sexta-feira, 24 de dezembro de 2021

Um dia acordamos e tudo é normal! – CARMEN LÚCIA DE QUEIROZ PIRES

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- querida como está sua cachorrinha?
- está muito grande, essa semana ela menstruou!
- oh! e ela tem idade para isso?
- sim! ela tem nove meses e irá fazer a cirurgia.
- cirurgia? cirurgia de quê?
- ela será castrada...
- castrada? por quê?
- tem no contrato dela de compra e venda...
- ela não poderá ter filhotinhos! o que você acha disso?
- não sei, não pensei a respeito disso
 
fiquei entorpecida! lembrei que me criei vendo animais, como galinhas e bois, sendo castrados para engordarem e serem comidos pelo homem.
 
era tudo tão normal...
 
lembrei das belas aves, aprisionadas nas gaiolas, cantando para o deleite de seus algozes, outras com suas asas cortadas para não mais voarem e serem cativas para o resto de suas vidas breves!
lembrei da escrava Isaura com sua boca amordaçada, para não falar o que seus donos não queriam ouvir.
lembrei das mulheres mutiladas para não sentirem o prazer no ato do amor.
lembrei do grito silencioso das mães separadas dos seus filhos, para darem leite aos filhos das sinhazinhas.
 
era tudo tão normal...
 
lembrei dos atuais milionários, cheios de dentes nas bocas, indo para o espaço. 
lembrei dos pedintes e imigrantes com seus cartazes nos semáforos do meu bairro: "tenho fome"
lembrei dos pobres de espírito que vivem da corrupção e da ladroagem
lembrei dos políticos e suas politicagens
 
parece ser tudo tão normal... 
 
lembrei da célebre frase: "os fins justificam os meios"
oh! Deus! não consigo achar nada normal!
voltei-me para inocência da minha interlocutora mirim, para a história de sua linda cachorrinha. 
fui dormir pensando e acordei pensando nelas.
na menina que ainda não pensa e na cachorrinha que ainda não sente.
para primeira: qual o sentido da vida? para a segunda qual a finalidade de sua vida?
ambas pegaram o trem no meio do caminho, não sabem para onde estão indo ou melhor para aonde estão sendo levadas.  
 
tudo é normal? o ser a serviço do ser? nós o que somos?
 
QUO VADIS DOMINE

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terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Caxica – CARLA DE SÀ MORAIS

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Foram sem dúvida as férias de verão mais espectaculares que ela viveu. Filipa desejou que elas nunca mais chegassem ao fim.

Naquele ano, os seus pais, sempre receosos pela sua saúde frágil, deixaram-na na Caxica, uma das fazendas de café do tio António, irmão mais novo do seu pai.

Quando se entrava na fazenda, era preciso percorrer cerca de 2km até se chegar à casa. A estrada, era em terra batida e ao longo dela e de cada lado, uma grande mata repleta de árvores e arbustos floridos e de animais que por vezes se surpreendia a passearem descontraídos.

Quando por fim se avistava a casa, era uma grande casa térrea, de estilo colonial e as suas paredes eram revestidas com mosaicos de cor alaranjada; tinha um terraço coberto por uma trepadeira de flores amarelas e o pátio era tão grande, que podia acolher mais de 20 automóveis. Tinha 12 quartos e 10 casas-de-banho, 1 grande sala de refeições e 2 salões enormes para as festas e recepções.

Na parte de trás, havia o equivalente a um bosque e uma parte dele tinha sido transformado em jardim. Uma grande mesa rectangular decorava este espaço, assim como gaiolas gigantes com pombas e pássaros de várias espécies, vários baloiços aqui e ali e até um coreto tinha. Mais afastado, estavam as capoeiras com galinhas, patos e perus, os currais com porcos, cabras e ovelhas e os estábulos com dois cavalos magníficos.

Para uma menina da cidade, que vivia numa casa dita normal, tudo aquilo era deslumbrante.

