote das asas tem uma tampa que fecha mal e ficou aberto. A cada duas asas que se soltarem, vive mais um pássaro. Os poetas parece que escolheram também duas, mas são daquelas para colocar por dentro. São potes apenas parecidos com os outros por fora, mas que são muito diferentes no seu interior.
O voo dos poetas não atrapalha o dos pássaros. E quando eu abrir a gaiola do teatro para ir buscar mais potes, uns irão voar por fora e outros irão voar por dentro. Uns irão levantar voo e vento e muito vento... outros mais folhas e mais letras.
Os potes da minha imaginação fizeram-me criança a vida toda.
E voltemos à paixão que tutela este volume; palavra crucial no entendimento do gesto poético. Na sua raiz grega, paixão deriva de pathos, termo de assinalável riqueza semântica. Pathos é sofrimento e dor, isto é, verbaliza tudo o que é fonte daquilo que nos afecta de algum modo, que nos transtorna e transforma, que nos (co)move e modifica. Na sua vertente médica e fisiológica, gera a palavra patologia e seus derivados; na sua vertente de experiência psicológica, frutifica em simpatia, antipatia ou apatia; e na sua vasta implicação existencial e filosófica, em confronto com o logos enquanto sinónimo de razão (de que fala Zambrano, com filosófica claridade, na epígrafe escolhida), pathos deu à luz a palavra paixão, essa doença iluminada da psique que arrebata o corpo e os estados da consciência a que chamamos mente e espírito.
A paixão, como bem o sabemos, pode ser, na desrazão que a move, um lugar demencial, e talvez por isso Dordio adicione a palavra ‘demências’ à expressão que dá título aos escritos deste livro, como se nesse gesto legitimasse a voz que dita estas torrentes de palavras; uma vez que é o próprio Poeta a dizer-se despojado dessa mesma mente que, ainda assim, nos fala de forma inteligível. Identifico, pois, esta demência, declinada no plural, com a condição turbulenta do caos que gera o cosmos; visto que a palavra do poema é aquela capaz de dar voz ao delírio (demens), resultando enfim numa forma de conhecimento (sapiens). Um conhecimento que é alma, corpo e escrita, numa fusão das várias frequências com que a vibração múltipla das coisas, que existem e coexistem connosco, se manifesta.
Seja aqui dada a palavra final a João Dordio, na sua indagação que pergunta por esta peculiar paixão da poesia, capaz de envolver, num só amplexo, os sentimentos e os corpos que os experienciam, a tinta e o papel que tornam em matéria legível as palavras com que traduzimos em verbo os nossos sonhos. E desta erótica poética, nasce essa criança admirável, ruidosa e irrequieta, chamada poema.
- Mas que paixão é esta?!
Esta é a paixão dos poetas! Um tormento de oxigénio! Um inferno de saudades! Um vulcão de sentimentos acumulados e tantas vezes reprimidos, mas que explodem sempre que os corpos se encontram!... ou, simplesmente quando a caneta diz ao papel para a deixar entrar no livro e espalhar tudo pelas suas linhas sem pudores...
Nasce depois o Poema...
O poema que grita! O poema que esperneia!
Lisboa, 12/12/2018
Armando Nascimento Rosa
(dramaturgo, ensaísta e criador musical, professor na Escola Superior
de Teatro e Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

IN-FINITA APRESENTA... COMO FAZER AMOR

Por vezes o melhor que podemos fazer por um livro, e seu autor, é dar a conhecer a primeira impressão. Assim sendo, aqui fica o prefácio que Susana Nunes escreveu para o livro, COMO FAZER AMOR, de Alberto Cuddel. 

