segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Cangalha do Vento (excerto VI) - LUIZ EUDES

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Dona Anna, a sua bênção,

A minha intenção em escrever estas linhas para a senhora é para dar-lhe a boa notícia de que irá ganhar o seu primeiro neto e para pedir para a senhora rezar, para Nossa Senhora do Bom Parto dar uma boa hora a sua filha Maria.
Como a senhora sabe, não tenho boas lembranças de partos. Minha saudosa mãe morreu nessa hora, quando trazia ao mundo o seu décimo filho.
Dona Anna, a coisa aqui não está boa. Os anos estão de chumbo, a barra está pesada18. A metalúrgica onde eu trabalho pertence a um deputado e estão a falar por aqui que ele está envolvido com os comunistas. Todos nós funcionários estamos a ser vigiados. Todas as vezes que eu vou para casa, sinto como se alguém me seguisse. Nada tenho a ver com isto e não quero pagar o preço que um amigo meu
pagou: nós íamos a sair do trabalho quando dois homens o pegaram, jogaram no banco de trás de um carro escuro e o levaram, ainda não se sabe para onde. Deus me livre que eu não quero isto para mim!

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quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Cangalha do Vento (excerto V) - LUIZ EUDES

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Levaria consigo uma lembrança viva daquela grande cidade. Rica, frenética, que parece não ter fim. A urbe o acolheu quando fugira da terrível seca que assolara o Junco em 1961. Tinha dezoito anos e um caminhão de sonhos. Foi uma viagem dura, dez dias sacolejando em um pau de arara, cheio de incertezas e esperanças pueris.
Dias antes estivera com o irmão. Antes de partir, encontraram-se numa lanchonete próxima à Avenida Ipiranga. O irmão viera despedir-se. Israel era um homem orgulhoso, vaidoso e boémio. Conhecera toda a rumorosa noite paulistana. Metera-se com sindicatos. Estava ali para falar e despedir-se do irmão. Com os olhos marejados dividiram uma cerveja.
– Penso em escrever uma carta para dona Anna, minha sogra, dizendo que vou voltar – avisou José Paulo.
Israel sorriu brevemente.
– Então, manda-se daqui mesmo?
– É possível, meu irmão. Alguma coisa me diz para voltar. Sinto saudade do Junco... Sinto falta das farras: diferentes das daqui. Também lá não vai ter polícia a perseguir-nos.
– Perseguem-te muito? - perguntou José Paulo, apontando para uma baratinha que passava ao longe.
– Sim, mas isso não é nada. Tem gente que sumiu. Vou voltar para a Bahia. Para cá volto talvez, mas só quando essa diabrura acabar.

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sexta-feira, 20 de novembro de 2020

Cangalha do Vento (excerto IV) - LUIZ EUDES

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José Paulo vivia em pensamentos, em conflitos que se dirigiam aos seus sentimentos recônditos. Embora tivesse convicção do que queria, um sentimento de estranheza tomava-o. Olhava as luzes da cidade, os prédios do centro velho, enquanto sacolejava num coletivo da prefeitura de São Paulo, quase melancólico. Seus pensamentos iam até ao Junco, ao pau de arara que buscara por transporte; depois de guardar o dinheiro que conseguira no cultivo de feijão, no trato de mandioca, na despalha de milho. Lembrava-se de todas as coisas vividas há muito tempo. Do pai Aristeu e da mãe, dona Tereza. Lembrava com um sentimento distante, mas nítido, da noite da morte da mãe. De quando correra para buscar auxílio da velha parteira Salustiana e, depois, de vê-la enxugando as mãos com pesar quando soubera que a mãe havia morrido. As lembranças abrolhavam como um cardume à flor da água. Lembrou do dia do velório, da chuva que caía, e até mesmo do rosto distante do pai, intrigado com aquele entrar e sair da casa. Era quase uma afronta aquele abrir e fechar de portas. Parecia que o mundo estava em obras. Menos Aristeu, o seu pai viúvo, que era quem mais precisava de reformas, mas não naquele momento. Queria apenas o direito de ficar ali, quieto, velando o descanso eterno da sua companheira de tantos anos e momentos não tão fáceis. Aristeu queria conquistar o direito de chegar a algum lugar, mas sem ter de ir. Queria cultivar esse pecado. Essa preguiça de não querer nem mesmo respirar. E José agora podia ver os olhos do velho. Podia ver aquele dia e outros distantes como uma história que um sopro levou. Antes de descer do ónibus, José dispersou os pensamentos. Agora teria que tratar de outro assunto. Era final da década de 1960. Ele entrou, encheu um copo com água, sentou-se e declarou com uma calma distante à mulher que observava com curiosidade: 
– Maria, vamos arrumar nossas coisas e voltar para a Bahia. O Junco é o nosso lugar. Lá nosso filho nascerá.