Mas o seu tio, não era só o dono e o gestor da Caxica, o seu tio era o enfermeiro voluntário que cuidava da saúde física e emocional, dentro das suas competências, de todos os trabalhadores, habitantes da fazenda, que eram seus empregados, que por sua vez, passavam a palavra a outros da região e arredores.

Os dias foram passando a brincar e tratar dos animais, a andar a cavalo com o rapaz da estrebaria, e baloiçar em todos os baloiços.

A comida era ótima e variada. O João, que era o mordomo e também o chefe cozinheiro, levava-a para a cozinha e deixava-a ajudá-lo nas coisas simples.

O que ela gostava mesmo, era de vê-lo fazer o pão com ovos que ele depois moldava em trança e era servido todos os dias ao pequeno-almoço, quentinho, com manteiga e doce de maracujá ou papaia, de manga ou ananás. Omeletes e ovos mexidos ou estrelados, com os ovos acabadinhos de pôr pelas galinhas, chouriço frito, e bifes, bolo de mandioca ou de milho. A mesa era farta e o pessoal doméstico também usufruía desta fartura.

A Francisca, era a sua camareira. Era doce e meiga.

Tinha começado a frequentar a escola há um tempo atrás, e já lia algumas frases. Ficou radiante quando viu os tantos livros coloridos da coleção ‘’Anita’’ que a Filipa tinha levado. O momento de ir para a cama, tornou-se festivo. Todas as noites, depois do banho, sentavam-se as duas no chão a lerem todas aquelas estórias. Houve mesmo uma vez que adormeceram as duas, uma contra a outra até ao dia seguinte. Foi uma grande risada e foi assim também que veio a ideia de pedir ao tio António se deixava dormir a Francisca no mesmo quarto que ela; pedido que foi aceite.

Naquela fazenda, esquecia-se o rebuliço do quotidiano, a vida era vivida com sossego.

O tio António era uma pessoa pousada, calma e muito generosa. O mesmo não se podia dizer do seu capataz que estava sempre em desacordo com ele e de quem todos tinham muito medo; até a Filipa o evitava.

Uma semana antes das férias acabarem, o tio António levou a Filipa em todas as suas expedições pelas fazendas e pelas aldeias onde viviam os empregados que trabalhavam nas roças de café e apesar de só ter 10 anos, viu o humanismo no trato que o seu tio tinha com aqueles trabalhadores, que quase de Sol a Sol labutavam. Ouviu-o com frequência dizer que precisavam de se repousar um dia ou dois e quando eles se negavam por causa do medo que tinham do capataz, ouviu-o também dizer, que ele mesmo lhe falaria.

Este testemunho de altruísmo, de bondade e empatia, ficou para sempre gravado no espírito da Filipa, fazendo com que ela crescesse com verdadeiros valores e com respeito por todo o ser humano, independentemente da sua condição sociocultural.

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sábado, 18 de dezembro de 2021

Tempestade de verão – ATÍLIO CIRAUDO

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“Ai. Saudade é uma coisa azul e amarga, com carne por fora e espinho por dentro”.
Caio Fernando Abreu em carta a Hilda Hilst 

   Como uma tempestade de verão, você vem, tumultua todos os meus sentimentos e me enche, como água barrenta, tudo que os anos assentaram cordialmente para que as tristezas não viessem tomar conta do que já é e foi determinado. O tempo levou o que antes ainda estava imaturo e indefinido, que interrompido por impulsos levianos não deixou evoluir o que antes eram doces ilusões, juventude que despertava. Mesmo conflituados os desejos vinham como ânsias do novo, impróprios ou não, eram vividos e sentidos sem consequências externas.

Diversas tempestades vieram e foram, como sempre é. Umas anunciadas outras repentinas.

Mas, o incomodo da última, a atual, não cala a sua intenção; buscar no passado as respostas que num único e simples momento ter sido consequentes para o ato derradeiro: o rompimento definitivo da amizade.