“A maior solidão é a do ser que não ama
A maior solidão é a do ser que se ausenta
Que se defende.
Que se recusa a participar na vida humana”
Vinícius de Morais

Começo por dizer que foi uma honra e uma surpresa ter sido convidada a prefaciar este livro de Alberto Cuddel, sendo que este momento será um completo prazer que guardarei em mim para a vida sempre na minha memória. “Como Fazer Amor” é um livro que nos convida a todos, para um passeio poético, enamorado de imagens sensíveis, onde uma imaginária tapeçaria vermelha se estende e personifica o des-filar elegante de todas as cores com que se pode vestir o mais sublime dos sentimentos... O Amor. O autor reveste-o de véus sensuais, translúcidos e chega até a materializar-lhes corpos que ora sustentam o subtil de um amor quase platónico, quase intocável, enaltecendo-lhe o sonho, ora tocam o rubro dos mais apimentados e exacerbados desejos da paixão. “Como Fazer Amor” é uma viagem para além das margens, para além dos muros preconceituosos, para além das barreiras dos pudores que limitam e castram as asas necessárias à sua explosão no querer maior, de todos os seus sentires que se exigem absolutos. A poesia de Alberto Cuddel envolve-se e espraia-se por todas as partes do corpo, por todas as reentrâncias do pensamento labiríntico e desta forma, coloca-nos nos palcos superiores dos sentimentos, onde as cenas de amor se dramatizam intensas, arrancadas às entranhas, vestidas de pele com arfares de sexos, projectadas em cenários espontâneos e despudorados. O poeta cria e recria o que lhe vai por dentro da alma, agarrando-se a um estado natural,no mais autêntico escancarar dos preliminares que lhe estão subjacentes, causando no leitor as sensações dos desejos mais intimistas. O amor escrito e assim o afirmam, vários ensaístas, passou a ser neste século, lugar gasto, banalizado muitas vezes por dentro dos lugares comuns, repetições de versos iguais, momentos sem projectos de inovação. De facto, assim é, e por conseguinte, há que contrariar esta tendência e deixar fluir cada vez mais o líquido das palavras, para que corram livres nos rios das veias e se cubram de todos os cheiros, de todas as mais humanas naturezas. Alberto Cuddel e nomeadamente neste livro “Como Fazer Amor”, não se oculta da verdade, não se separa nunca da sua identidade, revelando sempre uma profundidade extraordinária no contexto em que se assume, perante a palavra rasgada na arte da poesia... Posso para tal referir o poema “Ah... A Vida”, em que o poeta faz uma exaltação à Mulher enquanto figura única para a motivação da agradável existência terrena, onde a afirmação do amor altruísta se revela no quotidiano em que se desenvolve sem se vangloriar no alarido ou na altivez, numa generosidade de silêncios. Poema “Não Jures”, na urgência do estado do tempo presente do amor, como única importância, sem condições, sem questões sobre o passado. Poema “Filosofando o Amor”, onde o poeta interpela a sua existência, a liberdade de ser livre, o seu conhecimento e construção enquanto Homem, onde busca fundamentações para a importância do existir com valores de substância. Poema “As Borboletas” onde o Amor é ternura, é candura e sonho bucólico na harmonia da beleza. Poema “Amor Doentio” onde enaltece a dor que faz colar ao gozo apaixonado. Na junção dos dois sentires, o do Amor e o do Ódio, numa doença bendi ta e consentida, trespassada pelo perpétuo amor e ao mesmo tempo, pela sua finitude de morte. Poema “Noite Ordinária” onde o autor desvenda o fervoroso despudor do sexo desnorteado e animalesco, arrebatado aos sentires insanos na loucura do Amor exposto.
Enfim, estamos perante um livro de poesia intenso e desgovernado nos sabores do amor e, no entanto, surpreendentemente inocente e sereno como também tantas vezes o amor é. Alberto Cuddel despede-se nestas páginas poéticas com requinte, mas não sem antes dissertar de uma forma inovadora, sobre o seu estar na sua profissão, o que confere ao livro, um final magnífico muito nobre. Um livro para ler calmamente e para saborear momentos de vida que afinal é e será de todos nós.
Susana Nunes
Autora de: “Na Pele da Palavra”

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

IN-FINITA APRESENTA... VERSOS & CLIQUES: INSTANTES

Por vezes o melhor que podemos fazer por um livro, e seu autor, é dar a conhecer a primeira impressão. Assim sendo, aqui fica o prefácio que Andréa Mascarenhas escreveu para o livro, VERSOS & CLIQUES: INSTANTES, de Anita Santana


Cliques de uma poética mais que visual

A produção de imagens jamais é gratuita[1]


