sábado, 2 de janeiro de 2021

MARIA DE FÁTIMA BERENICE DA CRUZ FALA DE... CANGALHA DO VENTO de LUIZ EUDES

Às vezes o melhor que podemos fazer por um livro, e respectivo autor, é dar a conhecer a primeira impressão. Assim sendo, aqui fica o texto que Maria de Fátima Berenice da Cruz escreveu para o livro CANGALHA DO VENTO, de Luiz Eudes.

A RELAÇÃO PSICOAFETIVA DO LEITOR NO ATO DA LEITURA: UM OLHAR SOBRE CANGALHA DO VENTO

THE PSYCHOAFFECTIVE RELATIONSHIP OF THE READER IN THE ACT OF READING: A LOOK OVER CANGALHA DO VENTO

Maria de Fátima Berenice da Cruz[1]

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo analisar a existência discursiva de três personagens masculinos da obra Cangalha do vento para detectar nos interstícios do texto como a hegemonia do discurso patriarcal, gerador da ideia de um corpo masculino forte e dominante se faz presente. Para isso, utilizamos como recurso metodológico a análise do discurso na perspectiva da teoria crítica e como base teórica os estudos sobre masculinidades, corpos dominantes, docilização do corpo e a noção de conserva cultural. Para consecução dessa análise, percorreremos de forma panorâmica os estudos de Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Durval Muniz com uma breve incursão no conceito de conserva cultural de Jacob Levi Moreno.

PALAVRAS-CHAVE: Masculinidade, dominador, dominado

ABSTRACT: This article aims to analyze the discursive existence of three male characters from the work Cangalha do vento to detect in the interstices of the text as the hegemony of patriarchal discourse, generating the idea of a strong and dominant male body is present. For this, we used as methodological resource the analysis of discourse from the perspective of critical theory and as theoretical basis the studies on masculinities, dominant bodies, docilization of the body and the notion of cultural conservation. To achieve this analysis, we will walk in a panoramic way the studies of Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Durval Muniz with a brief incursion into the concept of cultural preserve of Jacob Levi Moreno.

KEYWORDS: Masculinity, dominating, dominated

Marielle Macé ao tratar da relação entre a literatura e a vida nos diz o seguinte: “É na vida ordinária que as obras se sustentam, deixam suas marcas e exercem sua força. Não há de um lado a literatura e do outro a vida; Pelo contrário, há na vida em si, formas, ímpetos, imagens e estilos que circulam entre os sujeitos e as obras, que os expõem, os animam, os afetam”. (2011, p. 9-10). As palavras de Macé nos remete ao domínio da relação afetiva que o leitor exerce com a leitura da obra literária. Quando falo de afeto amplio o sentido desta palavra a todo e qualquer sentimento e reação que seja tomado o leitor no instante da leitura. Roland Barthes (1987, p.12) nos diz que a gestação do texto é realizada no pacto do prazer. E esse prazer se realiza no paraíso das palavras, onde dialogam signos, adjetivos, rupturas, frases e miragens de objetos que eles representam. Dito isto, percebemos que a obra literária só tem vida e ação quando tomada pelos olhos e sentimentos do sujeito leitor.

Por essa razão, para iniciar uma reflexão teórico-crítica sobre a obra Cangalha do vento (2019) do escritor Luiz Eudes foi preciso investir primeiramente num aporte psicoafetivo para que a obra pudesse ganhar vida e ação. A leitura reflexiva de uma obra exige do sujeito leitor um recorte temático de análise em virtude das inúmeras possibilidades de leitura que ela nos oferece. Em vista disso, optei por analisar o aspecto da masculinidade presente na obra Cangalha do vento (2019). Certamente que outros leitores encontrarão diversas outras faces de leitura; mas nesse momento me interessa perceber de que forma é construído o conceito de macho no tecido narrativo da obra. Em vista disso, farei uma leitura desenvolta, cínica, pois fortemente comprometida com o afeto.

