sexta-feira, 11 de agosto de 2017

FALA AÍ BRASIL... SILVIA SCHMIDT

PERFIL
I
Muitas em uma morte súbita
[movimento uniforme retilíneo]
nenhuma em comando-sério
no meio do ninho
um amor de menino
um passo em falso , iria ao fundo
era o cadafalso ou quase-número
havia uma brecha eu juro 
parte de mim em fuga 
câmera lenta sob vaga memória
um sorriso labiata rosa 
os olhos em penumbra fria
houve um suspiro profundo na hora
a ponte vazia e o cansaço 
sob a pele morna de um corpo esguio
restou no plano raso deste tempo 
um quarto em labirinto 
roupas sujas soterradas pelo caminho.

II
Não era o fim 
era a contramão a chance segunda
dentro da manhã girassol que se abria
O menino foi ao pai 
a mulher , entre paisagens secretas ,
perdia-se no calor do horizonte em novos destinos
de repente uma escada- caracol
o desterro dos heróis em alteridade
a fertilidade recebida e mais um ninho
a mancha que se fixou lá trás 
ficaria ali mesmo resguardada 
nas letras do romance - chave
PORTAIS de uma mente aberta
fluxograma fractais flutuantes
nomes de muitas miragens -tema

III
congratulamos

IV
Personas se reconstroem 
energia - volatilidade que se refaz
agora , o ontem e o amanha sinalizam paz
Uma cor poliu dentro 
violeta é o signo em astral 
sigo catalizando oxigênio:
es/cre[ver
m[editar] 
em des]contínuo movimento

V
o menino está um rapaz

Poços de Caldas 19/20 de agosto de 2016.

EMERGIR – depoimento: esta oportunidade que presentifiquei junto à curadoria do Instituto Tomie Otake dia 01 de abril a 21 de maio dentro de uma das instalações da artista Yoko Ono – em São Paulo - Brasil foi um momento ímpar em minha vida - porque senti – experimentei já que era esta a proposta da artista contemporânea o acolhimento - ao lado de inúmeras outras mulheres - para trazer à tona - e com coragem - aquilo que muitas de nós não sabemos lidar, ali em nosso dia a dia – o machismo - isto que nos rodeia e que como uma praga consentida - apregoada - e cultural levam-nos a situações quase irreversíveis, muitas perdas traumas e à morte. Quando me deparei em 1997 – em litígio - eu sinceramente não me via envolvida no que hoje eu posso afirmar ser questão de gênero – por mais que eu tivesse informações e senso crítico, minha situação ali e naquele momento era unicamente de foro íntimo e emocional - a tal crise na relação como falávamos entre nós mulheres profissionais e de classe média. Eu mulher independente, mãe independente em plena conquista de espaço profissional e econômico - para o casal não faltava nada a princípio. Não era portanto questão de ordem material. Daí que ter passado por tamanha humilhação e perdas culminando quase com a própria vida, ter feito desta experiência dolorida - o quase feminícido – tema em parte do meu trabalho artístico é porque também tive minha família por perto como suporte - inclusive apoio de profissionais da área de direito e psicologia neste tempos de dor - antes ainda da lei Maria da Penha - um suporte essencial no sentido de me fortalecer e me reestruturar novamente, eu tão produtiva – era ali uma ave abatida e em falência pessoal por anos a fio.