O livro de estreia da autora baiana, Anita Santana, intitulado Versos & Cliques: instantes, apresenta ao público leitor um encontro bem realizado entre fotografia e palavra poética, duas artes que provocam estados de fruição diferentes em quem se permite mergulhar em universos artísticos.
Cada poema e foto parece se organizar com um firme propósito: captar flashes de instante presentes no cotidiano, na vida que se transmuta em nosso tão comum quanto extraordinário dia a dia.
Nas páginas do livro que nos oferece à leitura, Anita cria imagens onde podemos encontrar outras belezas arquitetadas em meio aos seus versos: memórias, natureza, filosofia, música, muitas cores, temáticas sociais, traços provenientes de culturas orais, entre outros elementos.
Mas, uma imagem se destaca no conjunto da obra: a que se ocupa em nos dar a ver/sentir um sertão outro, diferente daquele comumente pitado ao longe, no mais das vezes distorcido/estereotipado, por quem não pisa o chão e nem sente o aroma da terra.
Lemos/sentimos, aqui, um sertão úmido, banhado por chuvas e prantos, um lócus verde que nem sempre se perde na ausência de cores, mas que pode nos proporcionar ‘um se perder’ por outras abundâncias: entre pássaros, réstias e sombras, silêncios orquestrados em oração/procissão. Eis uma pequena amostra de como a autora maneja muito bem sua escrita imagética.
O forte aspecto visual que se forma entre palavras e imagens parece comunicar uma poética que vai além das letras e das fotografias. Temos, diante dos olhos, um objeto poético diferente, que se concretiza em movimento dialógico, que capta o real ao tempo que nos desafia na tarefa de decifrá-lo.
Neste primeiro livro da autora, já se pode notar um exercício de escrita e de experimentação literária que (se) constrói caminhos. Ao passear pela obra com Anita, nas trilhas de seus caminhos/palavras, de formas diversas atravessamos e somos atravessados por pensamentos e reflexões deveras pertinentes em qualquer tempo.
Nos poemas de saída (ou de entrada) deixamos a porta aberta para um exercício de leitura plural, capaz de se refazer a cada leitora/leitor e, com isso, passamos o bastão da ação leitora ao porvir, ato importante em pleno século XXI, quando vemos direitos duramente conquistados serem ameaçados de não mais existir. Mas, alimentados por fluxos poéticos, ainda podemos vivenciar/fruir gentes e livros, para seguirmos humanamente irmanados rumo a novos sonhos e versos.

Andréa Mascarenhas,
(escritora e Docente da área de Literatura - UNEB.
Doutora em Comunicação e Semiótica - PUC).
Salvador/BA, primavera de 2018.


[1] AUMONT, Jacques. A imagem. Tradução de Estela Abreu e Cláudio Santoro. 6. ed. Campinas, São Paulo: Papirus, 2001, p. 78 (Col. Ofício de Arte e Forma).

Saibam mais da autora e do livro neste link

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

IN-FINITA APRESENTA... DEIXEI O CORAÇÃO FALAR

Por vezes o melhor que podemos fazer por um livro, e seu autor, é dar a conhecer a primeira impressão. Assim sendo, aqui fica o prefácio que Maria Antonieta Oliveira escreveu para o livro, DEIXEI FALAR O CORAÇÃO, de Anabela Santos.

Prefaciar um livro raramente é tarefa fácil e, quando esse livro é a realização de um sonho de alguém, que debitou em poesia, muitas passagens da sua vida, vida essa que desconhecemos na totalidade, a tarefa, essa tal tarefa, tem vários rumos a seguir, eu, segui o que podeis ler neste meu mini prefácio.

Anabela, é uma mulher-menina com muitos sonhos desfeitos e uma vida vivida d recordações e anseios.

A menina de laçarotes e cabelo ao vento, correndo, rindo e saltando, é visita assídua nestas suas recordações, em que os caminhos floridos se cruzam neste seu destino poético.

A saudade é transcrita entre sonhos de menina e vivências de mulher e é manifestada em muitos dos seus poemas. “Sonhar é viver / Deixar acontecer” palavras de Anabela inseridas no seu poema Felicidade.

Encontros e desencontros. Amores e desamores.

Revolta de solidão. A tal solidão acompanhada, que muitos de nós sentimos e não a sabemos descrever, aqui neste livro, a Anabela, deixa em poesia essa sua relação com a solidão acompanhada. O poeta, é por natureza um solitário, mesmo que à sua volta existam milhões de pessoas.

