quarta-feira, 27 de maio de 2020

DEZ PERGUNTAS MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL - RENATA PENZANI


Agradecemos à autora RENATA PENZANI pela disponibilidade em responder ao nosso questionário

1 - Qual a sua percepção para essa pandemia mundial?

Outro dia eu lembrei de uma fala do compositor baiano Mateus Aleluia dizendo que “sobre o tempo presente não se diz nada”, acho isso de uma sabedoria imensa que eu ainda não consigo ter. Tenho um ímpeto muito grande de querer avaliar as coisas no momento em que elas acontecem, mas tem um pedido de espera implícito em tudo isso que estamos vivendo, eu desconfio. Como disse o Guimarães Rosa “deus é paciência, o resto é o diabo”. Só saberemos o que foi quando tomarmos distância, e esse tempo ainda não é agora quando estamos mergulhados até os ossos nisso. O que sei é que todo dia preciso distrair meu medo, tentar vencê-lo, e às vezes perco feio. 

2 - Enquanto autora, esse momento afetou o seu  processo produtivo? Em tempos de quarentena, está menos ou mais inspirada?

Acho que consigo observar a minha escrita em dois lugares agora: o do exercício de desopilar e expurgar fantasmas, e o de potência criadora, que é uma outra coisa pra mim, de me conectar com as potências da vida e das belezas ocultas que existem em tudo. O primeiro tem sido um escape, e o segundo um mergulho. Oscilo entre os dois para sobreviver, mas sem me esquecer que talvez um estado não exista sem o outro - pra mim, claro, que é de quem eu posso falar. Não estou mais inspirada agora porque não acredito muito nisso de inspiração, acho que a escrita é um ofício como outro qualquer que se melhora enquanto se faz, mas acho que posso dizer que estou mais atenta, mais disposta a reparar. É desses longos instantes de observação, sensação e pensamento que nasce qualquer coisa que eu possa chamar de literatura, nesse sentido é bem-vindo o tempo para quem tem o enorme privilégio de tê-lo agora.

3 - Quando isso passar, qual a lição que ficou?

Ainda não sei… mas hoje li um poema do Drummond chamado “O sobrevivente” que eu não conhecia e me deu um estalo de aprendizado desses que na mesma hora você já sabe que vão ficar com você para a vida toda. Ele diz assim: “Os homens não melhoram e matam-se como percevejos. / Os percevejos heróicos renascem. / Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado. / E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.”

4 - Os movimentos de integração da mulher influenciam no seu cotidiano?

Eu tenho algumas práticas diárias para me conectar com o meu feminino, um deles é a mandala lunar, um diário onde eu anoto as minhas emoções, os meus aprendizados, aquilo que eu consigo observar no meu corpo e na minha mente. Comecei há 1 ano e meio e mudou completamente a maneira como me entendo. Mas, falando de uma perspectiva mais social, ser mulher e viver direta ou indiretamente daquilo que a nossa caneta e os nossos dedos colocam no papel é um ato político imensurável, ainda hoje, e devemos isso a todas que lutaram antes de nós. Suas vozes estão dentro da minha, mesmo quando eu esqueço.

5 - Como você faz para divulgar os seus escritos ou a sua obra? Percebe retorno nas suas ações?

Esse é sem dúvida uma das minhas fragilidades - ou pelo menos pontos de atenção que me puxam a orelha o tempo todo. Sou muito tímida para mostrar publicamente não só o que escrevo mas principalmente a minha figura. Quando fui viajar para divulgar o meu livro no ano passado, o romance infantojuvenil “A coisa brutamontes”, eu tinha que lidar com meu próprio rinoceronte todo dia. Eu suo frio, gaguejo, invento coisas porque perco o controle do que estou dizendo quando me dão um microfone na mão. É um horror! Meus amigos já até sabem que precisam me aguentar totalmente nervosa nesses momentos. Mas paradoxalmente é maravilhoso também, porque eu me nutro demais desses encontros. A coisa mais emocionante pra mim foi quando uma pessoa, na fila do lançamento que fiz no Rio de Janeiro, disse que queria dar o meu livro para “uma pessoa que ainda não chegou”, e tirou um ultrassom do bolso. Aquilo me desmontou e eu fiquei sem palavras. O retorno pra mim é esse, não é nada além.

6 - Quais os pontos positivos e negativos do universo da escrita para a mulher?

Acho que não tem um ponto negativo quando você se propõe a estar onde quer estar, mas tem sim inumeráveis dificuldades do ponto de vista do gênero, que sabemos bem quais são. Acho que só o que cabe a mim é honrar o espaço que me foi aberto por tantas outras que vieram antes. Quando eu lembro que a Cora Coralina precisou esconder poemas dentro de compotas e distribuir escondido junto com os doces que vendia trabalhando como doceira, eu agradeço pelo lugar onde podemos estar hoje. Há um caminho imenso ainda a percorrer, sobretudo no que diz respeito a conseguirmos vencer barreiras de classe, de raça e de uma falsa competitividade entre mulheres que ainda tentam nos vender como um produto fora do prazo de validade, sabe? Antes de qualquer coisa, eu penso que me reconhecer nesse caminho é honrar quem pisou esse chão primeiro. Salve Carolina Maria de Jesus, Cora Coralina, Cecilia Meireles, Hilda Hilst, Clarice Lispector e tantas outras.

7 - O que pretende alcançar enquanto autora? Cite um projeto a curto prazo e um a longo prazo.

Eita, que ousado! Meu pensamento é muito objetivo nesse sentido, sonho muito mais que planejo. Mas como desejo de curto prazo, eu poderia citar publicar um livro de poemas que me propus a escrever recentemente, centrado na temática da infância. A longo prazo, quero explorar outras formas de dizer, me sentir confortável tentando outras linguagens, gêneros e formatos. Ainda quero escrever um livro com o mínimo de palavras, por exemplo, a síntese é pra mim o maior desafio.

8 - Quais os temas que gostaria que fossem discutidos nos Encontros Mulherio das Letras em Portugal?

A poética das mulheres, a literatura de si, os limites entre os gêneros, a prosa contida na poesia.

9 - Sugira uma autora e um livro que lhe inspira ou influencia na escrita.

Uma? Ai. Hoje é a Sophia de Melo Breyner Andresen. Ontem era a Matilde Campilho. Amanhã pode ser a Alejandra Pizarnik. Eu levo muitas comigo e é uma sorte tremenda essas mulheres todas existirem.

10 - Qual a pergunta que gostaria que lhe fizessem? E como responderia?

“O melhor lugar do mundo é aqui. E agora?”. É uma recriação de um verso do Gilberto Gil que está em um grafite de um muro na cidade onde eu nasci, no interior de São Paulo. Mas eu não faço a menor ideia da resposta. Acho que o tal do “hoje” é a nossa sina.

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