domingo, 10 de outubro de 2021

A cela - ANGELITA GUESSER

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Sexta-feira 16 de outubro, saio da sala que religiosamente frequentei por 10 anos, desço os poucos lances de escada e já estou na rua. Caminho pelas calçadas de Pelotas, sutilmente coloridas por seus imensos ipês amarelos. Me dou conta que é início da primavera. Estou parada na esquina da Andrade Neves com Gomes Carneiro por mais de 10 minutos. O vento suave traz o cheiro agradável das flores que recobrem os canteiros dos edifícios, me causando uma sensação agradável, mas meus pensamentos, estão agitados como um furacão. Com grande esforço consigo ordenar alguns poucos, e repasso mentalmente as orientações da terapeuta. Meu coração, bem mais acelerado que o normal, prenuncia um ataque de pânico. Aceitei a alta, agora tenho que ser forte. Sempre soube que nunca fiz ou farei algo de imponente na vida, nunca construirei monumentos ou catedrais, mas acabar com as conquistas acumuladas com muito custo nesses anos de terapia, seria como assumir a continuidade do trabalho de Jack Estripador, em mim mesma, repetidamente. Continuo a caminhar por mais duas quadras, e não conseguindo controlar a respiração me encosto no grande paredão de cimento cinza que está à minha frente. Fecho os olhos, na tentativa de retomar a lucidez. Tento respirar lentamente, uma, duas, dez vezes, sem sucesso. Ainda imóvel, com os olhos fechados, encostada na segurança do paredão que não me engole, lembro da técnica de visualizar uma praia deserta, o mar, as ondas – qualquer coisa que me traga um pouco de estabilidade. De repente sinto a respiração retomar seu ritmo normal, sinto meus batimentos desacelerando, acredito que sobreviverei por mais 30 minutos, tempo suficiente para eu chegar em casa. Retomo o trajeto que idealizei por quase uma década, e com passos apressados num ritmo fora do normal, levanto a cabeça e me torno alheia às pessoas que passam por mim. Sigo em frente sempre, vez ou outra os transeuntes esbarram em meus braços, agora trêmulos. Retomo a confiança de 15 minutos atrás, a mesma que me fez sair de cabeça erguida do consultório, continuo a andar. Só penso em Denis, em Giovanna e o quanto quero lhes falar, dizer que me sinto livre depois de uma vida inteira de autoflagelo. Quero estar em casa, estar pronta para seguir, reconstruir nossas vidas de onde paramos. Percebo o movimento frenético das pessoas aumentar repentinamente. Parecem estar com algum tipo de ânsia, vejo o céu escurecendo e todos fugindo da possível tempestade que se aproxima. O vento aumenta sua velocidade fazendo com que folhas e flores rodopiem em todas as direções, num balé frenético, descompassado, mas hipnotizante. Fico tonta só de olhar, sinto meu corpo girar junto com as folhas; o vento está bem mais forte, não mais exala o odor agradável dos jardins, mas sim de fumaça e terra. Parece que estou levantando voo, meus pés mal tocam o chão, só consigo me concentrar em chegar em casa, preciso contar-lhes que tudo acabou, que estou livre. Os primeiros pingos da chuva tocam minha face e, desorientada com toda a agitação das pessoas, percebo que estou perdida, tranco a respiração para manter a calma e sinto alguém me segurar pelo braço. Adélia me seguiu até ali, ela olha firmemente dentro de meu pânico e me conduz até seu carro. Adélia é uma mulher negra, alta e magra, dona de um porte intimidador, mas seguro, também é dona do poder de transformar realidades, principalmente as doentias. Ela é a responsável por me fazer acreditar na capacidade de superação que todos carregamos. Com sua ajuda, em poucos minutos, me encontro parada na portaria de meu prédio. Procuro sem pressa a chave em meus bolsos, até que as encontro inesperadamente em minhas mãos. Permaneço parada por mais algum tempo, tomo coragem e rumo para o saguão. Aperto com as mãos trêmulas o botão do elevador, mas desisto, procuro a porta que leva às escadas. Subo os treze andares e percebo que pouco restou para me impedir de enfrentar o que está atrás daquela porta. Subi com meus próprios pés aqueles treze andares, e dependo deles para chegar até o topo. Quando giro a chave e abro a porta, o tempo volta a correr e me deparo com minha imagem refletida na vidraça — uma mulher frágil com as mãos amarradas. A realidade me assalta e por trás dos vidros vejo Giovanna com seu vestidinho branco, bordado, enfeitado como de uma princesa, linda!, perfumada, sandálias sem meia, como sempre. Há quantos dias não contava o tempo? Por que entregar-se a um hábito sem perguntar a razão? Entre um momento e outro de lucidez lembro que estou ali para uma rápida visita. Ainda apoiada no batedouro da vidraça, os flashs das imagens do corpo de Denis no chão me roubam o momento. Ouço o arrastar de adeus dos pés de Giovanna, com grande esforço olho mais atentamente e vejo Adélia parada ao meu lado. Já é hora de retornar para a cela.

 EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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