O objetivo de análise desse artigo é percorrer a existência discursiva de três personagens da obra Cangalha do vento, a saber: Aristeu, José Paulo e Fernando com o intuito de pensar como o autor contemporâneo lida com a hegemonia do discurso patriarcal, gerador da ideia de um corpo masculino forte e dominante. Para isso, utilizamos como recurso metodológico a análise do discurso na perspectiva da teoria crítica e como base teórica os estudos sobre masculinidades, corpos dominantes, docilização do corpo e a noção de conserva cultural. Para consecução dessa análise, percorreremos de forma panorâmica os estudos de Pierre Bourdieu, Michel Foucault, Durval Muniz com uma breve incursão no conceito de conserva cultural de Jacob Levi Moreno.

Antes de iniciar uma apreciação sobre essas figuras masculinas que protagonizam a obra Cangalha do vento, faremos uma breve apresentação desses homens. Aristeu, patriarca da família, sai de casa aos quinze anos de idade em decorrência de contínuos maltratos desferidos por seu pai. Com a ajuda da irmã que lhe preparou uma mala contendo utensílios necessários para jornada, Aristeu viveu quinze anos trabalhando na extração de látex na floresta amazônica. Decorridos os quinze anos de trabalho pesado, Aristeu segue para outro seringal e se torna vítima de um criminoso acidente provocado pela companhia de navegação para receber indevidamente o seguro. A despeito do projeto criminoso, Aristeu consegue se salvar e ainda salva três figurões da sociedade amazonense. Como recompensa Aristeu tem o seu retorno garantido para terra natal.

Ao chegar, inicia namoro com sua prima Tereza e em virtude do compromisso assumido, resolve mais uma vez colocar o pé na estrada em busca de melhor condição de vida. Dessa vez Aristeu vai trabalhar como tropeiro nas fazendas de cacau do sul da Bahia. Após dez anos, ao fazer uma viagem acompanhando um carregamento de cacau para Salvador, o navio encalha e afunda. Bafejado pela sorte, Aristeu mais uma vez sobrevive ao naufrágio e retorna à Baixa Funda onde vem a se casar com 44 anos com a sua Tereza de “tranquilidade mórbida” (p.22). O casal forma uma família com dez filhos, vindo Tereza a falecer no último parto.

O segundo personagem que faremos apreciação é o José Paulo, filho de Aristeu. Em decorrência de uma grande seca que assolou o Junco em 1961, José Paulo viaja para São Paulo com apenas 18 anos com poucos recursos e munido de muitas esperanças. A cidade lhe trouxe muitas dificuldades, mas um encontro com um político influente da capital paulista lhe rendeu um emprego na metalúrgica Serralgodão. O emprego oportunizou José Paulo a realizar o seu casamento com Maria e levá-la para São Paulo. Entretanto, no fim dos anos sessenta, com a tomada do poder pelos militares, a vida em São Paulo se torna impraticável, fazendo com que José Paulo retornasse com Maria grávida de Fernando para o Junco.

Fernando é o terceiro homem que protagoniza a obra Cangalha do vento. Sua representação na obra se constitui como a síntese das duas primeiras gerações masculinas da sua família com uma nova percepção sobre o ser masculino. A rudeza do avó e a perseverança destemida e solitária do pai, agora são transformadas por Fernando em vontade de saber. Comunga com Fernando a força da reflexão e em muitos momentos ele domina a narrativa e toma do autor a pena da escrita. E como nos diz Todorov (2006), “Que é uma personagem senão um determinante da ação?” Então, o personagem Fernando toma a narrativa para mostrar a sua sensibilidade frente às dores do mundo e com a liberdade de um pássaro-poeta, ele canta a sua terra sem medo de mostrar-se como macho pleno de sensibilidades.

Cangalha do vento permite ao leitor transitar do lastro de superfície linguística do texto para uma profundidade semântica promovida por uma leitura subjetiva. A imagem visiva[2] que o texto Cangalha do vento transmite constrói no leitor uma relação psicoafetiva com o texto porque a narrativa desses três homens serve de gatilho para pensar falas silenciadas, imagens invisibilizadas de mulheres companheiras e mães que estiveram nos bastidores das vidas desses personagens. Todavia, é perceptível que o apagamento dessas mulheres seja reflexos diretos da condição patriarcal perversa, pela qual foi construída a formulação do ser macho na vida desses personagens. Durval Muniz de Albuquerque Júnior em um belíssimo artigo intitulado “Máquina de fazer machos” sinaliza sobre a construção histórica e cultural do macho, dizendo:

Um macho não adoece, não tem fragilidades nem físicas, nem emocionais, frescuras. Um macho sempre sabe o que faz, aonde quer chegar e ai daquele que se colocar em seu caminho. Um macho é um ser competitivo, está sempre disputando com outros machos a posse das coisas e das pessoas (2010, p.22).