Chamar “aquilo” de machismo não estava a meu alcance – havia afeto envolvido - havia intimidade envolvida e cumplicidade - e não somente “dados frios” dados estatísticos - a matemática do caso - a realidade. No momento do possível crime hediondo - estamos sós - em nossos leitos - em nossos quartos e portanto vulneráveis, absolutamente vulneráveis. Em horários de responsabilidades e de seguirmos a rotina de trabalho e das tarefas diárias - a roupa na máquina a comida no fogo, a faxina da casa, a saída a chegada do mercado – a troca de roupas de cama, no banho desnudas na parafernália das multifunções. A criança por perto. 
Sitiadas. ''Vivo no quase, no nunca e no sempre. Quase, quase - e por um triz escapo.'' A Cidade Sitiada - Clarice Lispector
Daí que "aquilo" passa uma vez passa a segunda vez até que num certo dia nos sentimos frágeis inseguras e com medo e vergonha, a indescritível vergonha da exposição – à família, aos amigos e aos colegas. O medo dentro deste contexto é que faz com que evitemos denunciar, cobrar e punir – nossos companheiros nossos amores pai de nossos filhos. Algo impossível - denunciar – o homem com quem dormimos dividimos tarefas contas e afetos - quase impossível. Estive sete vezes em denúncia nas delegacias de mulheres todas as vezes aterrorizada e vulnerável ao retornar para casa já em separação de corpos mas não de bens - estes que ainda procuro em segunda instância no estado de Santa Catarina – estes anos de luta e resistência.
Eu não sei como eu sobrevivi às chantagens e às milhares de ameaças de morte ao assédio pós separação que continuaram – eu não sei. Havia ali e no momento de ruptura alguma e qualquer outra coisa que eu não consigo nomear ainda: Deus? Sorte? Energia? Aquele segundo - o quase – que nome eu daria, minha gente que nome?  O fato é que sobrevivi - e de lá daquela noite de muito ódio e quase morte - talvez um dia eu consiga detalhar friamente – daquele dia muitos anos se passaram – escrevi Duty Free-2000 – lugar narrativo onde exponho através da onisciência o que poderia ter sido e não foi. Na ficção o algoz recebe o veredicto merecido.  Passados 20 anos é fácil agora - EMERGIR – nesta oportunidade junto de dezenas de outras mulheres que apoiadas no evento puderam narrar – significar os fatos ocorridos e por isso procurar respostas e principalmente soluções. Compreender dados – os números e perguntar o porquê, sempre e mais o porquê de tantos homens cada dia mais matarem e de modo assustador suas mulheres, de onde vem este sentimento - contramão de tudo que se quis lá no início - não era amor? Quem são os culpados: Estado – o sistema do ter e não ser? A História da Humanidade? A Moral? A Escola?  Como lidar - na lei esta elaborada por homens - na estrutura social dominada por homens em clubes de homens, como lidar com este que penso hoje- ser no Brasil-nossa guerra, o 5 país em feminicídio. Se eu como toda a formação que tenho não percebia a resposta e principalmente não me via em um caso clássico de machismo e misoginia que dirá grande parte de nossa sociedade - intrinsecamente imersa no problema e reativa a encarar de frente esta questão... pergunto-me, eu ainda aqui, a sobrevivente. Precisamos sim continuar o debate, e este dentro de um contexto coletivo social economicamente justo histórico e democrático. Debate entre as diversas formas de representatividade. Eu não desisti da vida na verdade tudo que me aconteceu deixou-me potencialmente alerta pró-ativa e com carga suficiente de compaixão por todos nós os envolvidos machos fêmeas e transgêneros. Relatos que li nesta exposição foram de cortar o coração, porque muitos deles aconteceram em plena infância destas mulheres: estupro seguido de morte - assédio moral no trabalho – perdas de seus filhos ali mortos a seus lados a pior de todas as vinganças – Seus algozes eram muitas vezes seus irmãos, amantes e pais, muitos casos de parentes próximos - e por fim seus maridos e companheiros. Precisamos chamar a sociedade para um debate sério que nos leve a educar estes cidadãos seus cúmplices sociais e as mulheres passivas, “as do não é comigo” as do “devem ter feito por merecer” soluções para um novo tempo. Muitas sociedades que passaram por estas dores encontraram saídas - se não via lei - e punição - via educação emocional e inclusiva penso eu que juntas, lembrando-nos em tempo que precisamos reverter estas dores - como quem coloca a mão na pasta grossa de dejetos pútridos – o machismo - este que nos impede de prosseguir e para o bem-estar de todos. A união de nós mulheres e gêneros será para mim como foi em EMERGIR – sinalizador - potencial de transformação. Demais será chover no molhado, atacando indivíduos o político o ator o machista da esquina - um a um - milhares milhões em sua inconsciente incapacidade de respeitar o outro em especial a nós mulheres - é chover pingo a pingo também o sangue que estes nos cobram historicamente. Basta.

