A densidade dramática em A memória é um peixe fora d’água, de Patrícia Porto.
O novo livro de
Patrícia Porto é um livro de contos. Editado pela Penalux neste ano de 2018, A memória é um peixe fora d’água apresenta
quadros corriqueiros que ganham densidade dramática. O livro é dividido em três
partes chamadas aqui de tombos (Os ossos no porão – 19 contos, Os crônicos – 5
contos e Fogaréu no céu, exílio na terra – 10 contos), totalizando 34 contos
curtos, mas que apresentam a tensão trágica própria do drama. E não poderia
faltar a referência aos mitos em vários contos. Massaud Moisés em
seu Dicionário de Termos Literários, assim disse: “No tocante à linguagem,
o conto prefere a concisão à prolixidade, a concentração de efeitos à
dispersão”. Temos nesses contos admiráveis a concentração de efeitos literários
e complexos que adentram nas camadas mais profundas de nossa individualidade,
fazendo o diálogo entre os elementos exteriores e interiores. Os contos ganham
densidade psicológica num curto espaço de tempo, eis a estratégia narrativa
desta grandiosa escritora Patrícia Porto.
No conto
“Coturno 36”, temos a figura da personagem que é uma moça que quer usar um coturno
36 e pede ao padrasto esta incumbência de conseguir para ela este objeto de
cunho masculino, já que no Dicionário Houaiss se diz que o coturno é
uma bota de soldado. O machismo do pai mostra o preconceito com relação a este
desejo da moça. E mais uma vez aqui a referência ao teatro se faz presente,
pois num dos significados de coturno no mesmo Dicionário se revela o
seu uso antigamente por atores nas representações, especialmente nas tragédias.
Esse objeto mostra uma imponência de quem o usa, figuradamente. A personagem
demonstra seu poder e força ao se comparar à figura do homem. É uma mulher
fálica que quer se sobressair perante o machismo do padrasto. O final é
surpreendente, deixando-nos impactados diante do poder desta moça imponente. O
padrasto fala: “E tu é homem? Vai usar coturno pra quê?” Com seu dinamismo
masculino-feminino, a moça resolve a questão pela agressividade e violência. No
sentido figurado, o uso do coturno representa nobreza, muita importância e
imponência.
No conto
“Ícaro”, mais uma vez a presença da densidade dramática, típica da tragédia,
mas que é iluminada pela força figurativa desses ricos e profundos contos. A
personagem diz: “Ícaro morreu aos sete meses dentro da minha barriga”. E
continua: “Fiquei anos me odiando pela escolha desastrosa do nome”. A ideia de
culpa é uma dos elementos desse conto magistral. Ícaro queria voar além, até o
sol, e, por isso, ganha o abalo de sua queda trágica. As imagens da vida e
morte, nascimento e queda, comparecem neste belíssimo conto. Aqui os símbolos
da subida e da descida, da anábase e da catábase se espelham paradoxalmente. A
ensaísta Danielle Perin Rocha Pitta, no texto crítico “Iniciação à teoria do
imaginário de Gilbert Durand”, assim disse sobre este importante teórico das
estruturas antropológicas do imaginário com relação aos símbolos metamorfos:
“São aqueles relativos à experiência dolorosa da infância. A queda tem a ver
com o medo, a dor, a vertigem, o castigo (Ícaro). Mas a queda frequentemente é
uma queda moral (pelo menos no Ocidente) e tem então a ver com a carne, o
ventre digestivo e o ventre sexual e daí, com o intestino, o esgoto, o
labirinto, e o cair-se no abismo, e o abismo pode ser tentação.” O gerar a vida
tem cheiro de morte e a ideia da culpabilidade materna se apresenta neste conto
dramático e simbólico.
No conto “O
método”, temos a tensão entre dois seres, um casal, homem e mulher. Encontramos
a reciprocidade e o paralelismo, a mesma moeda com que se paga na relação entre
ambos. Com seres tensos como numa corda esticada para os dois lados, vemos a
tão intrigante “guerra dos sexos”. Ele se apresenta como desinteressado pelos
gostos e assuntos da mulher. A incomunicabilidade dele forma uma teia de aranha
entre os dois, minando o relacionamento conturbado: “Claro que ele não acredita
em nada do que eu digo. Nem eu acredito em nada do que ele diz”. A palavra
“paz” cria um clima denso, na verdade. Há uma reversibilidade irônica, pois, na
verdade, não é a paz que impera no casal, mas sim o conflito. Ele se
caracteriza pela secura, sem amor, até mesmo no sexo, que se tornou uma coisa
mecânica, por obrigação dele. Ele tem todo um método. E por isto, ela vai
tentar reconfigurar o espaço deles e não consegue. Ela tenta redesenhar o
relacionamento pelos objetos da casa, mas não se sente confortável e tudo volta
para o mesmo lugar. Ela consegue criar seu próprio método, pois não consegue se
adaptar ao método dele. Por isto ela flerta com a literatura, com a linguagem
simbólica, para que a realidade não a deixe cair por terra. Enquanto ela é
sentimento, ele é frieza. A tensão está configurada e ela tenta driblá-la com a
criatividade. A solidão, o vazio e a incomunicabilidade se perdem no tempo da
eternidade. Ela escreve poesia para matar o tempo. Ao contrário do amor, o
desamor ganha força: “O amor que não existia dentro do caderno. Nem mesmo o
amor menor. O desamor era tudo”.
