sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Michelle – ALESSANDRA BARCELAR

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Os fracos morrem sem amor. Não me ligaram para avisar a primeira vez que ela foi internada.
Já tinha aquilo dentro de mim. À noite, quando o único som era o dos ratos andando pelo telhado, eu cobria o rosto. Deixava minha mão descer. Fazia medições para ter certeza do que era ter aquilo.
Sentado de frente para uma janela no centro da cidade, começo a temer pelo encontro marcado para daqui a pouco.
“Faz mais de quinze anos que você foi embora e nos deixou nessa latrina. Com que direito aparece agora?”
“Saí, porque meu corpo só carregava um”.
“Você é um bosta. Acha que sua carteira aberta é uma parte de benevolência”.
Virei as costas e fui em direção à porta do quarto. Temia vê-la de uma forma diferente daquela que conheci anos antes.
“Vamos à benzedeira. Tudo tem jeito nessa vida. Só não tem jeito pra morte”.
“Pra morrer basta estar vivo”.
Seu corpo arfava sobre a maca. Braços amarrados com gazes. Olhos catatônicos. Um tubo enfiado pela boca e lábios arroxeados. Sobre o corpo, um lençol já amarelado pelo uso em outros corpos deixa parte de seu colo nu à vista.
“Sua mãe acha esse jeito estranho. Pergunta se nunca reparei em nada.”
“A loucura faz parte. Acho que é só um jeito de pensar que sai descarrilhado da cabeça”.
Minha irmã chorava copiosamente sentada numa cadeira. Amparada pelo banana do marido, questiona Deus.
As pessoas pelos corredores. Éramos fantasmas para elas. Cada um tem seus próprios doentes e recebe suas más notícias a seu tempo.
“Que porra é essa no seu caderno? Quem é? Eu não acredito que Deus me castigou assim!”
“Sua mãe perguntou sobre essas coisas no seu caderno. Eu disse que era brincadeira de alguém da escola”.
A pele dela há muito era um leito de rio seco. Os lábios roxos em nada lembravam a vivacidade vermelha de outrora. Será que ela ainda tem aquele cheiro? Levei uma surra um dia porque mexi nas coisas dela. Perfume. Batom. Pó. A mangueirinha do chuveiro abriu vergões em minha pele. Chorei por todos os motivos. Passei vergonha na escola.
“Sabe, eu te defendia na escola. Briguei quando te zoavam. Uma vez fiquei com o olho roxo. Aí, um dia, você vira as costas e some.”
“O mundo só é grande se a gente abre espaço”.
“Claro que ela não iria aceitar, mas ela chorava feito pedra minando água”.
Logo vai chegar minha tia. A boa samaritana da família. Usa saia e faz tudo que o pastor manda. Vai me olhar inquisidora. Perdeu tudo, menos a pose. Cumprimentará minha irmã. A filha que ela queria. A filha que ela tentou roubar da minha mãe. Até berço comprado já tinha. Não era justo uma menina bonita naquela miséria.
Ainda há fios espalhados aqui e ali pelo seu couro cabeludo. Suas fotos da juventude mostravam um cabelo volumoso. Usava bobes para fazer os cachos. Nas excursões para a praia, nunca molhava os cabelos. Dizia que frequentava os bailes dos anos 70. Deve ter dançado Jackson Five e Donna Summer.
“Ela nunca soube que era você quem mandava o dinheiro. Eu dizia que era da venda de Avon”
“Todo suor dá dinheiro”.
“Eu fingia não ouvir as piadas quando passava no bar. Às vezes, eu pensava em estourar e virar um diabo doido lá dentro. Sei que te achavam uma aberração e que a culpa era minha. Para os outros, a culpa é do pai, que não deu exemplo”.
“O exemplo é só uma embalagem para não derramar o que tem dentro”
Meu pai apareceu com o médico. O doutor colocou a mão em seu ombro e fez um afago. Passou pela minha irmã e fez o mesmo. Diante de mim, um susto. Perguntei a ele se ela conseguia entender algo. Ele disse que naquele estado ainda resta consciência. Ela ouve? Sim.
Abri a porta e a enfermeira pediu licença. Coloquei a mão sobre seu colo e segurei sua mão. Senti-a fria, mas ainda arfava sob o lençol.
- Eu fiz a escolha certa, mãe. A senhora não aceitou nunca, mas a natureza da gente é um bicho que não dá pra domar. Mãe, eu te perdoo. Guardamos rancor demais pra levar agora. Eu só queria um pouco de atenção, porque eu sempre soube do que eu gostava.
Chorei e abaixei a cabeça. Beijei sua testa já gelada. Seu peito subiu alto. Cheio de ar.
Um apito ininterrupto tomou conta da linha verde na máquina ao seu lado.

EM - VERSO & PROSA - COLECTÃNEA - IN-FINITA

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