segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Entre o antes e o depois - FÁTIMA D'OLIVEIRA

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O livro preferido da sua mãe era “Mulherzinhas” (“Little women”) de Louisa May Alcott e a personagem desse livro que a sua mãe mais apreciava era Josephine, a Jo. Como tal, o seu nome era Josefina. Mas todos a conheciam por Jôjô.
Naquela noite de passagem de ano, Jôjô não estava com vontade nenhuma de celebrar. O ano que findava tinha sido malfadado, o ano em que tudo tinha mudado: o ano da pandemia. Quem diria que uma coisa tão ínfima – o vírus –, seria capaz de tais avarias, danos e estragos? E o ano que aí vinha não se adivinhava melhor. Pelo menos, no que a Jôjô dizia respeito. Para onde quer que se virasse, só via pessoas a desejarem, a esperarem e a suspirarem pelo fim da pandemia. Mais a mais agora, com o aparecimento das várias vacinas, havia muito boa gente a pensar que isto da pandemia agora não passava de favas contadas e a atirarem pela janela todas as medidas de segurança estabelecidas pelas autoridades de saúde. Mas Jôjô não pensava assim. Pois ela tinha consciência de que até as vacinas fazerem qualquer tipo de efeito, de que até o efeito das mesmas se começassem a fazer notar, ia demorar muito tempo: o processo ia ser longo. E sinuoso. Portanto, o melhor para todos seria continuar a cumprir as regras de segurança estabelecidas pelas autoridades de saúde. Pelo menos, até se alcançar a tão desejada imunidade de grupo. Ou então, até o vírus de tornar parte do ambiente que nos rodeia. E de nada valia a pena esperar que as coisas voltassem a ser com dantes, pois isso não ia acontecer: tudo tinha mudado. Definitivamente. E quanto mais depressa as pessoas se começassem a habituar à ideia, melhor seria. Para todos.
Veio à memória de Jôjô uma frase de Giuseppe Lampedusa[1]: “É preciso que tudo mude para que tudo se mantenha.” Pois… Mas agora as coisas não podiam ser bem assim… Era preciso que tudo mudasse, sim, mas nada se iria poder manter. Não que esse facto perturbasse muito Jôjô. Ela sabia que o chamado distanciamento social afetava muito boa gente. Mas a ela… não lhe fazia grande espécie. Beijos e abraços… passava bem sem eles. Nunca tinha sido uma pessoa... não, afetiva não era a palavra… afetuosa, talvez. Jôjô podia ser uma pessoa de muitos e profundos afetos, agora de demonstrações... nem por isso. Nunca sabia o que fazer ou dizer e então, não fazia nada: ficava muda e queda. Sempre. Para não meter os pés pelas mãos e meter a pata na poça.
Jôjô também se lembrou de um filme de 2014: “Kingsman – Serviços Secretos”, realizado por Matthew Vaughn e com Colin Firth, Michael Caine, Mark Strong e Samuel L. Jackson. A primeira vez que o tinha visto tinha-o achado bom entretenimento. Mas agora, à luz dos acontecimentos mais recentes, achava-o estranhamente… profético: o vírus SARS-CoV-2, ou lá como é que se chamava o vírus que estava na origem da COVID-19, era a resposta do planeta, que estava a efetuar uma purga.
Ao mesmo tempo, Jôjô achava a doença, a COVID-19, embora transversal, horizontal, vertical e até diagonalmente, extremamente injusta. Porque parecia sempre que pagava o justo pelo pecador. Parecia sempre que era quem tinha menos culpas no cartório, que quem mais levava por tabela, pois a triste verdade era que quem mais merecia apanhar um valente susto, infelizmente também era quem tinha mais acesso aos melhores cuidados de saúde. Por mais injusto que isso fosse ou parecesse. E isso era mesmo, mesmo, MESMO muito injusto: imensa, extrema e tremendamente injusto.
Com o olhar pousado no écran da televisão ligada, mas sem realmente ver o que quer que estava a dar, Jôjô lembrou-se de Brigite, uma residente na casa de cuidados continuados onde trabalhava e que padecia de uma doença considerada rara e com um nome demasiado estranho. Apesar de estar já total e completamente dependente de terceiros para o que quer que fosse devido à progressão implacável da sua doença, Brigite continuava extremamente lúcida e dona de uma mente incomensuravelmente arguta e perspicaz, assim como possuidora de um sentido de humor muito peculiar e sarcástico, acutilante, muitas vezes desarmante. E veio à memória de Jôjô um desabafo amargo de Brigite: que tinha ouvido num noticiário qualquer, em relação à vacina para a COVID-19, que se tinha conseguido condensar 10 anos de investigação em 10 meses. Ora, Brigite tinha plena consciência de que 10 anos era normalmente o período de tempo que separava a descoberta de um novo fármaco e a sua chegada efetiva às farmácias; também percebia que a COVID-19 era uma urgência a nível mundial; mas bolas... 10 anos em 10 meses?... Então e as outras doenças?... Não interessavam?... Era como se as farmacêuticas não vissem com bons olhos o desenvolvimento de certos produtos, nomeadamente de medicamentos que curassem, por não serem rentáveis: era muito mais proveitoso responder aos quês do que aos porquês e lucrativo tratar os efeitos do que as causas. Perante este discurso desencantado de Brigite, Jôjô ficou sem saber o que dizer e apenas acenou tristemente com a cabeça.
Mas agora, nesta noite de passagem de ano, parada a olhar para o écran ligado da televisão ainda que sem realmente o ver e perdida em si e nos seus pensamentos, Jôjô não conseguiu evitar-se sentir entalada entre dois mundos, duas realidades: o que tinha havido e sido, e o que tinha de haver e ser. Entre o antes e o depois. Suspirou e apesar de ainda não ser meia-noite e como não tinha a mínima vontade de celebrar o que quer que fosse e muito menos a entrada no novo ano – ao contrário da grande maioria, Jôjô não tinha grandes expectativas para o ano que se avizinhava: vislumbrava-o antes como uma incógnita: um gigantesco ponto de interrogação –, foi-se deitar.

EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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