domingo, 15 de setembro de 2024

Contos que nada contam 24 (A colecionadora de cores) - Emanuel Lomelino

A colecionadora de cores

Quando lhe perguntavam o que queria ser quando fosse grande, Conceição respondia, sem hesitações:

- Colecionadora de cores.

Esta resposta fazia os adultos rirem, mas Conceição não entendia onde estava a graça. Ela falava a sério. Queria mesmo ser colecionadora de cores e não havia no mundo quem fosse capaz de demovê-la de tal propósito.

Ninguém sabe se esses risos impulsionaram o seu desejo, mas a verdade é que hoje todos a conhecem, como Conceição das Cores, e formam enormes filas à entrada de sua casa para verem a maior colecção de cores do mundo.

Diz quem já lá esteve que a colecção é tão vasta e tão completa que, a cada nova cor adquirida, os olhos de Conceição foram-se transformando nos artigos mais raros da colecção e agora são dois enormes arco-íris.

EMANUEL LOMELINO

Às margens do desencaixe (excerto) - Carolina Becker

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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A condição de estrangeira sempre me habitou, sempre carreguei uma sensação de deslocamento do mundo. Sentia e ainda sinto que quase nunca me encaixo no que acontece ao meu redor: deslocada no tempo e no espaço, me percebo à margem, habitando fronteiras e sendo mal compreendida.
Desde cedo, eu “chorava por qualquer coisa”. O choro era meu sinal de incompreensão do mundo, da violência que via nele e não conseguia abstrair, dos jeitos esquisitos de se portar em sociedade que não faziam sentido mesmo para minha pequena e restrita percepção. Para os que estavam fora de mim, apenas uma criança quieta e chorona.

EM - ESTRANGEIRAS - COLETÂNEA - IN-FINITA

sábado, 14 de setembro de 2024

Lomelinices 13 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

13

Quando os vidros e espelhos se transformam em estilhaços espalhados de modo arbitral no solo roído pelos passos de outrora, não estão sós e isolados. Ficam na companhia da caliça que já foi reboco; de alguns tufos de pelos com proveniência incerta; de heras que se atreveram a romper o betão para despontar entre as frestas de um chão que já foi imaculado; de pedaços de mosaicos quebradiços que a passagem do tempo libertou; de fragmentos de papel retalhado e amarelado pelo mofo; de poeira bafienta originária de múltiplas fontes; de lascas de madeira caídas de armários descoloridos e empenados, cujas portas estão seguras por uma única dobradiça enferrujada; de uma poça de água choca que, volta e meia, é alimentada pela goteira que o telhado esburacado deixou formar, e por onde entram aves para o descanso nocturno ou para se protegerem.

Todo este entulho de ruína e caos é cúmulo de memórias descartáveis que alguém – que pode ser plural – deixou para trás como estivesse a abandonar o mais irrelevante de si.

EMANUEL LOMELINO

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Lomelinices 12 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

12

O ritmo, a cadência, a duração dos fragmentos de tempo é igual para todos, sem excepção. Ninguém vive segundos, minutos, horas, dias, semanas com maior duração do que os outros. A diferença está na forma como cada um usa o tempo; no modo como o gasta; na utilidade que lhe dá; no desaproveitamento que lhe faz.

O tempo é um só. Tão regular e contínuo, quanto obstinado e persistente na constância. O tempo é obsessivo, dono do seu nariz, pouco lhe importando a forma, o modo ou o jeito como o preenchem.

A génese das queixas sobre o tempo está no grau de prioridade que cada um, em toda a sua vitimização, dá ao tempo que lhe cabe. Por isso existem os desleixados e os organizados; os irrequietos e os cómodos; os espalhafatosos e os discretos; os inteligentes e os chico-espertos; enfim, aqueles para quem falta tempo e os outros que têm tempo de sobra. Apesar do tempo ser sempre o mesmo.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Lomelinices 11 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

11

Erradamente, supôs-se que a vida seria uma simples equação matemática. Mas alguém, fraco no domínio da álgebra e apenas conhecedor dos números inteiros, enganou-se nos cálculos por não contemplar décimas, fracções, ou raízes quadradas.

Supostamente, a vida deveria ser um segmento de recta. Todos a partirem de um ponto A para chegarem, linearmente, a um ponto B. Mas alguém, fraco em geometria, olvidou a existência de círculos, triângulos, quadrados, etc. Tampouco conhecia ângulos, senos, cossenos, tangentes, catetos e hipotenusas.

