Agradecemos à autora RENATA PENZANI pela disponibilidade em responder ao nosso questionário
1 - Qual a sua percepção para essa
pandemia mundial?
Outro dia eu lembrei de uma fala do
compositor baiano Mateus Aleluia dizendo que “sobre o tempo presente não se diz
nada”, acho isso de uma sabedoria imensa que eu ainda não consigo ter. Tenho um
ímpeto muito grande de querer avaliar as coisas no momento em que elas
acontecem, mas tem um pedido de espera implícito em tudo isso que estamos
vivendo, eu desconfio. Como disse o Guimarães Rosa “deus é paciência, o resto é
o diabo”. Só saberemos o que foi quando tomarmos distância, e esse tempo ainda
não é agora quando estamos mergulhados até os ossos nisso. O que sei é que todo
dia preciso distrair meu medo, tentar vencê-lo, e às vezes perco feio.
2 - Enquanto autora, esse momento
afetou o seu processo produtivo? Em tempos de quarentena, está menos ou
mais inspirada?
Acho que consigo observar a minha
escrita em dois lugares agora: o do exercício de desopilar e expurgar
fantasmas, e o de potência criadora, que é uma outra coisa pra mim, de me
conectar com as potências da vida e das belezas ocultas que existem em tudo. O
primeiro tem sido um escape, e o segundo um mergulho. Oscilo entre os dois para
sobreviver, mas sem me esquecer que talvez um estado não exista sem o outro -
pra mim, claro, que é de quem eu posso falar. Não estou mais inspirada agora
porque não acredito muito nisso de inspiração, acho que a escrita é um ofício
como outro qualquer que se melhora enquanto se faz, mas acho que posso dizer
que estou mais atenta, mais disposta a reparar. É desses longos instantes de
observação, sensação e pensamento que nasce qualquer coisa que eu possa chamar
de literatura, nesse sentido é bem-vindo o tempo para quem tem o enorme
privilégio de tê-lo agora.
3 - Quando isso passar, qual a
lição que ficou?
Ainda não sei… mas hoje li um poema
do Drummond chamado “O sobrevivente” que eu não conhecia e me deu um estalo de
aprendizado desses que na mesma hora você já sabe que vão ficar com você para a
vida toda. Ele diz assim: “Os homens não melhoram e matam-se como percevejos. /
Os percevejos heróicos renascem. / Inabitável, o mundo é cada vez mais
habitado. / E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.”
4 - Os movimentos de integração da
mulher influenciam no seu cotidiano?
Eu tenho algumas práticas diárias
para me conectar com o meu feminino, um deles é a mandala lunar, um diário onde
eu anoto as minhas emoções, os meus aprendizados, aquilo que eu consigo
observar no meu corpo e na minha mente. Comecei há 1 ano e meio e mudou completamente
a maneira como me entendo. Mas, falando de uma perspectiva mais social, ser
mulher e viver direta ou indiretamente daquilo que a nossa caneta e os nossos
dedos colocam no papel é um ato político imensurável, ainda hoje, e devemos
isso a todas que lutaram antes de nós. Suas vozes estão dentro da minha, mesmo
quando eu esqueço.
5 - Como você faz para divulgar os
seus escritos ou a sua obra? Percebe retorno nas suas ações?
Esse é sem dúvida uma das minhas
fragilidades - ou pelo menos pontos de atenção que me puxam a orelha o tempo
todo. Sou muito tímida para mostrar publicamente não só o que escrevo mas
principalmente a minha figura. Quando fui viajar para divulgar o meu livro no
ano passado, o romance infantojuvenil “A coisa brutamontes”, eu tinha que lidar
com meu próprio rinoceronte todo dia. Eu suo frio, gaguejo, invento coisas
porque perco o controle do que estou dizendo quando me dão um microfone na mão.
É um horror! Meus amigos já até sabem que precisam me aguentar totalmente
nervosa nesses momentos. Mas paradoxalmente é maravilhoso também, porque eu me
nutro demais desses encontros. A coisa mais emocionante pra mim foi quando uma
pessoa, na fila do lançamento que fiz no Rio de Janeiro, disse que queria dar o
meu livro para “uma pessoa que ainda não chegou”, e tirou um ultrassom do
bolso. Aquilo me desmontou e eu fiquei sem palavras. O retorno pra mim é esse,
não é nada além.
6 - Quais os pontos positivos e
negativos do universo da escrita para a mulher?
Acho que não tem um ponto negativo
quando você se propõe a estar onde quer estar, mas tem sim inumeráveis
dificuldades do ponto de vista do gênero, que sabemos bem quais são. Acho que
só o que cabe a mim é honrar o espaço que me foi aberto por tantas outras que
vieram antes. Quando eu lembro que a Cora Coralina precisou esconder poemas
dentro de compotas e distribuir escondido junto com os doces que vendia
trabalhando como doceira, eu agradeço pelo lugar onde podemos estar hoje. Há um
caminho imenso ainda a percorrer, sobretudo no que diz respeito a conseguirmos
vencer barreiras de classe, de raça e de uma falsa competitividade entre
mulheres que ainda tentam nos vender como um produto fora do prazo de validade,
sabe? Antes de qualquer coisa, eu penso que me reconhecer nesse caminho é
honrar quem pisou esse chão primeiro. Salve Carolina Maria de Jesus, Cora
Coralina, Cecilia Meireles, Hilda Hilst, Clarice Lispector e tantas outras.
7 - O que pretende alcançar
enquanto autora? Cite um projeto a curto prazo e um a longo prazo.
Eita, que ousado! Meu pensamento é
muito objetivo nesse sentido, sonho muito mais que planejo. Mas como desejo de
curto prazo, eu poderia citar publicar um livro de poemas que me propus a
escrever recentemente, centrado na temática da infância. A longo prazo, quero
explorar outras formas de dizer, me sentir confortável tentando outras
linguagens, gêneros e formatos. Ainda quero escrever um livro com o mínimo de
palavras, por exemplo, a síntese é pra mim o maior desafio.
8 - Quais os temas que gostaria que
fossem discutidos nos Encontros Mulherio das Letras em Portugal?
A poética das mulheres, a
literatura de si, os limites entre os gêneros, a prosa contida na poesia.
9 - Sugira uma autora e um livro
que lhe inspira ou influencia na escrita.
Uma? Ai. Hoje é a Sophia de Melo
Breyner Andresen. Ontem era a Matilde Campilho. Amanhã pode ser a Alejandra
Pizarnik. Eu levo muitas comigo e é uma sorte tremenda essas mulheres todas
existirem.
10 - Qual a pergunta que gostaria
que lhe fizessem? E como responderia?
“O melhor lugar do mundo é aqui. E
agora?”. É uma recriação de um verso do Gilberto Gil que está em um grafite de
um muro na cidade onde eu nasci, no interior de São Paulo. Mas eu não faço a
menor ideia da resposta. Acho que o tal do “hoje” é a nossa sina.
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