sábado, 9 de outubro de 2021

Fuga no Quilombo - ANAMARIA ALVES

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Quando a vida valia menos que um pano de prato.
Festa de formatura de Marília. A menina tornara-se professora. Após anos de esforço para estudar na velha Belo Vale, a 8 quilômetros do Quilombo Chacrinha dos Pretos. Professora quilombola, nem sabia que o seu gesto mudaria a vida de pessoas que se inspirariam em sua história de quem não teve o que comer e ia para a escola com fome, de quem não possuía um uniforme só para si e dividia com as irmãs.
Na festa de formatura, a moça estava proibida de dançar com qualquer homem que não fosse o seu pai. Entretanto, o pai não conseguiu chegar a tempo e ela dançou com um rapaz para não perder a dança. Seu pai chegou no momento em que a valsa terminava, foi para junto da mãe e agiu como pai orgulhoso da conquista da filha. A primeira de oito filhos.
Acabada a festa, nada foi dito e a família foi para casa. Na noite seguinte, o homem chegou bêbado. Todos dormiam.
– Maria, vai chamá a menina!
– Deixa a sua fia dormir, homi di Deusu!
– Eu tô é mandano!
A esposa não chamou a filha. O homem se enfureceu e pegou uma cadeira. A mulher começou a correr e gritar.
– Genti, levanta! Seu pai tá cum o demonho no corpo!
Todos os filhos se levantaram. Eram oito. Sete meninas e um rapaz. Dona Maria pegaria as coisas para sair correndo, mas o homem acertou a cadeira em suas costas. Até hoje não se sabe explicar de onde a mulher tirou forças. Pegou um pano de prato e pôs-se a correr com oito filhos pelo quilombo até a saída pela linha do trem a caminho de Belo Vale. Eram oito filhos e uma mulher caminhando oito quilômetros rumo à casa de sua mãe.
– Mamãe, a Lalá tá chorano di medo!
– Précupa não, genti. Tem fé im Deuso i vamu.
Dona Maria dava as mãos a duas crianças e as outras seguravam em suas saias. A filha bebê nas costas da mais velha. Não havia iluminação e cobras se arrastavam pelo mato à beira da linha férrea.
Aquele único pano de prato serviria para aquecer as costas da filha de saúde mais frágil. Quatro quilômetros caminhados e chegaram a uma ponte que tinha apenas os dormentes da linha férrea, entre os quais em meio ao breu da noite era possível ver o rio que corria lá embaixo, tão fundo quanto o vazio de caminhar na madrugada sozinha e em perigo. A ponte dos Paiva era perigosa e muitos morriam ao olharem para baixo e perderem o equilíbrio.
Dona Maria atravessou oito vezes. Uma com cada criança.
Saindo daquele perigo encontraram um andarilho que caminhava e cantarolava coisas ininteligíveis.
– Nossa Senhora, faiz que ele num vê nóis nem faiz mal eu e os minino!
O homem passou direto.
Já próximos a Belo Vale, passando perto de um pasto alto. Mulher e crianças ouviram um tronco rolar morro abaixo. As meninas se apavoraram. Uma delas se urinou de medo.
– Não iscuta não, genti! Isso é o troço ruim! Tem fé em Deuso i vamu passá! Ocês lembra da música da adoração? Canta!
"A primeira salve Rainha, salve Rainha, mãe de Concórdia! Ô Mãe, verdadeira Mãe! Ô Mãe de misericórdia!"
E todos começaram a cantar, as vozes trêmulas de medo. Quando caminhar e cantar era a diferença entre viver e morrer, oito crianças negras, filhas do Quilombo Chacrinha dos Pretos, entoaram canções sob a única luz possível naqueles caminhos, a lua. Canções sobre Maria mãe de Deus e a luz na qual eles firmaram pensamento para chegarem vivos apesar de tudo.
"A nós descei, divina luz..."
O barulho passou, graças à cantoria. Chegaram a Belo Vale em paz.
Esse conto é real. Sou eu, neta de Dona Maria a imortalizar minha avó e seu amor pela vida e pelos filhos. Maria, mãe de misericórdia. Mãe de oito filhos e avó mais doce que já pisou a face da terra. A Senhora vive para sempre.

 EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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