Busquei abrigo e encontrei na saudade, na tristeza e na solidão aliados que me nutriam, confortando-me e fazendo-me crer que o passado já tão longe ia e que nada traria de volta, restando minúcias do que estava perdido. E perdido me encontro agora, sem abrigo e dúvidas me assaltam. Tenho realmente consciência do que posso encontrar? Buscar somente na impulsividade, o que é fato, é o caminho mais propício? As referências já não existem e não sei qual foi o trato que recebeu da vida, se conserva o doce do olhar, o carinho da entrega, o afeto na compaixão, o afago na dor, o sorriso na alegria de amar, a tudo e a todos.

A fúria dos ventos que arrancam minhas raízes desenterra do profundo o que se fazia isolado e esquecido, rompem partes, mantem intactos os mais puros e reais sentimentos que organizados suavemente por uma leve brisa anunciando que esta, por fim, esta tempestade passou. E como diz a canção “... qualquer dia amigo eu volto a te encontrar”. E assim será, mesmo que seja somente em mim, dentro, guardado como já está.

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quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Criação – ANTÓNIO ALMAS

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Percorro com a ponta dos dedos a imaginária linha do teu sorriso como um pincel decorando-os de carmim. Invento o toque pressionando o vazio e sentindo como me devolve a sensação de pele, a textura dos poros arrepiados dum corpo nu tocado pelo olhar das letras.

 

Abstraio os demais sentidos, quero focar-me na possibilidade de tocar o nada, fazer dele tanto que estás ali sentada, pousando para um olhar clínico de quem não vê senão com a ponta da alma.

 

Sinto! Sinto tanto que parece ser real aquilo que invento. Há uma sensação morna no ar, o calor dum corpo despido mesmo à frente do meu rosto, um silêncio mudo que diz tanto como se houvesse palavras a flutuar nos teus cabelos escorridos.


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sábado, 11 de dezembro de 2021

Quintal I – ANCHIETA ANTUNES

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No meu quintal não permito vilania, nem raízes de ódio, muito menos a espreita de tocaia no tronco da figueira. No mercado da vingança o ganho é pífio, com taxas de alto risco, sem garantia de retorno, ou com retorno negativo. No quintal da minha casa plantei uma “piccola” semente com promessas de frutos, de grande sombra para proteger a pureza dos sonhos banhados com a luz da esperança.

No meu quintal as raízes são vistas através de um solo de vidro, para evitar duvidas, principalmente, para não achincalhar o conceito da virtude, a pureza da oração da aurora. Sonhos e realizações fervilham no cadinho do amanhã. No quintal da minha casa planto mil flores, mil cores no caleidoscópio da felicidade em andamento nos trilhos da liberdade de expressão. Observo Deus verter suas lagrimas puras para dar vida às sementes que não canso de plantar; não preciso regar, nem podar: apenas observar seu crescimento, desfrutar das fragrâncias, das sombras, dos frutos. No meu quintal vivo o “dolce fare niente” da coisa conseguida, do fato consumado do sorriso que escancara a alegria na boca, nos olhos, no coração. A cruz que tenho que carregar nos ombros foi feita de gravetos, e pesa menos que a súplica de perdão.

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sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