Em “O nascimento
de Vênus”, encontramos o contraste entre o trágico e o cômico, mas não deixando
de lado o questionamento da personagem na sua crença ao esoterismo, à
astrologia. No mapa astral, a personagem convive durante anos com o ascendente
errado e após o descobrimento destas veredas “reais” tem um choque, fazendo-a
entrar em conflito com relação aos seus apegos ao misticismo e, num tom, de
niilismo, ela questiona a crença a partir do vazio e do desapego: “Descobri
desta maneira um tanto pitoresca o quanto nos apegamos às coisas, as mais
incrédulas, as menos questionadas, creio”. Paradoxalmente, no final das frases,
ela utiliza uma ironia ácida, a palavra “creio”, que, na verdade, revela a
descrença da personagem com relação à vida e seus percalços. A tensão aqui não
ocorre entre dois seres, mas no interior dúbio e ambíguo da personagem que tem
uma referência errada que quebra com seus padrões de verdade. Há uma
contradição entre o que ela é, sua personalidade, sua persona, com relação à
máscara trágica, sua aparência. Questiona o ascendente por não ter a ver com
ela. A astróloga conta o mito de Afrodite para ela e a questionadora recoloca o
mito de acordo com seu ponto de vista, havendo um jogo psicológico tenso e
denso em sua persona. A ressignificação do mito por Patrícia Porto é
excepcional neste conto, ganhando toda sua força dramática: “O caminho da
verdade é a dialética”. Assim, temos a personagem e seus fantasmas, suas
questões. Mas, por outro lado, a personagem conclui que deve haver uma boa dose
de “fantasia” na nossa vida para que o real não nos choque com sua descrença.
No final do conto, de forma surpreendente ela busca a ciência, o ponderável, “o
equilíbrio libriano”, por assim dizer. Como não nos lembrarmos aqui do conto “A
cartomante”, de Machado de Assis. Aqui a referência é marcante.
No conto que
fecha o livro, “A gata amarela”, temos a imagem paradoxal da violência e
proteção, ao mesmo tempo, na imagem de uma gata prenha que tem os seus
filhotes. Aqui, temos um conto dentro do conto, criando um grande impacto
literário: “Quando nasci fui adotada por minha avó, a mãe de todos”. Num
processo de seleção, a personagem vai contar aquilo que foi mais importante na
sua infância, o que mais a impactou, pois o conto conciso revela uma grande
concentração conteudística que se reconfigura em várias chaves de
interpretação, criando-se assim um quadro vivo e dinâmico em toda sua expressão
que navega nos múltiplos espelhos das questões que nos são mais urgentes. O
filhote, o que é rejeitado pela mãe é que é acolhido pela menina que se
surpreende com o fim trágico do pobre animalzinho: “Digo isto pensando que sou
filha da sorte: sobrevivi para contar esses sonhos, delírios, memórias, causos,
esses ossos todos da gata amarela. Guardem aí nos porões dessas casas
barulhentas”.
Portanto,
Patrícia Porto consegue aliar a imagem da extensão de sua profundidade poética
a textos curtos que nos têm muito a dizer com seus jogos de espelhamentos,
paralelismos, contrastes, ironia, numa linguagem rica em significados que vão
deixar marcas nos leitores atentos. A força da dramaticidade densa de seus
textos reconfigura a potência do conto que ganha ares de relevância em meio ao caos
da realidade. A persona e a máscara se densificam nas finas letras desta
escritora que tem muita complexidade em seus contos concentrados que revelam a
dimensão do mito e da realidade. Ela une os dois num jogo tenso, mostrando que
a literatura tem muito a dizer para seus leitores. Que ela ganhe cada vez mais
receptores, ávidos por sua primorosa literatura que arranca do abismal a sua
potência de arte verdadeira.
ALEXANDRA VIEIRA
DE ALMEIDA
Alexandra Vieira de Almeida é Doutora em
Literatura Comparada pela UERJ. Também é poeta, contista, cronista, crítica
literária e ensaísta. Publicou os primeiros livros de poemas em 2011, pela
editora Multifoco: “40 poemas” e “Painel”. “Oferta” é seu terceiro livro de
poemas, pela editora Scortecci. Ganhou alguns prêmios literários. Publica suas
poesias em revistas, jornais e alternativos por todo o Brasil. Em 2016 publicou
o livro “Dormindo no Verbo”, pela Editora Penalux.
Contato: alealmeida76@gmail.com
“A memória é um peixe fora d’água”, contos.
Autora: Patrícia Porto
Editora Penalux, 98 págs., R$ 36,00.
Disponível em:
E-
mail: vendas@editorapenalux.com.br
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