A liberdade, a necessidade de ser livre, de voar, viajar nas asas de uma borboleta e finalmente conseguir ser feliz. Um grito à procura da felicidade.

Para o leitor mais distraído, nada como lembrar o que o grande Fernando Pessoa, disse:
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a  fingir que é dor
A dor que deveras sente.

Isto para dizer que nem sempre o que escrevemos corresponde ao nosso verdadeiro eu, ao nosso verdadeiro dia-a-dia, podemo-nos inspirar em algo ou alguém, num local, num instante, num momento, numa qualquer realidade que pode não ser a nossa.
A Anabela decerto não fugirá a esta regra, pelo que este seu livro para além de um desabafo, de uma libertação de sentires, poderá ser também a constatação do mundo que a rodeia.

Parabéns Anabela!

Maria Antonieta Oliveira

Maria Antonieta Oliveira é autora, tem 5 livros publicados e é coordenadora da Colecção Entre Versos.


Colecção Entre Versos (7 autores).
Número I – Deixei O Meu Coração Falar – Anabela Santos
Lançamento dia 13 de janeiro às 15:30 no Palácio Baldaya
Edição Limitada.

sábado, 5 de janeiro de 2019

IN-FINITA APRESENTA... POEMAS DE MEL E LIMÃO


Por vezes o melhor que podemos fazer por um livro, e seu autor, é dar a conhecer a primeira impressão. Assim sendo, aqui fica o prefácio que Célia Maria Magueijo escreveu para o livro, POEMAS DE MEL E LIMÃO, de Vítor Costeira.

Esta é uma obra onde o autor nos brinda com a sua essência, sempre numa constante partilha pelo gosto das palavras sábias e amigas.

Os poemas de mel e limão sugestionam o leitor para algo, como o título nos faz crer, por vezes ternurento e outras acerbo. É nesta mescla de sabores, de latitudes mais ou menos próximas onde podemos reconhecer a beleza das palavras sempre com uma paixão que arde sem se ver, mas que se sente a cada frase.

Cada poema é uma ode ao amor.

Convido-vos a, durante a leitura, saborearem cada palavra como se degustassem o doce mais apetecível, juntem um pouco do sabor mais acre e, apurando os sentidos, uma sensação de ternura irá evidenciar-se com um sorriso a cada palavra, cada frase, cada poema. Os dois indissociáveis conteúdos que formam o imaginário do autor.

Nesta obra, Poemas de Mel e Limão, encontramos um ser maior que existe para lá de nós, manifestando-se através de uma leitura profunda, convidando cada um a imergir em si mesmo, na tentativa de descobrir onde reside o Mel e o Limão, onde podemos melhorar a cada dia, reconhecendo que podemos singularmente sentir um profundo agradecimento para com o autor por este magnifico exemplo de transformar, de fundir, duas formas em contraste em uma só escrita.

A escrita é divindade poderosa e vincada nas letras desta obra sublime.

O autor dilacerou a pele e deu-nos um dicionário dos verbos Ser, Amar, Existir, Agradecer.

Citando, Antoine de Saint- Exupéry, “… Não existe nada igual ao sabor do pão partilhado”.

Obrigada Vítor Costeira.

Célia Maria Magueijo


quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

IN-FINITA DIVULGA... A MEMÓRIA É UM PEIXE FORA D'ÁGUA


A densidade dramática em A memória é um peixe fora d’água, de Patrícia Porto.

O novo livro de Patrícia Porto é um livro de contos. Editado pela Penalux neste ano de 2018, A memória é um peixe fora d’água apresenta quadros corriqueiros que ganham densidade dramática. O livro é dividido em três partes chamadas aqui de tombos (Os ossos no porão – 19 contos, Os crônicos – 5 contos e Fogaréu no céu, exílio na terra – 10 contos), totalizando 34 contos curtos, mas que apresentam a tensão trágica própria do drama. E não poderia faltar a referência aos mitos em vários contos. Massaud Moisés em seu Dicionário de Termos Literários, assim disse: “No tocante à linguagem, o conto prefere a concisão à prolixidade, a concentração de efeitos à dispersão”. Temos nesses contos admiráveis a concentração de efeitos literários e complexos que adentram nas camadas mais profundas de nossa individualidade, fazendo o diálogo entre os elementos exteriores e interiores. Os contos ganham densidade psicológica num curto espaço de tempo, eis a estratégia narrativa desta grandiosa escritora Patrícia Porto.

