quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

IN-FINITA APRESENTA... A PAIXÃO - ESCRITOS E DEMÊNCIAS

Por vezes o melhor que podemos fazer por um livro, e seu autor, é dar a conhecer a primeira impressão. Assim sendo, aqui fica o prefácio que Armando Nascimento Rosa escreveu para o livro, A PAIXÃO - ESCRITOS E DEMÊNCIAS, de João Dordio. 

Paixão da Poesia

«O ‘logos’ – palavra e razão – divide-se pela poesia, que é a palavra, mas irracional. É, na realidade, a palavra posta ao serviço da embriaguez. E na embriaguez o homem é já outra coisa mais que o homem; alguém vem habitar o seu corpo; alguém possui a sua mente e move a sua língua; alguém o tiraniza. Na embriaguez o homem dorme, cessou preguiçosamente a sua vigília e já não se afadiga na sua esperança racional. Não só se conforma com as sombras da parede da caverna, mas, ultrapassando a sua sentença, cria sombras novas e chega inclusive a falar delas e com elas. Atraiçoa a razão usando o seu veículo, a palavra, para deixar que por ela falem as sombras, para fazer dela a forma do delírio.»
(María Zambrano, Filosofia e Poesia)

Pede-me o João Dordio algumas palavras para servirem de introdução a este seu novo volume de poesia em prosa, e eu aceitei fazê-lo, mas são palavras supérfluas, sei-o bem, uma vez que estes seus escritos falam por si sem a necessidade de mediação junto aos leitores que se cativarem, sintonizados, pela sua «incontinência verbal», assim designada, irónica e objectivamente, pela voz poética que aqui fala, intérmina e insone. «Esta noite há uma incontinência verbal na minha escrita. É mais uma noite de insónia... sempre necessária para eu voltar para aqui. Sempre para aqui! Para escrever!» (JD)
Para Dordio, a escrita mostra-se como um acto contínuo de paixão; palavra primeira do título deste livro, à qual regressarei mais adiante. Dordio inventa a personagem de um Poeta, seu alter ego literário, e, estando oculto e exposto por esta sua intensa persona, ela proporciona-lhe livre curso a uma litania perpétua, um êxtase com a própria ideia de poema a haver que, em embriaguez logorrágica, se derrama como o vinho dionisíaco; esse mesmo vinho que alimenta e atordoa a personagem do Poeta que connosco comunica, incessante, pela pulsão da escrita.
Uma escrita que mantém um diálogo de eros, mesmo que a voz interlocutora não seja escutada pelo leitor, mas apenas adivinhada, na intimidade que partilha com a personagem do Poeta. Dordio dialoga em permanência nestes escritos com a entidade a que Carl Gustav Jung, psicólogo inspirado pela arte dos poetas, chamou pelo nome latino de anima; essa figura feminina, metafórica e mítica, que projectamos interna e exteriormente nos nossos relacionamentos passionais e que está muito activa em toda a psique criativa, dinamizando-a (verbo ele próprio filho da anima), como musa não já proveniente do Olimpo de outrora, mas antes da vida interior dos poetas, do seu inconsciente. Não é por acaso que a psicologia junguiana nos diz que a morada dos deuses antigos passou a ser, a partir da modernidade, o inconsciente, que também sonha acordado a linguagem dos mitos.
E há deuses nesta escrita, várias vezes nomeados, que instigam a palavra poética, e nos quais o sujeito da escrita reconhece o papel fundador da imaginação, bem como a persistência da alma (a anima) e da paixão que sustentam a escrita.
O peso dos meus livros leva o peso da minha paixão. Talvez por isso, venhas comigo em cada letra, em cada frase, em tudo o que até os deuses sonham! Porque eles também sonham! Escrevi que sim! Li que sim! Imaginei que sim!
Os deuses sonharam, um dia, com o peso dos livros dos poetas. Bem calculado, logo perceberam que era assim que os iriam fazer voar. Com alma! Com paixão!