A descrição realizada por Durval Muniz revela o enrijecimento, a carapaça muscular, a ausência de afeto e de sensibilidade que compõe o universo masculino construído pela hegemonia patriarcal. Os homens de Cangalha do vento não seriam diferentes. Eles foram construídos para sofrer, trabalhar, amparar e se tornarem heróis da família. Todavia, ao rasgar a máscara da construção patriarcal, encontramos uns sujeitos frágeis, amorosos e com uma alma sofrida por ter escondido por toda uma vida a sensibilidade amorosa que neles habitava.

Desse modo, Luiz Eudes consegue magistralmente tecer um tapete linguístico com aparência simplória, mas com uma profundidade semântica invejável. As obras com aparente simplicidade discursiva escondem profundidade reflexiva. A velocidade com que são montados os quadros narrativos da obra, cria-se uma tela imagética de outras figurações não ditas, mas automaticamente sentidas. E como nos diz Umberto Eco (1979, p. 36) “um texto distingue-se, porém, de outros tipos de expressão por sua maior complexidade. E motivo principal da sua complexidade é justamente o fato de ser entremeado do não-dito”. E ele ainda ressalta que: “não há nada mais aberto que um texto fechado” (p.42). Então a leveza e simplicidade da escrita de Cangalha do vento transforma-a em leitura complexa e profunda. Essa profundidade é percebida no instante em que Cangalha do vento trapaceia o real dando-lhe o caráter ficcional.

A leitura dessa obra é para mim um exercício muito especial, pois ressuscita um contexto geográfico e afetivo vivido por mim durante toda infância e juventude. Reencontrar com o Junco, suas histórias e pessoas através da obra Cangalha do vento é perceber que a ficção e a realidade dançam juntas a ciranda da memória de uma leitora copartícipe da ação narrada por Luiz Eudes e tantas vezes narradas por meu pai na infância. Como não lembrar das famosas romarias da senhora Maria de Venança, das célebres missas do padre João Batista, do corpo franzino de Dom José Conélio, das fartas risadas do Dr. Linaldo e dos enfrentamentos políticos de Josias Cardoso na praça da Igreja de Nossa Senhora do Amparo. Esses e outros elementos acionam o gatilho da memória dessa leitora ao lembrar das narrativas familiares da infância, que por consequência, transformam esta obra num belíssimo texto recheado de lembranças, respeito e afeto. Por isso, passaremos agora a analisar a forma como a obra Cangalha do vento explora, atualiza e reatualiza a noção de corpo masculino, especificamente do sertanejo nordestino.

O CORPO MASCULINO: UMA CONSTRUÇÃO COMPLEXA

Cangalha do vento cria cuidadosamente para cada geração de homens um perfil de corpo.  O corpo do velho Aristeu carrega o peso da dor, a marca do sofrimento e um silenciamento do amor e da sensibilidade, mesmo quando sente amor ou dor. José Paulo por sua vez carrega a solidão e a luta de um menino que muito cedo conheceu a orfandade. Muito embora haja em José Paulo um comprometimento com o outro e um forte respeito para com a figura feminina. Fernando, representante da terceira geração, tem a sensibilidade de um sujeito leitor da vida. Isto posto, perguntamos: como ler os corpos desses homens?

Considerando que as masculinidades são corporificadas, logo, diferentes masculinidades são produzidas no mesmo contexto social. Daí a sua complexidade e contradição; visto que ela é mantida através de processos rudimentares de repressão. Cangalha do vento constrói e reconstrói as masculinidades do homem sertanejo partindo do princípio de que existe uma hegemonia de gênero traduzido ora pela força bruta, ora pela decisão silenciosa. Aristeu por exemplo é construído como um corpo maltratado, portanto desapegado de afetos. José Paulo, fruto desse desapego, aprende muito cedo a conviver com a dor e a solidão, produzindo uma personalidade masculina que subestima a energia, a felicidade, o riso e outras formas de vida que poderiam ser oferecidas à criança.