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

ADRIANA FALA DE... FORASTEIRA

Puro lirismo. É assim que pensamos Bárbara Lia, autora de Forasteira, ao abrir a primeira página do livro. A alma da poeta que traduz o inconformismo pela desumanidade e que também mergulha nos sentimentos mais íntimos, revela-se a cada estrofe.

Com uma identidade peculiar na escrita e uma personalidade marcante que fica bem pontuada em cada frase, a autora nos conduz por todos os caminhos que a visão da alma poética é capaz de levar. A inquietação infantil do mundo a descobrir, o florescer dos sentimentos, o compreender-se mulher na totalidade dos sentimentos e percepções, o entusiasmo pela vida e os dissabores pelas vivências que deixam marcas, são os reflexos que por entre as palavras que dançam nas páginas bem elaboradas, dessa menina-mulher.

Que fez a travessia pelo mundo e pelo tempo, sem perder a docilidade e o sonho de menina, mas ao mesmo tempo, acumulando no olhar, a experiência e as marcas de quem percebe o ser humano na sua mais dura vertente. Forasteira da vida e de si mesma, segue por vários caminhos, na arte da escrita e mantém inalterado o poder transformador de não se conformar com o feio, o distorcido, o desumano, seja na poesia ou na vivência, e revesti-lo de encanto , beleza e compaixão.

O Livro é o retrato fiel da alma da autora, relatado por Fernando Koproski no prefácio, traduzindo com perfeição o que encontramos na vivência poética de Bárbara Lia: filha de Florbela Espanca com Vinícius de Moraes. E isso já revela tudo.

Um abraço tropical

DRIKKA INQUIT


quarta-feira, 9 de agosto de 2017

FALA AÍ BRASIL... JOÃO AYRES

O poeta comenta –

PENSAMENTO E POIESIS.

A partir do século cinco antes de cristo o discurso adquiria uma outra roupagem sendo direcionado para o seu conteúdo, a sua forma. O efeito mágico, a força do discurso mítico poderoso e de forte impacto era enfraquecida pela necessidade de encadeamentos lógicos
O pensamento ocidental se organiza em sentenças e na maioria das vezes as sentenças obedecem à sintaxe tradicional, representadas pelo sujeito, predicado e objeto

Importante salientar as nossas raízes pensantes como sendo gregas por excelência.

A predicação é fundamental nos moldes da racionalidade ocidental. É precisamente ela que garante a concretude do pensamento enquanto tal. Ela é projeto e também promessa de sentido na medida que na raiz significa apregoar, informar sobre.

O sujeito e objeto se tornam símbolos através da predicação.Toda e qualquer enunciação precisa da mediação deste elemento para existir enquanto tal.

O deslocamento de um eu penso colocado a partir da dúvida metódica cartesiana, próximo que estou do pensamento de Flusser, para um campo no qual esse eu é diluído apontando para uma região na qual pensamentos possam ocorrer independentemente num espiral infinita quando em dado momento um deles possa prevalecer sobre todos e desaparecer igualmente com todos, sugerindo um esvaziar da mente que também duvida de si novamente ao se deparar com o nada num estado por definição temporário.A dúvida primeira que remete ao movimento oposto ao do cogito.

A dúvida segunda que remete ao esvaziamento da mente onde nada é o que é e nem o que poderia ser.

Tanto o poeta quanto o filósofo voltam agora os olhos para esta clareira, para este caos que se insinua de forma lancinante.

Uma necessidade essencial nos leva a representar, está em nós é nossa essência, aquilo que garante o nosso estar-no-mundo.

Este ser aí traz do caos variedades, reflexões condenado que está a ser corruptível em palavras e imagens e chamar este caos e conversar.

Entendo que a raiz de nosso pensamento se encontra na physis, lá onde as derradeiras conexões nervosas desencontram-se de si mesmas.

Ao invés de um eu penso, teríamos um lugar no qual pensamentos ocorrem...

Roland Barthes aponta para o fato de que as linguagens orientais sugerem um interessante caminho em nível de apreensão deste estar aqui.

Tratarei desta questão oportunamente.

