terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Caxica – CARLA DE SÀ MORAIS

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Foram sem dúvida as férias de verão mais espectaculares que ela viveu. Filipa desejou que elas nunca mais chegassem ao fim.

Naquele ano, os seus pais, sempre receosos pela sua saúde frágil, deixaram-na na Caxica, uma das fazendas de café do tio António, irmão mais novo do seu pai.

Quando se entrava na fazenda, era preciso percorrer cerca de 2km até se chegar à casa. A estrada, era em terra batida e ao longo dela e de cada lado, uma grande mata repleta de árvores e arbustos floridos e de animais que por vezes se surpreendia a passearem descontraídos.

Quando por fim se avistava a casa, era uma grande casa térrea, de estilo colonial e as suas paredes eram revestidas com mosaicos de cor alaranjada; tinha um terraço coberto por uma trepadeira de flores amarelas e o pátio era tão grande, que podia acolher mais de 20 automóveis. Tinha 12 quartos e 10 casas-de-banho, 1 grande sala de refeições e 2 salões enormes para as festas e recepções.

Na parte de trás, havia o equivalente a um bosque e uma parte dele tinha sido transformado em jardim. Uma grande mesa rectangular decorava este espaço, assim como gaiolas gigantes com pombas e pássaros de várias espécies, vários baloiços aqui e ali e até um coreto tinha. Mais afastado, estavam as capoeiras com galinhas, patos e perus, os currais com porcos, cabras e ovelhas e os estábulos com dois cavalos magníficos.

Para uma menina da cidade, que vivia numa casa dita normal, tudo aquilo era deslumbrante.

Mas o seu tio, não era só o dono e o gestor da Caxica, o seu tio era o enfermeiro voluntário que cuidava da saúde física e emocional, dentro das suas competências, de todos os trabalhadores, habitantes da fazenda, que eram seus empregados, que por sua vez, passavam a palavra a outros da região e arredores.

Os dias foram passando a brincar e tratar dos animais, a andar a cavalo com o rapaz da estrebaria, e baloiçar em todos os baloiços.

A comida era ótima e variada. O João, que era o mordomo e também o chefe cozinheiro, levava-a para a cozinha e deixava-a ajudá-lo nas coisas simples.

O que ela gostava mesmo, era de vê-lo fazer o pão com ovos que ele depois moldava em trança e era servido todos os dias ao pequeno-almoço, quentinho, com manteiga e doce de maracujá ou papaia, de manga ou ananás. Omeletes e ovos mexidos ou estrelados, com os ovos acabadinhos de pôr pelas galinhas, chouriço frito, e bifes, bolo de mandioca ou de milho. A mesa era farta e o pessoal doméstico também usufruía desta fartura.

A Francisca, era a sua camareira. Era doce e meiga.

Tinha começado a frequentar a escola há um tempo atrás, e já lia algumas frases. Ficou radiante quando viu os tantos livros coloridos da coleção ‘’Anita’’ que a Filipa tinha levado. O momento de ir para a cama, tornou-se festivo. Todas as noites, depois do banho, sentavam-se as duas no chão a lerem todas aquelas estórias. Houve mesmo uma vez que adormeceram as duas, uma contra a outra até ao dia seguinte. Foi uma grande risada e foi assim também que veio a ideia de pedir ao tio António se deixava dormir a Francisca no mesmo quarto que ela; pedido que foi aceite.

Naquela fazenda, esquecia-se o rebuliço do quotidiano, a vida era vivida com sossego.

O tio António era uma pessoa pousada, calma e muito generosa. O mesmo não se podia dizer do seu capataz que estava sempre em desacordo com ele e de quem todos tinham muito medo; até a Filipa o evitava.

Uma semana antes das férias acabarem, o tio António levou a Filipa em todas as suas expedições pelas fazendas e pelas aldeias onde viviam os empregados que trabalhavam nas roças de café e apesar de só ter 10 anos, viu o humanismo no trato que o seu tio tinha com aqueles trabalhadores, que quase de Sol a Sol labutavam. Ouviu-o com frequência dizer que precisavam de se repousar um dia ou dois e quando eles se negavam por causa do medo que tinham do capataz, ouviu-o também dizer, que ele mesmo lhe falaria.

Este testemunho de altruísmo, de bondade e empatia, ficou para sempre gravado no espírito da Filipa, fazendo com que ela crescesse com verdadeiros valores e com respeito por todo o ser humano, independentemente da sua condição sociocultural.

EM - VERSO & PROSA - COLECTÃNEA - IN-FINITA

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