A obra nos faz refletir sobre a produção de masculinidades violentas no seio da cultura do homem. É necessário esclarecer que ao falarmos de masculinidades violentas, não necessariamente referimo-nos ao emprego da força bruta.  Mas essa masculinidade violenta pode ser percebida através da violência simbólica de que nos fala Pierre Bourdieu (2002), para o qual é uma forma de violência exercida pelo corpo discursivo sem que haja coação física, mas com sérios danos morais e psicológicos ao sujeito dominado. A forma como Aristeu descreve suas aventuras na Amazônia denota claramente o seu desprezo violento pelo feminino e a sua masculinidade violenta insiste em elevar o seu heroísmo e, ao mesmo tempo, enfatizar a insignificância das mulheres com as quais se deitava.

A esse respeito Robert Connell[3] (1995) afirma que: “A forma hegemônica de masculinidade se dividiu entre formas que enfatizam o conhecimento especializado e formas que enfatizam a dominação e calculismo egocêntrico”. O perfil de Aristeu se aproxima da segunda concepção apresentada por Connell, visto que aos quinze anos ele foge da opressão paterna que concebia a educação masculina a partir do protocolo de castigos e maltratos. A fúria paterna deserta Aristeu e o conduz a um impiedoso destino errante, aproximando-o da postura de dominação violenta, como podemos perceber na descrição do narrador:

Viajou vários dias sem arrependimento. Teve o índio desconfiado como amigo, o ladrão de gado como colega de trabalho, o traficante de escravas brancas como seu chefe, o matador de aluguel como companheiro de farra e as coxas morenas das índias e das prostitutas como refúgio e consolo. (p. 18)

Em nenhum momento a mulher é vista por Aristeu como companheira, amiga, colega ou chefe. Esses atributos ele reserva para os homens. A mulher é concebida como lócus depositário de mágoas. Esse discurso revela que a masculinidade hegemônica se estabelece e se fortalece exatamente na produção de inferiorização do outro feminino. É por isso que as coxas das índias e das prostitutas representam o corpo coisificado e insignificante, deliberadamente alimentado pelo imaginário masculino de feição patriarcal.

Por esta razão, quando Aristeu “se engraça” da prima Tereza (observe que ele não se apaixona, isto porque paixão é sinônimo de enfraquecimento masculino), ela o espera durante dez anos com “tranquilidade mórbida” diante dos seus olhos de “homem duro”. O pacto inconscientemente firmado com a construção de uma masculinidade de estrutura objetiva e cognitiva, fruto de uma sociedade androcêntrica, é tão forte que o retorno de Aristeu ao labor errante é justificado por ter perdido todas suas economias, segundo ele, consumidas por índias e prostitutas do Amazonas. Se torna interessante o poder de reprodução do discurso patriarcal. Há uma vitimização do discurso masculino que se sente injustiçado por ter explorado sexualmente o corpo de mulheres. O silenciamento impetrado pelo macho a índias e prostitutas o beneficia com o induto da falência econômica. Esta representação social da personagem Aristeu, protege e conserva o discurso “falo-narcísico”[4] próprio do pensamento androcêntrico, como forma de eternizar a essencialidade masculina.

Assim, fazendo jus à imagem de homem duro, Aristeu não consegue externar a dor pela morte da esposa; e apenas engole uma saliva grossa. Segundo Muniz (2010) esse perfil remete-nos a valores que circulam em nossa sociedade e são elementos de nossas práticas e formas culturais. Isso nos leva à questão apresentada anteriormente: como é construído o corpo desse macho patriarcal? O corpo é apagado, negado, domado, enrijecido, receoso e desprovido de afetos que possa externar. Com sagacidade a obra Cangalha do vento denuncia esse corpo violento e empreende um projeto de reconstrução desse corpo masculino através dos descendentes de Aristeu. A obra não recupera o lugar de fala do corpo feminino. O feminino permanece em seu papel construído pela tradição colonial do ser sensível, erótica, móvel, insinuante e acima de tudo obediente. Entretanto, o texto vai aos poucos humanizando o corpo disciplinado, adestrado e controlador do macho, dando-lhe sensibilidade, afetos e sentimentos.

Para iniciar a reflexão sobre o homem José Paulo, não podemos esquecer a emblemática imagem do menino-homem responsável por trazer a parteira numa noite fria.