In Arte, Palavra e Pensamento João Ayres

mini-Biografia:

Poeta, ensaísta, romancista, compositor, cantor de samba,jazz e blues.
Parceiro e biógrafo de Delcio Carvalho.


terça-feira, 8 de agosto de 2017

EU FALO DE... O QUE É SER POETA, HOJE

A propósito da palestra, que me convidaram a fazer, no próximo dia 9 de Setembro, no CCB, em Lisboa, sobre o que é ser poeta nesta era digital, e enquanto meditava sobre o que falar nesse evento, dei por mim a pensar que nunca antes o termo "poeta" me soou tão depreciativo.

Longe vão os tempos em que ser poeta significava algo de distinto, digno de admiração. Ser poeta era um estatuto outorgado pelos outros e não era toda a gente que merecia ser reconhecido como tal.

Hoje toda a gente chama poeta a torto e a direito sem ter em atenção, sequer, se o que é escrito é realmente poesia. E as redes sociais vieram, também, potencializar essa banalização generalizada que hoje se observa.

Pior ainda é constatar, cada vez com mais frequência, que qualquer um se auto-denomina poeta só porque espartilha meia dúzia de frases, mal escritas e sem conteúdo algum (muito menos poético), em excertos que chama versos e "aqui vai disto que sou poeta".

Pobres mestres, da arte de poetar, que tanto deram e tanto contribuíram para a cultura e para a definição do que significa ser-se poeta. Hoje andam às voltas, perdão, às cambalhotas nas suas tumbas devido à ousadia destes cus mal lavados que se dizem poetas, sem saberem o que a palavra quer dizer nem a importância que outros, em tempos de engenho, lhe davam.

Pobre poesia que nasceste marginal e ganhaste o teu espaço e importância para hoje seres marginalizada na tua essência em detrimento dos intelectuais de vão-de-escada que, em vez de te honrarem e enriquecerem, te vilipendiam com imundície e te popularizam com verve falaciosa que vomitam dos estros secos e vulgares, onde nem a originalidade ocupa lugar.

Sim, longe vão os tempos em que ser chamado poeta era motivo de orgulho. Sim, longe vão os tempos em que se chamavam os bois pelos nomes e não era qualquer um que era considerado vate. Sim, longe vão os tempos em que ser-se poeta era um estatuto ganho pelo reconhecimento dos outros e pelos outros outorgado.

Hoje não entendo esse epíteto com a conotação original. Vejo-o quase como uma ofensa. E não creio que os verdadeiros poetas, que esta língua já deu ao mundo, se sentissem orgulhosos de ver a patente de poeta ser ostentada sem critério e serem ladeados pelos que hoje se auto-intitulam poetas. Desconfio que não lhes agradaria, nem um pouco, verem-se equiparados com quem não sabe distinguir o artigo definido com acento “à” com a conjugação do verbo haver “há”. Tenho uma ligeira desconfiança que não lhes seria fácil digerir estarem acompanhados por quem confunde “disse-se” com “dissesse”. Não me custa prever que não se sentiriam felizes por terem a companhia de quem escreve “caiem”, “saiem”, ou quem “cose” batatas e “coze” meias.

Mas tudo isto sou eu que digo porque não sou poeta... tenho é muito mau feitio. 


MANU DIXIT

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

FALA AÍ BRASIL... TACIANA VALENÇA

INUNDÁVEIS LEMBRANÇAS

Desesperada voltei.
A casa estava lá, do mesmo jeito. As paredes tinham as mesmas cores.
Podia até ouvir o barulho da família. Os dias de festas, papai apressado para a escola, os amigos a jogar no terraço. Mas os pensamentos faziam eco. Faltavam os móveis, os amigos, a família.
Eu tinha que achar o documento. Estaria por lá? Provavelmente não, não depois de tanto tempo.
Escutava o zumbido do silêncio.
Entro no quarto que fora meu. Procuro no guarda-roupas, nas gavetas, nos outros quartos.
Nada. Não havia nada além do cheiro daquelas alcatifas mofadas.
Comecei a espirrar enquanto andava pelos outros aposentos.
Lágrimas escorriam.
Vieram as lembranças. Mas lembranças só não bastavam.
Tinha que achar o documento!
Mas nada! Não encontrei nada!
De repente águas pareciam inundar a  casa.
Vinha de todos os lados. O que teria acontecido? Seria água da piscina?
Parecia lavar tudo.  Mas quanta água!
Olhei então para as escadas. Um corpo era arrastado.
Era o corpo do escritor! Meu Deus, por que ele estaria ali?
Procurava o mesmo documento que eu?
Que loucura. Só podia ser um pesadelo!
O corpo desceu boiando e a cabeça encostou em minha perna.
Num ímpeto movimentei-me para correr.
Mas nesta hora ele abriu os olhos e numa gargalhada que jamais ouvi antes falou:

-Peguei você!