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domingo, 15 de novembro de 2020

Cangalha do Vento (excerto III) - LUIZ EUDES

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Depois de tantos anos, lá estava a mulher, diante dos seus olhos de homem duro, respirando com uma tranquilidade mórbida. Eles eram fortes. Juntos trabalharam e amaram-se em noites quentes, mais um filho e outro e outro; um filho é uma boca, mas também são braços para o lavor. Já havia enviado ao mundo nove e agora o décimo parecia ser demais. Aristeu engoliu uma saliva grossa quando os olhos da mulher tornaram-se oblíquos, de um brilho febril de quem vê a face irredutível da morte.

Era uma noite densa, de nuvens carregadas e ventos frios assoviavam na vegetação criando a sensação de assombrações que ali se revelavam. Aristeu implorava à parteira Salustiana, que fora trazida às pressas pelo filho pequeno, José Paulo. O menino observou a velha parteira que fuçava no meio de Dona Tereza com um pesar na expressão. Mas não havia mais vida ali, além do pequeno ser de bochechas cheias, saudável, que havia deixado o corpo moribundo da pobre mãe e agora chorava diante do mundo estranho ao qual era apresentado. Era uma menina. Com a voz embargada o velho Aristeu disse: Vai chamar-se Tereza, como a mãe – e silenciou tão acentuadamente que a recém-nascida também parou de chorar diante daquela estranheza.

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terça-feira, 10 de novembro de 2020

Cangalha do Vento (excerto II) - LUIZ EUDES

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Resultado: quinze anos consumidos entre a borracha e as índias e nenhuma vontade de voltar. Podia até sentir essa vontade, mas era inútil, porque todas as economias eram consumidas nas noites de farra. Um dia, viajando de barco para outro seringal, aconteceu um acidente que mudou o rumo da sua vida: a companhia de navegação, falida, fez afundar criminosamente o barco cheio de passageiros, para receber o dinheiro do seguro. Aristeu não só se salvou, como salvou mais três vidas, três figurões da sociedade amazonense. Esse ato de bravura teve grande repercussão floresta afora e o povo o aclamou herói. Graças a isso, conseguiu a sua viagem de volta em primeira classe de barco e trem.

Desceu na Estação São Francisco, em Alagoinhas, e deu de cara com o seu amigo de infância, Sátiro Batista, que estava a trabalhar como tropeiro de burro. Pegou carona na tropa e, no dia seguinte, abraçou os seus parentes na aixa Funda.

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quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Cangalha do Vento (excerto I) - LUIZ EUDES

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Como haveria de viver por mais tempo o homem que tanto amara?! Não havia remédio contra a morte, a saudade era inútil, a ausência perene. Aristeu, o Galego, olhou languidamente a tarde que esmorecia no céu do Junco, onde filetes escarlates delineavam o céu. E morreu com a imagem de Tereza sorrindo para ele.

Muito antes, num ano distante, tivera quinze anos de idade, e prometeu a si mesmo que nunca mais apanharia do seu pai, caboclo rude, ignorante, e que não tinha compaixão em castigar os seus filhos.

Contando com a cumplicidade da sua irmã Maria, arrumou a mala de couro com algumas peças de roupa, farinha, rapadura e carne seca e ganhou a estrada, em direção do vizinho município de Água Fria.

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