quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Crescência - MARINA MARINO

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Seu nome era Crescência. Natural da Bahia, não me recordo mais o nome da cidade. Apareceu quando criei um curso para a alfabetização de adultos aqui em São Paulo, lá pelo ano de 2.008. Foi a primeira aluna a se matricular. Enquanto eu preenchia sua ficha de inscrição, fiquei sabendo mais sobre ela.
Crescência achava que tinha 76 anos, porque sua certidão foi feita bem depois de seu nascimento, então não tinha certeza de sua idade. Nasceu em uma grande família com muitos irmãos homens e algumas mulheres. Ela era a mais velha das meninas. Os meninos iam à escola, as meninas não podiam ir. O pai não permitia, dizia que não era coisa para mulher.
E assim levou a vida, dentro de casa, aprendendo o que se pode fazer lá. Numa certa altura, um pretendente apareceu e ela se casou. Mudou-se para São Paulo, onde iam estabelecer família.
A primeira coisa que reparou ao chegar na cidade foi que havia uma escola na rua onde moravam. Mas o marido a queria em casa, cumprindo seus afazeres domésticos, cuidando dos filhos. Naquela época, não sobrava tempo para estudar.
Depois de alguns anos, a escola abriu um curso de alfabetização noturno. Crescência ficou sabendo e foi até lá pegar informações. O marido achou que à noite não era um bom horário para ela ficar fora de casa, quem lhe serviria o jantar? E Crescência desistiu de estudar.
Os anos foram passando, até que Crescência enviuvou. Então começou a fazer coisas que nunca tinha feito antes. Passou a frequentar uma roda de tricô, onde podia conversar com mulheres bem diferentes dela. Foi aprender dança de salão à noite, já que não tinha jantar para servir. Ah, e foi jantar fora também, com as novas amigas, pelo menos uma vez por semana.
Até que um dia, ficou sabendo do nosso curso e chegou à sala de aula cheia de esperança. Queria aprender a ler para ler receitas de doces, as fofocas sobre novelas nas revistas e os folhetos de ofertas do supermercado.
E foi por aí que iniciamos com ela, pelos folhetos de compras, logo na primeira aula. A princípio ela se assustou, achava que não sabia “ler”, mas logo descobriu que lia, lia sim, lia as imagens dos produtos, reconhecia os números dos preços, identificava os supermercados, só não decodificava as letras. Isso foi o suficiente para que sua estima em relação à leitura aumentasse e suas crenças sobre “não vou conseguir” diminuíssem.
Então realizou o grande sonho de sua vida, aos 76 anos, Crescência floresceu.

 EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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