Mini-Biografia:
Taciana Valença - Administradora (Universidade Federal de Pernambuco), escritora, produtora cultural, editora da Revista Perto de Casa (Recife/PE/Brasil) e Diretora Social da União Brasileira de Escritores.

domingo, 6 de agosto de 2017

EU FALO DE... EFEMÉRIDE NO TOCA A ESCREVER

O último ano tem sido muito intenso (e interessante) para o blogue TOCA A ESCREVER.

Primeiro foi o início do apoio de dois novos patrocinadores (Chiado Editora e Edições Vieira da Silva), com o contributo de dois livros mensais, de cada chancela.

A seguir, a 1 de Janeiro de 2017, depois de sete anos a divulgar um poema lusófono por dia (de forma ininterrupta) passou-se a publicar dois poemas diários.

No dia 1 de Junho foi a oficialização da parceria com a IN-FINITA e o alargamento da esfera de acção de ambos os projectos, com a criação de páginas em outras plataformas digitais, que vieram permitir uma maior visibilidade à divulgação que fazemos.

No passado dia 1 de Agosto, tendo em conta o aumento substancial de autores interessados em verem os seus livros divulgados por nós, passámos a publicar três poemas diários.

E por tudo isto chegámos à belíssima marca dos 3000 poemas divulgados (mais de 480 autores) em sete anos, oito meses e cinco dias.

Mas não queremos ficar por aqui e vamos continuar este trabalho para que mais autores e editoras se juntem a nós e possamos inclui-los numa próxima efeméride.


MANU DIXIT 

sábado, 5 de agosto de 2017

FALA ÁFRICA... MACVILDO PEDRO BONDE

NO QUINTAL DA VIDA
Ao Sérgio Raimundo
Maputo, vinte e oito de Julho de 2017
Não sei com que propósito lhe endereço, agora, esta missiva. Por que carga de água os dedos obedecem a este movimento involuntário de tingir um papel cândido. Talvez, porque aquele coqueiro neste instante tem outra idade e os lanhos que sangramos no princípio de noite andam a revisitar a minha memória. Ainda tenho flash daquela tarde em que sentamos ali no quintal da vida a cavaquear sobre tudo e nada.
O Saphala naquele jeito arrojado deixava-se enfeitiçar pelos rios que atravessam as nossas costas. O “cândido”, não perdia a oportunidade de rever as suas fantasias no número 20. Acredito que o bairro Ferroviário ainda esteja aos sobressaltos. O “Verme” guardião das leis oscilava entre o poema bucólico das mantas e às luzes vermelhas da madrugada.
Nas sombras das suas folhas desenhamos um futuro incerto, aceitamos a árdua tarefa de mostrar-lhe os atalhos que ousamos seguir, rumo à Baixa dos laurentinos.
Busco no meu imaginário, o velho Raimundo: as suas estórias, a sua simplicidade e os calos beijando as suas mãos. Naquele quintal que nos desarmou da fragância do asfalto, desbravamos outros poemas, outras canções na pureza do olhar.
“Já não tenho a mesma energia. Cuidem-me desse menino. Os irmãos mais velhos estão na África do Sul. Mostrem-lhe o caminho”, disse o velho Raimundo. Hoje me pergunto: carregamos esse fardo ou na tua desventura à velha chapa amarela de “Hulene” descobriste a verdade nos livros de filosofia?
No quintal onde deixaste brincar as crianças sedentas do abecedário, o quadro negro risca os últimos algarismos no chão. Sei que hoje as crianças já despem despreocupadas as ruas do Diamantino. 
Entre o “Cantinho” e o quintal soltamos o verbo, albergamos a língua, empurramos a barriga como um pássaro que foge da fisga no telhado da morte.
Sinto que os barcos atracaram em charcos que a chuva esqueceu de amar. Ficam-nos as recordações, a saudade da liberdade, as madrugadas ao sabor do vinho.
Hoje, chego cada vez menos aos becos do Diamantino. As marcas do tempo da senhora que estende a sua capulana são a campainha da tristeza que nos corrói a alma. A música que invadia os quintais aprisionou-se nas chapas do desespero.
A padaria fechou. As barracas fingem adornar nossos copos com uma oração fria. A boca diz o inverso nos olhos carregados do vazio.  

