quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Na corda bamba - FARAH SERRA

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Sempre achei que um dia seria mãe, como parte do ciclo natural da vida. Uma época até bradava que queria quadrigêmeos, duas meninas e dois meninos – obviamente eu não tinha a menor noção do que significasse ser mãe. Quando me dei conta da doideira, comecei a dizer que queria ter uma menina primeiro e depois um menino, isso porque sempre senti que eu cuidava muito mais do meu irmão mais velho do que ele de mim. Mudei de ideia de novo, queria que eles fossem gêmeos, achava linda a ligação afetiva das minhas primas gêmeas. Mas, nunca quis um filho único.
Quando engravidei, curti demais a minha gestação. Adorava meu barrigão e amava aquele serzinho que estava se desenvolvendo em meu ventre. Eu já era toda dela, antes mesmo que a minha filha nascesse. E, por sorte, vivenciei um parto natural humanizado, vivi a nossa exogestação com toda a intensidade que ela nos exigiu e desde lá venho saboreando a desconstrução íntima de me tornar mãe.
Passados dois anos, eu e o meu marido, pensamos que fosse o momento de ter outro filho – ele também não gosta da ideia de filho único. Gostamos de casa cheia, mas não só por isso. Moramos longe da família e sentimos muito pelo fato da nossa filha não conhecer aquele convívio íntimo com parentes próximos. Acreditamos que com mais um filho a proporcionaríamos toda a beleza que é brincar, brigar, construir memórias e compartilhar histórias, com alguém que estará sempre ligado por aquele fio sutil da irmandade.
Bem, logo engravidei. Quanta felicidade! Não, não tanta. O destino quis me mostrar o outro lado dessa coisa toda de ser mãe. No início do quarto mês, quando finalmente bradaríamos aos quatro ventos que minha pequena não seria mais filha única, durante um exame de rotina, quatro palavras foram violentamente disparadas contra mim, sem dó nem piedade: “non ha più battito”. Esses tiros, não tem mais batimento, foram tão certeiros que sai daquela sala escura embalada a vácuo. Foi como se eu caminhasse no ar. Em meio a um terrível nevoeiro, eu via as pessoas, mas não as reconhecia. Via suas bocas se movendo em câmara lenta, mas não ouvia nenhum som. Eu não estava mais ali. Foi a pior experiência que vivi. Foi como se o meu maternar estivesse sendo perfeito demais, para uma vida real.
E como falar sobre a morte para uma menininha linda, super empolgada com aquela história esquisita de ser a irmã mais velha? Como chovia estrelas cadentes, era Notte di San Lorenzo, seu irmãozinho
resolveu pegar uma carona na cauda do cometa para passear entre os planetas e todas as maravilhas do universo. Juntei minhas forças, guardei essa história em um canto especial do meu coração e segui a vida. Afinal, eu tinha uma bombinha de energia e alegria, bem ali, ao meu lado.
Passado um tempo, veio mais um, outra perda. Sozinha com minha pequena (meu marido estava em uma viagem de trabalho na China), não tive como viver minha dor. Mas a vida também me acariciou, apesar da visceralidade dos acontecimentos, dessa vez foi mais sutil. Além de eu já saber que isso não era uma daquelas coisas que “nunca vai acontecer comigo”, eu estava no primeiro mês e meu bebê partiu sem procedimento. Naturalmente ele me deixou, pude vê-lo, me desculpar e falar para ele seguir a luz junto do seu irmãozinho. Em vez da lata do lixo hospitalar, esse meu rebento foi repousar no vaso mais lindo da minha varanda.
Foi então que entendi que ser mãe é andar na corda bamba. Onde segurando de um lado estou eu mesma, quem um dia fui, do outro está a minha mais nova versão. No entanto, quanto mais eu caminho tentando manter o equilíbrio – às vezes com cuidado, nas pontas dos pés, outras, completamente desajeitada, e algumas com toda aquela confiança que esse desafio nos pede – mais essa corda se afrouxa e mais distante fica para eu tocar a plenitude de me transformar nessa figura, tão idealizada e cheia de estereótipos.
Nessa escola chamada maternidade, venho aprendendo que ser mãe é uma revolução que acontece no ritmo das imperfeições e perfeições da vida. Nela estou me formando em aprendiz do desequilíbrio, da dualidade: dúvidas e certezas, erros e acertos; autocontrole e descontrole; compaixão e raiva; solidão e presença; ensinar e aprender; amar e ser amada; entregar e receber; vontade e medo de tentar mais uma vez.
Para mim, ser mãe é isso. É tudo isso. É isso tudo. Mas, mais do que tudo, é entrega.

EM - MÃES - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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