No conto “Coturno 36”, temos a figura da personagem que é uma moça que quer usar um coturno 36 e pede ao padrasto esta incumbência de conseguir para ela este objeto de cunho masculino, já que no Dicionário Houaiss se diz que o coturno é uma bota de soldado. O machismo do pai mostra o preconceito com relação a este desejo da moça. E mais uma vez aqui a referência ao teatro se faz presente, pois num dos significados de coturno no mesmo Dicionário se revela o seu uso antigamente por atores nas representações, especialmente nas tragédias. Esse objeto mostra uma imponência de quem o usa, figuradamente. A personagem demonstra seu poder e força ao se comparar à figura do homem. É uma mulher fálica que quer se sobressair perante o machismo do padrasto. O final é surpreendente, deixando-nos impactados diante do poder desta moça imponente. O padrasto fala: “E tu é homem? Vai usar coturno pra quê?” Com seu dinamismo masculino-feminino, a moça resolve a questão pela agressividade e violência. No sentido figurado, o uso do coturno representa nobreza, muita importância e imponência.

No conto “Ícaro”, mais uma vez a presença da densidade dramática, típica da tragédia, mas que é iluminada pela força figurativa desses ricos e profundos contos. A personagem diz: “Ícaro morreu aos sete meses dentro da minha barriga”.  E continua: “Fiquei anos me odiando pela escolha desastrosa do nome”. A ideia de culpa é uma dos elementos desse conto magistral. Ícaro queria voar além, até o sol, e, por isso, ganha o abalo de sua queda trágica. As imagens da vida e morte, nascimento e queda, comparecem neste belíssimo conto. Aqui os símbolos da subida e da descida, da anábase e da catábase se espelham paradoxalmente. A ensaísta Danielle Perin Rocha Pitta, no texto crítico “Iniciação à teoria do imaginário de Gilbert Durand”, assim disse sobre este importante teórico das estruturas antropológicas do imaginário com relação aos símbolos metamorfos: “São aqueles relativos à experiência dolorosa da infância. A queda tem a ver com o medo, a dor, a vertigem, o castigo (Ícaro). Mas a queda frequentemente é uma queda moral (pelo menos no Ocidente) e tem então a ver com a carne, o ventre digestivo e o ventre sexual e daí, com o intestino, o esgoto, o labirinto, e o cair-se no abismo, e o abismo pode ser tentação.” O gerar a vida tem cheiro de morte e a ideia da culpabilidade materna se apresenta neste conto dramático e simbólico.

No conto “O método”, temos a tensão entre dois seres, um casal, homem e mulher. Encontramos a reciprocidade e o paralelismo, a mesma moeda com que se paga na relação entre ambos. Com seres tensos como numa corda esticada para os dois lados, vemos a tão intrigante “guerra dos sexos”. Ele se apresenta como desinteressado pelos gostos e assuntos da mulher. A incomunicabilidade dele forma uma teia de aranha entre os dois, minando o relacionamento conturbado: “Claro que ele não acredita em nada do que eu digo. Nem eu acredito em nada do que ele diz”. A palavra “paz” cria um clima denso, na verdade. Há uma reversibilidade irônica, pois, na verdade, não é a paz que impera no casal, mas sim o conflito. Ele se caracteriza pela secura, sem amor, até mesmo no sexo, que se tornou uma coisa mecânica, por obrigação dele. Ele tem todo um método. E por isto, ela vai tentar reconfigurar o espaço deles e não consegue. Ela tenta redesenhar o relacionamento pelos objetos da casa, mas não se sente confortável e tudo volta para o mesmo lugar. Ela consegue criar seu próprio método, pois não consegue se adaptar ao método dele. Por isto ela flerta com a literatura, com a linguagem simbólica, para que a realidade não a deixe cair por terra. Enquanto ela é sentimento, ele é frieza. A tensão está configurada e ela tenta driblá-la com a criatividade. A solidão, o vazio e a incomunicabilidade se perdem no tempo da eternidade. Ela escreve poesia para matar o tempo. Ao contrário do amor, o desamor ganha força: “O amor que não existia dentro do caderno. Nem mesmo o amor menor. O desamor era tudo”.