Breve biografia
M.P.Bonde nasceu a 12 de Janeiro de 1980 em Maputo. Foi membro do projecto (JOAC) e do colectivo Arrabenta Xithokozelo. Em 2017 lançou a sua primeira obra literária “Ensaios Poéticos” pela Cavalo do Mar.

Podem ler o texto que José Manuel Martins Pedro, correspondente de autores africanos, escreveu sobre o autor, Macvildo Pedro Bonde, neste link

    

sexta-feira, 4 de agosto de 2017

ADRIANA FALA DE... ENCANTOS DO CAFÉ


O Café é a bebida mais consumida no Brasil, não apenas pelo sabor e aroma que nos traz aquela sensação de aquecimento e prazer, e perfuma o ambiente, mas também por ser a bebida oficial que representa encontros, simpatia e boas vindas.

E é nesse clima, de encontros que apresentamos a escritora brasileira Anapuena Havena que está lançando em Portugal o livro Encantos do café.

Escrever era um sonho antigo, que tornou-se possível quando decidiu dedicar-se exclusivamente à criação de seus filhos. A partir dessa dedicação, viu o seu sonho de criança ressurgir e tornar-se realidade. Como escritora, tem como principal missão difundir o conhecimento por meio de histórias encantadoras e envolventes.

Encantos do Café é um romance histórico composto por fortes elementos da história do Brasil, contextualizado no importante período denominado Ciclo do Café. O livro com uma linguagem que prende a atenção do leitor e também faz viajar no tempo, conta a saga de uma família de imigrantes italianos.

Após a perda de todos os seus bens e para fugir da crise em que a Itália se encontrava, uma família italiana decidiu mudar-se para o Brasil. Seu destino era a Fazenda Boa Fé; propriedade da família Arutes e uma das maiores produtoras de café do século XIX. Mas chegando ao Brasil, ficou evidente que a vida não seria nada fácil ali e que a tão sonhada melhoria de vida no Novo Mundo poderia ser uma falsa esperança. E apenas uma certeza restava à jovem Gertrudes: ela não deseja aquela realidade..

Sobre a autora:

Anapuena Havena, fez a sua primeira publicação com a obra infantil O príncipe que não sabia brincar, em 2016. Em 2017, publicou o romance Descobrindo a nobreza do amor, participou da antologia poética Além da Terra, Além do Céu e da antologia de contos infantis, Histórias para dormir e sonhar. Foi também classificada para o Prêmio Sarau Brasil 2017. E agora lança em Portugal o romance histórico Encantos do café.

Para comprar o livro:



DRIKKA INQUIT

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

EU FALO DE... FUI QUASE TODAS AS MULHERES DE MODIGLIANI

Não é segredo para ninguém o grande apreço e admiração que tenho pela autora Graça Pires.

Tal como escrevi em 2013, num artigo sobre o lançamento de um dos seus livros, Graça Pires é uma poeta de mão cheia que não tem recebido o devido reconhecimento, por parte dos pseudo-entendidos, pela sua vasta obra, apesar dos inúmeros prémios literários recebidos.

No entanto, esta enorme poeta, não se deixa abalar pela quase anonímia do seu percurso e continua a presentear os leitores (onde orgulhosamente me incluo) com obras fascinantes e de grande valor.

É o caso do seu recente trabalho - FUI QUASE TODAS AS MULHERES DE MODIGLIANI. Um livro que prova, uma vez mais, a qualidade da escrita de Graça Pires.