Era uma noite densa, de nuvens carregadas e ventos frios assoviavam na vegetação criando a sensação de assombrações que ali se revelavam. Aristeu implorava à parteira Salustiana, que fora trazida às pressas pelo filho pequeno, José Paulo. O menino observou a velha parteira que fuçava no meio de Dona Tereza com um pesar na expressão. (p. 25).

         Naquela noite, José Paulo menino assume a responsabilidade do homem que carregará a dor e a solidão como marcas do primeiro jugo (canga) da masculinidade. Quando adulto José Paulo “vivia em pensamentos, em conflitos que se dirigiam aos seus sentimentos recônditos. Embora tivesse convicção do que queria, um sentimento de estranheza o tomava” (p.27). É perceptível nesta citação que José Paulo traz inscrito no corpo as marcas de uma criação insólita, repressora e solitária. As suas lembranças se encontram com um “sentimento distante” (p.27) para quem o vazio e o anonimato protagonizam a sua existência.

É esse corpo construído como objeto que Michel Foucault (1987) vai chamar de “corpos dóceis”; visto que o seu padrão é de submissão ao adestramento de uma cultura familiar opressora que o manipula e o transforma em corpo utilizável. Em geral este tipo de instituição familiar é o agente principal que contribui para dominação por intermédio da adesão permitida pelo dominado. E como diz Bourdieu (2002, p.46) “os dominados aplicam categorias construídas do ponto de vista dos dominantes às relações de dominação, fazendo-as assim ser vistas como naturais”. Contudo, José Paulo tem consciência desse adestramento que lhe foi impingido pelo pai e, num momento de reflexão ele afirma que o pai “precisava de reformas” (p.28).

Há em José Paulo conservas culturais (MORENO, 1974) muito próprias do formato disciplinado de educação familiar recebida. Tudo nele causava-lhe medo, vigilância, fuga de transformações bruscas, conduzia a vida através de gestos articulados e programados, produzindo desse modo, sentidos duros sobre um cotidiano vigiado. Essas conservas, como nos diz Levi Moreno (1974), servia-lhe como “muletas” para fugir dos seus medos e temores. Por isso que ao encontrar o seu irmão que tinha um papel político engajado, isso causou-lhe angústia e receio da postura atuante do irmão que lutava contra um mundo rígido e sem alternativas.

Em meio a esse receio nasce Fernando, que chega como arauto do novo homem. Não obstante a formação nos princípios doutrinários do catolicismo, havia no jovem menino um sentimento de libertação dos grilhões da masculinidade originários das gerações passadas. Essa mudança de paradigma em Cangalha do vento recebe uns toques de primeira pessoa, com a novidade do uso da linguagem poética. Porém, mesmo com essa breve abertura no texto, o narrador se revela vigilante diante das investidas do personagem Fernando, evoluindo ambos para a construção de um homem vivo e sensível.

Cangalha do vento possui algo de lúdico e cênico e acumula linguagens variadas sob o filtro da consciência problemática do mundo masculino, tomando como ponto de partida uma pequena cidade do interior do Nordeste. A singularidade desse espaço geográfico reside no fato de que, repensar a masculinidade a partir dos conflitos humanos e psicológicos que o mundo agrário carrega é estabelecer uma relação do homem com a terra e com os seus sonhos. Desse ponto de vista, o narrador foi muito audaz ao construir personagens homens carregados de contradições em suas identidades sociais, tendo como pano de fundo o imaginário sagrado popular que põe em conflito a cristalizada dominação masculina versus a espontaneidade sensível do homem. Fernando, representante da terceira geração, fruto do êxodo compulsivo que fez seus descendentes tentarem a sorte fora do Junco, agora quer viver na terra dos seus pais. Diz o narrador:

Na verdade, Fernando era apaixonado pelo Junco. Sua terra, seu chão. No Junco sentia-se seguro, era o seu lugar. Pensava em jamais romper com as suas raízes. Não queria rescindir as barreiras. Queria casar e continuar a morar no Junco. Ter filhos e no Junco criá-los, como o seu pai e o seu avô. (p. 104)

