sábado, 16 de janeiro de 2021

Conversa de vaga-lumes - LÉA COSTA SANTANA DIAS

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Sempre me faltou noite para tanto sono. Porém, nos últimos dias,
as insônias têm sido minhas companheiras. Na última delas, lá
pelas tantas, apareceu em meu quarto um vaga-lume. Acontecimento
raro. Minhas lembranças desses seres de luz datam de
muitos anos, quando eu era criança e morava na zona rural numa
cidadezinha do interior.
De início, abundou em mim a alegria de doces reminiscências.
Por instantes, tive um sol inteirinho só para mim. Cá dentro,
acordara outra, aquela dos banhos de chuva em tardes com tons
de eternidade, aquela das brincadeiras de balanço que levava onde
se quisesse ir, aquela dos pirulitos mágicos que faziam desaparecer
até mesmo o medo de injeção. Depois, os lampejos do hoje e,
com eles, a dúvida: seria mesmo um pirilampo um mensageiro de
boas novas? Levantei-me da cama às pressas, no escuro, para não
espantá-lo. Usei o celular para a cata de dados. Enquanto pesquisava,
o vaga-lume voava de um lado a outro do quarto grávido
de luminescências. Depois ficou parado num canto, como se me
convidasse a ouvir segredos.
O interlocutor era incontestável sumidade. Eu, como caloura
em véspera de exame, peguei lápis e papel, discretamente iluminados
pela luz do celular, e me pus a rabiscar em página vazia
tudo o que me era confessado. Até que, sem perceber, caí em
sono profundo. Ao amanhecer, ainda descansava em meu quarto
o ilustre visitante. Tomada pelos afazeres cotidianos, somente horas
depois é que me apercebi da partida. Meu coração acolheu
bem a despedida. O sol não é astro de caber na palma de uma
mão. Contudo, mão tocada pelo sol é mão inscrição. Nela, o que
se vê e lê é segredo de vaga-lume:
– São pálidos os primeiros instantes da aurora. Ainda prenhes
das sombras do poente, anunciam páginas nuas, a serem
vestidas à medida que rompe o novo dia. O mais tímido sinal
de esperança faz nossos pés se agitarem em desejo de caminhada.
Mas, logo ali, a nos espreitar, a indesejada das gentes escarnece
da nossa contingência, e nos sugere, por meio de números em
ascendência, não mais haver panaceia possível. As macas comunitárias
se convertem em prenúncio de cruas despedidas. Não
há mais abraço. Não se pode velar o amigo morto. Pais e filhos
choram os abismos que os separam. Nossas certezas vagam em
suspenso, a nos exigirem um esforço sobre-humano para esperar
por um tempo que não assumiu conosco nenhum compromisso
de encontro. Longas noites emergem em nossos dias. As palavras
se esvaziam de sentido e nossos lábios se perdem em silêncio. No
caos interior que nos envolve, para se inscrever como suportável,
a experiência da pandemia requer o transmudar-se em vaga-lume.
São eles que invadem nossas almas, desde que lhes ofereçam guarida,
para iluminar insônias e desencantos, e anunciar que cada
crepúsculo esconde um amanhecer.

EM - PANDEMIA DE PALAVRAS - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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