Este pequeno livro, com poemas baseados em 40 quadros de Amadeo Modigliani, artista plástico italiano, radicado em França, é um grande contributo, não só para a poesia lusófona, mas também, e porque não dizê-lo de boca cheia, para a poesia universal.

Inspirada ou, melhor ainda, guiada, pelas criações deste pintor, Graça Pires trabalhou as palavras de forma a casá-las com cada um dos quadros, dando vida a cada uma das mulheres retratadas.

Este tremendo e fascinante exercício de criatividade não resultaria tão bem se a autora não tivesse, embrenhadas em si, todas as características necessárias para ser uma poeta de excelência; especialmente a capacidade de discernimento e trabalho árduo.

FUI QUASE TODAS AS MULHERES DE MODIGLIANI é mais que um livro de poesia. É uma obra de arte; uma tela de palavras sobre outras telas. Este é um daqueles livros que vai muito além das suas intenções primeiras. O mesmo é dizer que, para além de ser um grande livro de poesia, é também um enorme roteiro sobre parte da obra de Amadeo Modigliani.

Recomendo sem reservas este livro. Boas leituras.

MANU DIXIT

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

FALA AÍ BRASIL... PATRÍCIA PORTO

Ódio made in Brazil

Um jovem brasileiro foi assaltado e levaram seu celular. Ele fez o que todo cidadão tem o direito de fazer: prestar queixa. Foi à delegacia e pediu para fazer um boletim de ocorrência. Mas, numa cruel inversão dos fatos, saiu de lá espancado por ser homossexual. Quando leio a notícia, lembro de Brazil, o Filme, produção dos anos 80, uma distopia que trazia em sua trilha sonora um dos nossos ícones nacionais, a música “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso. No filme, o poder é exercido por um Estado totalitário, que controla a todos através da burocracia e da vigilância por computadores. E, em nome deste controle, qualquer relação de amor se torna proibida.
Diante deste caso e desta distopia, pergunto: quem entre nós nunca se sentiu vítima de um gesto, uma palavra, um olhar de intolerância? Quem já passou por isso sabe à flor da própria pele o quanto o ódio faz doer, e, talvez, tenha aprendido pela dor que a melhor resposta possível é uma resposta política: a luta, a luta na ação – pelos direitos humanos, sociais e civis.
Desde que o mundo é mundo, os seres humanos exercem os podres poderes da intolerância – seja para humilhar, negar, apartar ou desprezar o outro. Diríamos também que esta é uma herança complexa de nossa vida social coletiva se levarmos em conta toda a nossa história pelo mundo, tão marcada por ações e reações resultantes da hostilidade levada às últimas consequências. São atos de violência e barbárie ocasionadas pela não aceitação da diferença e pela retroalimentação do ódio entre os povos, que só deixaram deste legado as experiências de guerras e genocídios, as maiores tragédias humanas. Temos muitos exemplos na nossa história, incluindo a recente.
A vida cotidiana, assim como as mídias sociais, nos aponta que estamos diante de um número importante de pessoas capazes de cometer atos de violência por não concordar com ideias diferentes das suas, por não aceitar um modelo político diferente, uma raça diferente, uma classe social diferente, uma religião que não seja a mesma, enfim, por não tolerar a diferença entre os seres. Paradoxalmente, tudo o que somos e fazemos só vai nos singularizando dentro da própria trajetória humana. Somos diferentes, diversos, igualmente diferentes.
A tentativa de igualdade começa, sobretudo, pelo respeito à diferença, por uma espécie de amor à diferença. E por que não podemos mais deixar o amor de fora da resposta política? Porque o ódio está vencendo – o ódio às mulheres, aos negros, aos pobres, aos marginalizados, aos nordestinos, aos homossexuais. Ódio, ódio, ódio… O ódio que tem sido usado como bandeira “política” para se chegar ao poder pela pior das vias, a da violência.
Ora, sabemos o quanto isso pode parecer desagradável: disponibilizar-se para amar, amar para além do seu raio de segurança. Afinal, o amor foi vulgarizado, o ódio não. E não é fácil como num estalar de dedos e pensamentos. É um exercício contínuo de aceitar e ser aceito, é um exercício extraordinário de consciência. Até porque é muito mais fácil sentir raiva e guardar ressentimentos. Amar é ter a audácia de assumir a sua parcela mais humana – é tirar a casca, a couraça e deixar de lado a mesquinharia, a falta de gentileza, de empatia, de solidariedade.
A perplexidade contemporânea nos coloca diante de atitudes para lá de esquizoides, se pensarmos nas últimas e tantas demonstrações de ódios explícitos que vão ocorrendo no mundo – e aqui no nosso país – numa onda crescente e assustadora. Poderemos nos questionar se estamos de fato perdendo contato com nosso lado humano, com nosso humanismo, perdendo também a capacidade de enxergar o outro. Para onde então caminha a nossa humanidade? São tantos os episódios de confrontos. E por que os fragilizados são as principais vítimas de tanto desprezo? Porque há neles um sentido gregário de identificação, porque há neles um sentido que os une pela diferença e pelo testemunho da história que tantas vezes os violenta e massacra como minorias.
Mas aos políticos que ostentam a bandeira do ódio, devemos dizer nas ruas que é possível guardar uma medida de crença, talvez, utopia – a mesma que nos faz suportar a existência, o engasgo, e que nos faz também suportar tantas mazelas, seja nas atuais injustiças, no Congresso, nessa estrutura em metástase.
Espero e devo crer que boa parte da população brasileira quer mudar este quadro caótico de anomia. E, com bastante esperança, quero acreditar que muita gente não vai compactuar com esse dito fascismo de ocasião. A maioria de nós ainda acredita no Brasil e o faz porque ama, sente, compreende, escuta, se solidariza. É claro, precisamos ir às ruas, lutar por nossos direitos usurpados. Precisamos nos levantar com coragem (palavra de origem latina que une Cor + Agir e que significa “agir com o coração”), mas não no sentido passional. Agir com o coração aqui é reunir forças para lutar pela democracia com amor, que é uma ponte, uma bandeira que nos conecta ao outro sem revanchismo.
mini-Biografia: Patricia Porto