Esse homem sensível que rompe com o pacto da dor, alimento de gerações anteriores, cumprirá o roteiro existencial, mas convergirá sempre o olhar para si e para manutenção de sua família; com um olhar valorativo especial para Cristiane sua esposa. Nesse momento o leitor consegue perceber o plural de vozes no discurso narrativo de Cangalha do vento, visto que os múltiplos contextos geográficos apresentados por Fernando revelam, como foi dito por ocasião do seu nascimento, a vontade de saber do menino-homem:

Viajava muito em busca de novidades e por todo o país: Rio de Janeiro, Espírito Santo e Goiás; pelas Minas Gerais; do Pará ao Maranhão, e São Paulo. [...] O que Fernando não conseguia entender era o porquê de em todos os lugares enxergar um rosto, sempre o mesmo rosto em todas as pessoas. (p. 107)  

Fernando viajava por todo lugar, mas um rosto lhe atraia de volta para o Junco. Era o rosto de Cristiane, rosto de mulher que representa a terra, a força e o amor. Podemos observar que o narrador, numa evolução da representação social do personagem Fernando, apresenta-o como um corpo liberado. Fernando agora passa a ser sujeito da própria história e conduz sua vida conforme valores e descoberta através do autoconhecimento e do conhecimento do outro. Essa experimentação infindável é o que constitui a construção da identidade de Fernando como homem sensível. E como nos diz Bauman (2001, p.92): “A satisfação e o prazer são sensações que não podem ser postas em termos abstratos: precisam ser subjetivamente experimentadas – vividas”. Por isso que Fernando se liberta das dores, porque para ele foi preciso abandonar as narrativas cristalizadas e transformá-las em ato criativo da renovação.

Em suma, observamos que a rudeza dominante de Aristeu gerou a insegurança de José Paulo, que por sua vez produziu a vontade de liberdade em Fernando. Se tomarmos como pressuposto os estudos de Levi Moreno para entender esse conflito de gerações masculinas, podemos perceber três figurações bem marcantes nesses três homens, a saber: em Aristeu vemos um processo contínuo de cristalizações de suas práticas sociais; em José Paulo percebemos a promoção da permanência de conservas culturais. E como representante da terceira geração, Fernando chega como o arauto da espontaneidade essência do ato criador e criativo.


REFERÊNCIAS

ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Máquina de fazer machos: gênero e práticas culturais, desafios para o encontro das diferenças. In: MACHADO, Charliton José dos Santos; SANTIAGO, Idalina Maria Freitas Lima; NUNES, Maria Lúcia da Silva. Gênero e Práticas Culturais: desafios históricos e saberes interdisciplinares. Campina Grande: EDUEPB, 2010.

BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perpectiva, 1987.

BAUMAN, Zygmunt. Individualidade. In: Modernidade Líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução: Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

CONNELL, Robert W. Políticas da masculinidade. In: Educação e realidade. Jul-dez, 1995.

CRUZ, Maria de Fátima Berenice da. Por uma teoria da apropriação do texto literário. In: Leitura literária na escola: desafios e perspectivas de um leitor. Salvador: EDUNEB, 2012.

ECO, Umberto. O leitor-modelo. In: Lector in fabula. São Paulo: Perspectiva, 1979.

EUDES, Luiz. Cangalha do vento. Inhambupe: Conceito gráfica editora, 2019.

FOUCAULT, Michel. Os corpos dóceis. In: Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 1987.

MACÉ, Marielle. Formas de ler, caminhos para ser, Gallimard, 2011.

MORENO, Jacob Levi. Psicodrama. São Paulo: Cultrix, 1974. 

TODOROV, Tzvetan. Os Homens-Narrativas. In: As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2006.



[1] Professora Doutora da Universidade do Estado da Bahia, membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural, Líder do Grupo de pesquisa GEREL. Este texto é referente a parte da pesquisa do Estagio Pós-doutoral realizado no Programa de Pós-Graduação em Letras da UFS na área de Estudos Literários, Linha de concentração Literatura e Recepção sob a supervisão do Prof. Dr. Carlos Magno Santos Gomes em cooperação com o Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural/UNEB.

E-mail. fatimaberenice@terra.com.br

[2] Sobre a noção de “Imagem visiva” ver: CRUZ, 2012, p.169.

[3] Robert Connell teve mudança de nome para Raewyn Connell, cientista social transexual conhecida internacionalmente.

[4] Cf. em Bourdieu 2002 a discussão sobre a eternização do arbitrário masculino.

 

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