“Quem
tem poder, que faça bom uso.”
“Até um vira-lata é
obedecido quando ocupa um cargo.” Frase célebre de Shakespeare em Rei Lear. Há
uma outra não tão célebre, mas não menos polêmica: “Gosto de crianças (exceto meninos)”, esta de
outro escritor inglês muito reconhecido: Charles Lutwidge Dodgson ou
simplesmente Lewis Carroll, autor do clássico “Alice no país das maravilhas”.
Carroll já adulto não só tinha como melhores amigas “menininhas”, mas também as
fotografava com permissão e apoio da própria mãe. Eram tempos vitorianos...
Outro tempo, outra moral. Não tenho tanta certeza, mas talvez não tivéssemos
hoje por Dodgson ou Caroll a mesma complacência, isso levando em conta a nossa
atual visão de mundo. Sem respostas absolutas que não acabem sucumbindo ao
fosso da temporalidade, o que importa me parece ilustrar aquilo que do passado
vingou: que Caroll foi indiscutivelmente um grande escritor que tratou de nos
deixar de legado seus incômodos
narrativos de imagens perturbadoras e visões pra lá de ambíguas que jogam com
nossos próprios e indiscretos espelhos. O cenário de sua escrita? Uma terra e
uma época profundamente marcadas pela opressão do puritanismo. Caberia então
perguntar o que a repressão e a tirania podem fazer de mesquinho com os homens.
Frear, coibir ou iluminar sua loucura? Coroar ou cortar suas cabeças?
Num tempo não tão distante, muitas
rainhas e rainhas-mães se revelaram tão insanas e perversas, tão tiranas e
sanguinárias quanto os seus próprios reis-pais, acabando com a esperança de que
mulheres no poder sempre nos salvariam de guerras atrozes, perseguições
vingativas e derramamentos de sangue. Novamente Shakespeare nos aponta a
montanha que há por trás do iceberg ou por trás de um desejo oculto e freado.
Lady Macbeth, de Shakespeare, tem a força e a gula dos grandes tiranos. Em toda
minha incursão literária nunca li tanta crueldade, tanto ímpeto feroz, marcado
pelo orgulho do ódio e o delírio da ambição:
“Vinde,
espíritos sinistros
Que
servis aos desígnios assassinos!
Dessexuai-me,
enchei-me, da cabeça
Aos
pés, da mais horrível crueldade!”
Dessexuai-me... Ninguém melhor que
Shakespare para traduzir a vontade do poder, ninguém melhor que Freud para
interpretá-lo. O desejo cruel de Lady Macbeth, a inveja de Iago, a persuasão de
Cássio, a dominação de Petrucchio, o fantasma de um pai, a manipulação da mãe,
Hamlet e a tirania se contrastando com a
palidez e a fragilidade de Ofélia, a ninfa no lago. Que morra, por certo.
Poderíamos nas aulas de literatura
falar de muitos “complexidades” do humano e também das nossas tantas fraquezas
de caráter, das nossas absurdas pequenezas... Mas quem quer ouvir isso em sã e
feliz alienação afortunada? Fiquemos por ora na superfície, na superfície
porque não causaremos mal estar. Enfiar o espinho na ferida é para os loucos,
os sem juízo, os vadios, os amorais. Não funciona, eu sei. Continuaremos sempre
a desejar a morta do lago, a quietude do poço, como o "silêncio dos
inocentes".
Fiquemos na sustentável ignorância
do ser e não nA insustentável leveza do ser, belo filme de Philip Kaufman. Como
protagonistas, vemos os engajados Juliette Binoche e Daniel Day-Lewis,
personificando o casal Tomas e Tereza numa Praga invadida pelos Russos, naquele
tal ano de 1968, o ano que não terminou segundo Zuenir Ventura. Baseado na obra
de Milan Kundera, o final do filme destroça nossas esperanças de ver aquele
final bacaninha, com o casal apaixonado vivendo numa cabana da montanha. E
destampa o vulcão para causar fraturas. Tão difícil assumir a ferida narcísica
exposta do nosso lado sombrio...
Revelar o asqueroso, o feio, o
estranho, o desumano, o esquizoide – e o finito. Como nos discos vinis, muitos
tentam tocar apenas o lado A, aquele com as melhores paradas de sucesso. O lado
B, no obscuro permanece, reprimido numa cortina de fumaça como se seguisse a
Lei de Murphy, na consequência inevitável
da opressão: caindo para baixo, no baixo, nas baixezas do grotesco,
escondido embaixo do tapete da terra, como As Aventuras de Alice Embaixo da
Terra, primeiro nome dado ao livro de Carroll.
E pensando melhor, afinal, não
importa tanto distinguir o lado A do B, porque no fundo ou raso, eles estão
mesmo misturados, e se o homem não descobre sua dimensão humana e finita, ainda
mais sofrimento deixará de herança aos outros do advir, porque deixará de
apostar na dimensão misturada de sua natureza primária. Quando olho para a nossa
História recente fico pessimista e isso não tem vínculo com a minha visão
política de mundo, mas sim com a minha visão humana de mundo. “Para onde
caminha a humanidade”?
No nosso reino da felicidade de
araque e de gente tão cordial e conservadora,
se a ficha da hipocrisia não
cair, que tal ficarmos com aquele velho adágio: "Quem tem poder, que faça
bom uso"? Esse pode servir...
No “The End” talvez encontremos a frase
de efeito para a contemporaneidade, como Boris Yellnikoff, personagem neurótico
e pessimista do filme de Woody Allen. Sim, é possível, “Tudo Pode Dar Certo”.
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