Graduada em Literaturas Brasileira e Portuguesa, Doutora em Políticas Públicas e Educação, professora e poeta, publicou a obra acadêmica "Narrativas Memorialísticas: Por uma Arte Docente na Escolarização da Literatura” e os livros de poesia "Sobre Pétalas e Preces" e "Diário de Viagem para Espantalhos e Andarilhos". Participou, ainda, de coletâneas no Brasil e no exterior, integra o coletivo Mulherio das Letras e é colaboradora do portal da ANF (Agência de Notícias das Favelas).

terça-feira, 1 de agosto de 2017

ADRIANA FALA DE... POEMAS ESCUROS

Um brincar de esconde-esconde, no escuro. Esse é o convite de João Ayres. Caminhar dentro de si. Adivinhar percepções. Sentir o olhar de dentro, seguir pé ante pé, sem saber o que se está à frente. Um mergulho nas entrelinhas e na simplicidade da concretude da palavra e da alma exposta, em carne viva.

Na fome, na sede, no desejo, na angústia, na insatisfação, na revolta... nos espaços vazios da vida, no estar só no meio da multidão, porque a insatisfação jamais será saciada. E também o sentir-se pleno de tudo, quando a frase jorra, e extravasa, unindo as letras com maestria.

É um livro que a cada poema se redescobre um ponto de luz, ao meio dos abismos, da solidão, do breu, do escuro do dia ou da vida, do caos do humano que habita no poeta e em cada um de nós. Ficamos bem próximos dessa profunda busca por sentidos, como se tateássemos as paredes no escuro, buscando apoio e um caminho.

Poemas escuros nos dão a visibilidade certa, em cada frase construída, com insinuações irônicas, por vezes remetendo à poesia marginal, por vezes convidando para o aconchego do abraço, ou nos acompanhando na viagem em busca de nós, no vazio e escuridão do nosso interior, nem sempre descoberto, percebido ou confessado.

Palavras simples que se encaixam, se completam, lapidadas pela mão iluminada do Poeta, que constrói o caminho e nos conduz igual a um pirilampo, por entre esses Poemas Escuros.

Um abraço-tropical

Adriana Mayrinck

DRIKKA INQUIT