No dia da sua morte – ANA TEIXEIRA

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No dia da sua morte você não estava lá.
Não estava porque a morte não existe, então, você viajou.
Você estava com as estrelas, os planetas e o sol, no vasto infinito do universo. Estava refletindo sobre sua existência, seus amores, seus desamores. Sim, desamores, porque, embora ainda longe da perfeição, você não sabia sentir ódio, nem mesmo de um pernilongo que te acorda no meio da noite.
Então você foi colocando tudo numa balança e a cada segundo surgiam novas lembranças e novos pensamentos. A mente não tinha descanso; estava povoada de sentimentos, emoções e pessoas.
De repente, você se lembrou de que havia morrido...
Imediatamente foi transportada para o jardim do hospital. Era tão bonito e tão florido, que nem parecia um hospital.
Aproximou-se um homem de meia-idade, grisalho, alto e magro, com uma expressão leve e receptiva. Parou próximo ao banco em que você estava sentada e ficou olhando para você.
Imediatamente um pensamento invadiu a sua mente: acho que terei de partir.
Mas o homem de semblante calmo nada dizia, nada fazia. Somente observava.
Você ficou intrigada e teve curiosidade de ver o seu corpo.
Imediatamente você foi transportada para a singela capela que ficava anexa ao hospital.
Havia somente três salas e uma delas estava ocupada.
Você viu muitos amigos e familiares próximos e outros que não via há tempos. Todos com semblante triste.
Você tentou falar com eles, mas todos estavam alheios à sua presença. Somente um gato no canto da sala olhou para você e abanou o rabo. Ficaste feliz por um tempo, mas logo o bichano levantou e saiu.
Então você criou coragem e aproximou-se do caixão. Levou um susto grande e só não desmaiou porque estava morta...
Nesse momento, aquele distinto senhor que estava no jardim apareceu e fez menção em amparar-te. Como estava muito fraca, aceitou a ajuda.
No momento em que seus braços a envolveram, você sentiu o chão desaparecer e tudo aquilo foi se tornando um vulto, uma memória distante.
O tempo passou. Dias, noites, semanas, meses. Você não conseguia saber a dimensão do tempo passado. Mas sentia-se mais viva do que nunca. Saudável, mais jovem, com mais vitalidade. Não sabia explicar como.
Agora você trabalhava com crianças. Auxiliando-as em sua educação. Aquele lugar era uma escola, muito linda, reluzente, ampla, com todas as janelas iluminadas pelo sol.
Não se comparava a lugar nenhum na terra. Era muito melhor.
Você estava feliz.

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sábado, 4 de dezembro de 2021

Entusiasmo – ALINE BRANDT

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Quando eu não estiver mais aqui... Abra todas as janelas. Gosto da casa bem arejada. Compre livros novos... Mas lembre-se de cuidar dos antigos. É fácil encontrar companhia em histórias. Caminhe, descalço, pelo jardim. A sensação de liberdade é indescritível. Tome banho de chuva. Faz bem para a alma e recarrega as energias.
Vá até uma padaria. Peça café e um pedaço de torta de chocolate. É preciso, de vez em quando, se permitir exageros. Sinta o perfume das flores. Em meio a um jardim florido bons sentimentos se multiplicam.
Ouça, ao amanhecer, o canto dos pássaros. É revigorante ser acordado com tamanha gentileza. Observe o nascer ou o pôr do sol. Sempre gostei mais de dias cinzentos. É impossível, contudo, não se alegrar com a beleza do céu em um dia ensolarado.
Dance ao som de Elvis Presley. Não se incomode se parecer, aos olhos de outras pessoas, careta ou ultrapassado. Música boa não tem prazo de validade.
Quando eu não estiver mais aqui - e não souber o que lhe cai bem - vista-se de amor... Espalhe amor... Seja amor... Porque o mundo está precisando de gente disposta a oferecer bons sentimentos.
Enquanto eu estiver aqui, contudo, abrirei janelas... Comprarei livros... Caminharei descalça... Tomarei chuva... Frequentarei cafés... Sentirei o perfume das flores... Acordarei com o canto de pássaros... Observarei o sol... Dançarei ao som de Elvis Presley... E vestirei amor. Farei tudo isso em sua companhia... Para que tenha boas lembranças quando eu não estiver mais aqui.

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sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Michelle – ALESSANDRA BARCELAR