Em “O nascimento de Vênus”, encontramos o contraste entre o trágico e o cômico, mas não deixando de lado o questionamento da personagem na sua crença ao esoterismo, à astrologia. No mapa astral, a personagem convive durante anos com o ascendente errado e após o descobrimento destas veredas “reais” tem um choque, fazendo-a entrar em conflito com relação aos seus apegos ao misticismo e, num tom, de niilismo, ela questiona a crença a partir do vazio e do desapego: “Descobri desta maneira um tanto pitoresca o quanto nos apegamos às coisas, as mais incrédulas, as menos questionadas, creio”. Paradoxalmente, no final das frases, ela utiliza uma ironia ácida, a palavra “creio”, que, na verdade, revela a descrença da personagem com relação à vida e seus percalços. A tensão aqui não ocorre entre dois seres, mas no interior dúbio e ambíguo da personagem que tem uma referência errada que quebra com seus padrões de verdade. Há uma contradição entre o que ela é, sua personalidade, sua persona, com relação à máscara trágica, sua aparência. Questiona o ascendente por não ter a ver com ela. A astróloga conta o mito de Afrodite para ela e a questionadora recoloca o mito de acordo com seu ponto de vista, havendo um jogo psicológico tenso e denso em sua persona. A ressignificação do mito por Patrícia Porto é excepcional neste conto, ganhando toda sua força dramática: “O caminho da verdade é a dialética”. Assim, temos a personagem e seus fantasmas, suas questões. Mas, por outro lado, a personagem conclui que deve haver uma boa dose de “fantasia” na nossa vida para que o real não nos choque com sua descrença. No final do conto, de forma surpreendente ela busca a ciência, o ponderável, “o equilíbrio libriano”, por assim dizer. Como não nos lembrarmos aqui do conto “A cartomante”, de Machado de Assis. Aqui a referência é marcante.

No conto que fecha o livro, “A gata amarela”, temos a imagem paradoxal da violência e proteção, ao mesmo tempo, na imagem de uma gata prenha que tem os seus filhotes. Aqui, temos um conto dentro do conto, criando um grande impacto literário: “Quando nasci fui adotada por minha avó, a mãe de todos”. Num processo de seleção, a personagem vai contar aquilo que foi mais importante na sua infância, o que mais a impactou, pois o conto conciso revela uma grande concentração conteudística que se reconfigura em várias chaves de interpretação, criando-se assim um quadro vivo e dinâmico em toda sua expressão que navega nos múltiplos espelhos das questões que nos são mais urgentes. O filhote, o que é rejeitado pela mãe é que é acolhido pela menina que se surpreende com o fim trágico do pobre animalzinho: “Digo isto pensando que sou filha da sorte: sobrevivi para contar esses sonhos, delírios, memórias, causos, esses ossos todos da gata amarela. Guardem aí nos porões dessas casas barulhentas”.

Portanto, Patrícia Porto consegue aliar a imagem da extensão de sua profundidade poética a textos curtos que nos têm muito a dizer com seus jogos de espelhamentos, paralelismos, contrastes, ironia, numa linguagem rica em significados que vão deixar marcas nos leitores atentos. A força da dramaticidade densa de seus textos reconfigura a potência do conto que ganha ares de relevância em meio ao caos da realidade. A persona e a máscara se densificam nas finas letras desta escritora que tem muita complexidade em seus contos concentrados que revelam a dimensão do mito e da realidade. Ela une os dois num jogo tenso, mostrando que a literatura tem muito a dizer para seus leitores. Que ela ganhe cada vez mais receptores, ávidos por sua primorosa literatura que arranca do abismal a sua potência de arte verdadeira.

ALEXANDRA VIEIRA DE ALMEIDA

Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela editora Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou o livro “Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux.
Contato: alealmeida76@gmail.com

“A memória é um peixe fora d’água”, contos. 
Autora: Patrícia Porto 
Editora Penalux, 98 págs., R$ 36,00.
Disponível em:
E- mail: vendas@editorapenalux.com.br

Fonte: