“Tudo isto realizo no imenso palácio da memória. Aí estão
presentes o céu, a terra e o mar com todos os pormenores que neles pude
perceber pelos sentidos, exceto os que já esqueci. É lá que me encontro a mim
mesmo, e recordo as ações que fiz, o seu tempo, lugar, e até os sentimentos que
me dominavam ao praticá-las”
(Santo Agostinho)
Há textos que nos provocam um sentimento tão grave de
similitude que tomar distância dele vai exigir alguns dias de esforço. Foi a
sensação que tive ao terminar de ler o romance de Rosângela Viera Rocha, “O
indizível sentido do amor”. Lembro de Leonardo Boff quando diz que “cada
um lê com os olhos que tem. E interpreta a partir de onde os pés pisam”. Uma
resenha é feita a partir dos olhos de quem lê, mas meus olhos de memorialista,
meus olhos de poeta, os meus olhos de maranhense e ativista política, como
poderiam ler o livro de Rosângela Vieira Rocha, distanciados da guerrilha, da
resistência, da memória da luta dos camponeses, da luta do meu próprio povo, da
memória de testemunho? Por isso não foi uma tarefa sem esforços de leitura e de
esforços de mais esquecimentos que lembranças.
Rosângela Vieira Rocha escreve uma narrativa
memorialística. Não é um romance de autoficção. Por isso mesmo é preciso
entender a diferença entre eles. A narrativa memorialística, diferentemente do
romance de autoficção, pretende reinterpretar a memória dos acontecimentos,
buscando elementos de escavação, de palimpsesto e investigação de testemunhos e
memórias no intuito da reconstrução narrativa de um determinado tempo histórico
ou ainda de tempos históricos emparelhados. Há um profundo sentimento
investigativo na tarefa de reconstrução dessa memória, pois passa pela
subjetividade de quem se debruça sobre a História pelo testemunho aliada à
objetividade dos acontecimentos. Mais do que com a verdade, há compromisso com
o testemunho. Nos romances de autoficção, o compromisso é com a ficção - que
tem elementos da realidade pela escritura, pela artesania, pelo trabalho
sígnico num jogo estético de linguagens e imagens híbridas, simbólicas,
metafóricas do real. Na escrita memorialística o trabalho é o da fiação de um
tempo plenamente constituído, historicamente palpável pela experiência, mesmo
que também híbrido na sua reconstituição de significados. Na ausência,
nos vazios e “entres” da escrita memorialística há substâncias também
ficcionais não pretendidas. Como diria Pedro Nava, é uma escrita anfíbia.
“O indizível sentido do amor” é um romance que fala de
“amor e luto”, de perdas, de luta pelo luto, de um diário de viagem do externo
para o interno, de exílios distintos, de reencontros e Encontro, de estar
presente e ausente, de encontrar-se entre o Tudo e o Nada, de recompor sua
própria história. É um romance memorialístico de uma mulher que diante do infortúnio
da morte e da separação do homem amado, José, busca recompor um elo de conexão
entre passado e presente, presente e passado. Só nesta primeira leitura já
somos apresentados a princípios literários da narrativa memorialística: a busca
permanente, o eterno retorno e a descoberta inexorável de um tempo cíclico que
é próprio da narrativa das experiências, da narrativa de memórias. A narrativa
de Rosângela vai e volta num tempo circular, o que é próprio dos memorialistas,
um ir e vir, buscar o corpo de Eurídice, mas para quê? Para confrontar-se com o
Nada sem pessimismo, sem notícias de mágoa. Por isso a ilusão de
distanciamento, que na verdade trata-se de uma aproximação tão intensa que a
própria ideia de apego se desvanece pelo sentimento de consciência ampliada do
ser nesse tempo.
O livro traz tempos e memórias que se conectam à nossa
história recente. Ainda neste ano de 2017, estive com William da Silva Lima no
seu aniversário de 85 anos. Mesmo depois de um derrame, William conversou
comigo, de forma muito clara e lúcida, sobre a importância da literatura na
vida dos presos comuns da época da ditadura militar. De como tinha sido
importante na vida dele a leitura de Euclides da Cunha e de como o contato com
outros presos políticos e os livros tinha feito com que ele compreendesse o
Brasil e as desigualdades que já conhecia muito bem da vida na cidade.
José, marido de Rosângela, grande amigo de Alípio de
Freitas, esteve preso na Ilha Grande. William também esteve preso na Ilha
Grande com Alípio de Freitas. Alípio é um dos elos que reconta a história de
José. É o homem pelo qual Rosângela procura desvendar elementos de testemunho
das torturas de um tempo político que foi silenciado e se tornou silencioso.
Alípio de Freitas foi padre e revolucionário na minha
terra, São Luís, onde de fato travou contato com a miséria humana num tempo em
que a luta camponesa se acirrava e tomava vultos de radicalidade. Meus avós
conheceram a história de Alípio e da sua paróquia. Nós ouvíamos em casa as
histórias de luta por terras e de como a Igreja Católica, com a eleição de João
Paulo II, tinha tratado de emudecer e reprimir o movimento progressista e os
que estavam ao lado da luta camponesa, os que seguiam a teologia da
libertação. Já na escola de freiras, das irmãs capuchinhas, na década de
oitenta, éramos obrigados a ter aulas sobre o novo Papa. O retrato de João
Paulo II se espalhava pelos corredores da escola, pois precisavam nos
convencer, ainda crianças, que os caminhos de Deus não passavam pela reforma
agrária e que a miséria do nosso povo não advinha daí.
Não posso falar do romance “O indizível sentido do amor”
sem falar da nossa história brasileira, e até mesmo sem falar da minha história
brasileira, pois Rosângela no seu trabalho memorialístico e jornalístico, nos
oferta - em “religare” – esse corpo, essa ossatura que não foi enterrada
o suficiente para se tornar invisível, imperceptível ao chamamento da memória.
Assim, a autora nos ajuda a desvelar uma parte do que foi apagado com
propósitos, escondido pelas tramas políticas que se seguiram à ditadura
militar, tramas que desembocam no Golpe de 2016. Por isso o trabalho de
Rosângela Vieira Rocha é, indiscutivelmente, um trabalho necessário para o
debate sobre os porões e as armadilhas da ditadura militar, porque precisamos
lembrar para não esquecer, lembrar para não repetir. Já que fomos atravessados
pelas notícias de outras farsas, entre uniformes e togas.
O Luto de José e o Luto de Rosângela
Nas idas e vindas da memória de Rosângela Vieira Rocha,
busco me refugiar no fio de Ariadne para não me perder dentro dos labirintos
que a leitura do livro vai compondo com meus fantasmas, pois preciso voltar e
visitar José na UTI. Agora também eu, leitora, sou testemunha dessa narrativa.
Entre a discrição de José e o delicado diálogo de Rosângela com o luto
encontramos uma linguagem estética que há nos melhores textos memorialísticos:
a sobreposição de cenas, o jogo espelhar da urdidura narrativa em que uma cena
traz a outra, feito caleidoscópio, camadas de imagens e linguagens que se
alternam com os efeitos da memória viva, encarnada. Todos os ponteiros cabem
num instante. E cada instante é feito de mil ponteiros. Os guardados de José
fazem parte de sua luta/luto, e feito sobrevivente e testemunha, não há uma gota
sequer para além do que merece ser falado/derramado. Rosângela é a voz que
rompe muitos solos de não-ditos e através de sua luta/luto as alternâncias
entre Cronos e Kairós vão se tecendo pelas palavras, entre o tempo elástico das
reminiscências e o tempo-colheita-lavoura de dizer-se, contar-se para além de
seu próprio ciclo temporal, abrindo-se ao círculo maior que é feito das
memórias coletivas, memória de todos nós que amamos, vivemos, lutamos,
sabemo-nos vivos até o finito, até o corte da última parca. Os dias, as noites
dos lutos de José e Rosângela são os dias, noites que narram, magistralmente, o
“indizível do amor”.
“Tentei contar a sua história, que não é propriamente uma
história, são apenas “flashes” do que penso ter sido a sua vida. (p.186)
Proust está feliz. Pois encontramos aqui um romance em
outra língua.
Por Patricia Porto
Rosângela Vieira Rocha nasceu em Inhapim, MG. Tem onze
livros publicados, quatro para adultos e sete infanto juvenis.
Recebeu vários prêmios literários, entre os quais se destacam o Prêmio Nacional
de Literatura Editora UFMG-1988, com o romance Véspera de lua, e a Bolsa
Brasília de Produção Literária 2001, com a novela Rio das pedras. Participou de
várias coletâneas de contos, entre as quais Mais trinta mulheres que estão
fazendo a nova literatura brasileira. Além de escritora, é jornalista, mestre
em Comunicação Social, bacharel em Direito e professora aposentada da Faculdade
de Comunicação da Universidade de Brasília - UnB. É colunista de duas revistas
culturais e literárias digitais. Ministra oficinas de textos e de literatura,
além de palestras.
Título:"O indizível sentido do amor"
Editora:Patuá
Ano:2017
Podem adquirir neste link
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