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Os fracos morrem sem amor. Não me ligaram para avisar a primeira vez que ela foi internada.
Já tinha aquilo dentro de mim. À noite, quando o único som era o dos ratos andando pelo telhado, eu cobria o rosto. Deixava minha mão descer. Fazia medições para ter certeza do que era ter aquilo.
Sentado de frente para uma janela no centro da cidade, começo a temer pelo encontro marcado para daqui a pouco.
“Faz mais de quinze anos que você foi embora e nos deixou nessa latrina. Com que direito aparece agora?”
“Saí, porque meu corpo só carregava um”.
“Você é um bosta. Acha que sua carteira aberta é uma parte de benevolência”.
Virei as costas e fui em direção à porta do quarto. Temia vê-la de uma forma diferente daquela que conheci anos antes.
“Vamos à benzedeira. Tudo tem jeito nessa vida. Só não tem jeito pra morte”.
“Pra morrer basta estar vivo”.
Seu corpo arfava sobre a maca. Braços amarrados com gazes. Olhos catatônicos. Um tubo enfiado pela boca e lábios arroxeados. Sobre o corpo, um lençol já amarelado pelo uso em outros corpos deixa parte de seu colo nu à vista.
“Sua mãe acha esse jeito estranho. Pergunta se nunca reparei em nada.”
“A loucura faz parte. Acho que é só um jeito de pensar que sai descarrilhado da cabeça”.
Minha irmã chorava copiosamente sentada numa cadeira. Amparada pelo banana do marido, questiona Deus.
As pessoas pelos corredores. Éramos fantasmas para elas. Cada um tem seus próprios doentes e recebe suas más notícias a seu tempo.
“Que porra é essa no seu caderno? Quem é? Eu não acredito que Deus me castigou assim!”
“Sua mãe perguntou sobre essas coisas no seu caderno. Eu disse que era brincadeira de alguém da escola”.
A pele dela há muito era um leito de rio seco. Os lábios roxos em nada lembravam a vivacidade vermelha de outrora. Será que ela ainda tem aquele cheiro? Levei uma surra um dia porque mexi nas coisas dela. Perfume. Batom. Pó. A mangueirinha do chuveiro abriu vergões em minha pele. Chorei por todos os motivos. Passei vergonha na escola.
“Sabe, eu te defendia na escola. Briguei quando te zoavam. Uma vez fiquei com o olho roxo. Aí, um dia, você vira as costas e some.”
“O mundo só é grande se a gente abre espaço”.
“Claro que ela não iria aceitar, mas ela chorava feito pedra minando água”.
Logo vai chegar minha tia. A boa samaritana da família. Usa saia e faz tudo que o pastor manda. Vai me olhar inquisidora. Perdeu tudo, menos a pose. Cumprimentará minha irmã. A filha que ela queria. A filha que ela tentou roubar da minha mãe. Até berço comprado já tinha. Não era justo uma menina bonita naquela miséria.
Ainda há fios espalhados aqui e ali pelo seu couro cabeludo. Suas fotos da juventude mostravam um cabelo volumoso. Usava bobes para fazer os cachos. Nas excursões para a praia, nunca molhava os cabelos. Dizia que frequentava os bailes dos anos 70. Deve ter dançado Jackson Five e Donna Summer.
“Ela nunca soube que era você quem mandava o dinheiro. Eu dizia que era da venda de Avon”
“Todo suor dá dinheiro”.
“Eu fingia não ouvir as piadas quando passava no bar. Às vezes, eu pensava em estourar e virar um diabo doido lá dentro. Sei que te achavam uma aberração e que a culpa era minha. Para os outros, a culpa é do pai, que não deu exemplo”.
“O exemplo é só uma embalagem para não derramar o que tem dentro”
Meu pai apareceu com o médico. O doutor colocou a mão em seu ombro e fez um afago. Passou pela minha irmã e fez o mesmo. Diante de mim, um susto. Perguntei a ele se ela conseguia entender algo. Ele disse que naquele estado ainda resta consciência. Ela ouve? Sim.
Abri a porta e a enfermeira pediu licença. Coloquei a mão sobre seu colo e segurei sua mão. Senti-a fria, mas ainda arfava sob o lençol.
- Eu fiz a escolha certa, mãe. A senhora não aceitou nunca, mas a natureza da gente é um bicho que não dá pra domar. Mãe, eu te perdoo. Guardamos rancor demais pra levar agora. Eu só queria um pouco de atenção, porque eu sempre soube do que eu gostava.
Chorei e abaixei a cabeça. Beijei sua testa já gelada. Seu peito subiu alto. Cheio de ar.
Um apito ininterrupto tomou conta da linha verde na máquina ao seu lado.

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