O voo das asas é uma imagem recorrente nestes escritos de Dordio, aplicado ao voar dos poetas: «Só os poetas voam por dentro». Isto dá mesmo azo a uma curiosa parábola que conjuga a imagem material do pote (cujo conteúdo se adivinha pleno) com a natureza dos poetas, a presença dos pássaros, a imaginação que concebeu os potes e, em suma, o lugar originário e primordial desta mesma imaginação genesíaca: a infância. Como se o autor nos quisesse recordar que a chave da criação poética radica na capacidade de conservar viva em nós, ao longo da vida, a criança aventurosa e sonhadora que começámos por ser no alvor da nossa individualidade vivente.
O pote das asas tem uma tampa que fecha mal e ficou aberto. A cada duas asas que se soltarem, vive mais um pássaro. Os poetas parece que escolheram também duas, mas são daquelas para colocar por dentro. São potes apenas parecidos com os outros por fora, mas que são muito diferentes no seu interior.
O voo dos poetas não atrapalha o dos pássaros. E quando eu abrir a gaiola do teatro para ir buscar mais potes, uns irão voar por fora e outros irão voar por dentro. Uns irão levantar voo e vento e muito vento... outros mais folhas e mais letras.
Os potes da minha imaginação fizeram-me criança a vida toda.
E voltemos à paixão que tutela este volume; palavra crucial no entendimento do gesto poético. Na sua raiz grega, paixão deriva de pathos, termo de assinalável riqueza semântica. Pathos é sofrimento e dor, isto é, verbaliza tudo o que é fonte daquilo que nos afecta de algum modo, que nos transtorna e transforma, que nos (co)move e modifica. Na sua vertente médica e fisiológica, gera a palavra patologia e seus derivados; na sua vertente de experiência psicológica, frutifica em simpatia, antipatia ou apatia; e na sua vasta implicação existencial e filosófica, em confronto com o logos enquanto sinónimo de razão (de que fala Zambrano, com filosófica claridade, na epígrafe escolhida), pathos deu à luz a palavra paixão, essa doença iluminada da psique que arrebata o corpo e os estados da consciência a que chamamos mente e espírito.
A paixão, como bem o sabemos, pode ser, na desrazão que a move, um lugar demencial, e talvez por isso Dordio adicione a palavra ‘demências’ à expressão que dá título aos escritos deste livro, como se nesse gesto legitimasse a voz que dita estas torrentes de palavras; uma vez que é o próprio Poeta a dizer-se despojado dessa mesma mente que, ainda assim, nos fala de forma inteligível. Identifico, pois, esta demência, declinada no plural, com a condição turbulenta do caos que gera o cosmos; visto que a palavra do poema é aquela capaz de dar voz ao delírio (demens), resultando enfim numa forma de conhecimento (sapiens). Um conhecimento que é alma, corpo e escrita, numa fusão das várias frequências com que a vibração múltipla das coisas, que existem e coexistem connosco, se manifesta.
Seja aqui dada a palavra final a João Dordio, na sua indagação que pergunta por esta peculiar paixão da poesia, capaz de envolver, num só amplexo, os sentimentos e os corpos que os experienciam, a tinta e o papel que tornam em matéria legível as palavras com que traduzimos em verbo os nossos sonhos. E desta erótica poética, nasce essa criança admirável, ruidosa e irrequieta, chamada poema.
- Mas que paixão é esta?!
Esta é a paixão dos poetas! Um tormento de oxigénio! Um inferno de saudades! Um vulcão de sentimentos acumulados e tantas vezes reprimidos, mas que explodem sempre que os corpos se encontram!... ou, simplesmente quando a caneta diz ao papel para a deixar entrar no livro e espalhar tudo pelas suas linhas sem pudores...
Nasce depois o Poema...
O poema que grita! O poema que esperneia!
Lisboa, 12/12/2018
Armando Nascimento Rosa
(dramaturgo, ensaísta e criador musical, professor na Escola Superior
de Teatro e Cinema do Instituto Politécnico de Lisboa

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