Na verdade, de nada nos serve sabermos fazer cálculos avançados ou trigonométricos porque a complexidade da vida ultrapassa todas as ciências.

Para facilitar as coisas, pensemos na vida como uma enorme espiral irregular que contradiz todas as teorias conhecidas.

As contas nunca batem certas, os ângulos estão sempre errados, e as figuras geométricas têm formas difíceis de entender ou identificar.

Bem vistas as coisas, só o ponto de partida A e o ponto de chegada B são os elementos reais da equação da vida, tudo o resto são incógnitas disformes.

EMANUEL LOMELINO

quarta-feira, 11 de setembro de 2024

Crónicas de escárnio e Manu-dizer 10 - Emanuel Lomelino

31-08-2024

Por muito doloroso que seja admitir, não dá para negar que o universo da escrita, deste retângulo à beira-mar confinado, está órfão de valores, tanto literários como humanos.

Todo e qualquer sapateiro de vão-de-escada, com a devida vénia respeitosa aos que ainda exercem essa honrada profissão, autodenomina-se poeta e vive na ilusão de que basta espartilhar frases em versos para que as suas sentenças, vazias de conteúdo, sejam vistas como pérolas de sapiência poética.

Esses cerzidores de adjectivos avulsos fazem-se rodear de eunucos do pensamento, cujas cabeças são de mais fácil penetração por falta de hábito, para não dizer habilidade, em desenvolver raciocínios sem pontas soltas.

Entre os tecelões da preguiça intelectual há meia-dúzia que, imersos numa realidade ficcionada, tendem a abraçar os projectos que mais visibilidade lhes dão, com a mesma intensidade, e intencionalidade, com que mais tarde cospem nos pratos que os alimentam, fazendo-se passar por arautos da cultura (no primeiro caso) e damas ofendidas (no segundo), sempre com espalhafato circense para agregar os clamores dos zombies que cegamente os idolatram.

Por tudo isto prefiro os autores, de uma só cara, que laboram no silêncio das esquinas do olvido. Esses nunca serão lambe-botas nem ingratos.

EMANUEL LOMELINO

terça-feira, 10 de setembro de 2024

Contos que nada contam 23 (A morte do intelectual) - Emanuel Lomelino

A morte do intelectual

Quando a imprensa noticiou a morte de Rodolfo Renan, uma onda de consternação e tristeza espalhou-se por toda a comunidade. Tinha falecido o intelectual mais respeitado e todo o mundo, desde o mais novo ao mais velho, do mais pobre ao mais abastado, sentiu a perda.

Depois, quando foi divulgado que havia sido suicídio, as opiniões começaram a divergir. Uns consideravam, tal facto, como um gesto de coragem. Outros viam como covardia. Durante semanas a fio, houve acesos debates e as coisas chegaram a aquecer de tal forma que ficou impossível não estar num ou noutro lado da contenda.

Curiosamente, no meio de tanta discussão, os motivos que deram origem ao suicídio nunca foram abordados. Só aquando da publicação do testamento é que as pessoas deram conta dessa falha e ganharam consciência de que, durante anos, tinham desfrutado das palavras de Rodolfo Renan sem entenderem que a beleza delas lhes ofuscara o entendimento e não tinham sido capazes de decifrar os seus lamentos, as suas angústias, as suas tristezas, os seus temores. Só aí entenderam que não tinham percebido os gritos de socorro do intelectual.

Todos sentiram que aquela morte, mais do que ter originado a discussão num tema fracturante, teve o condão de alertar para a necessidade de ver-se além da estética, pois nunca se conhece alguém sem saber dos caminhos trilhados.

EMANUEL LOMELINO

A minha casa é dentro de mim (excerto) - Tatiana Bitencourt

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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Sotaques, escolas diferentes, novos amigos, cidades grandes ou pequenas, casas onde dividi quarto com mais dois irmãos, casa onde tive um quarto só meu, clima frio ou quente, ver os avós só nas férias, casa com telefone e casa sem (quando tínhamos que fazer fila no orelhão após as oito da noite para pagar mais barato e dar notícias e matar saudade dos parentes), nunca foram problema para nós. Afinal, todas essas mudanças, que às vezes aconteciam de um ano para outro, eram absolutamente normais. Estranho era quem nascia, crescia e morria na mesma cidade.

EM - ESTRANGEIRAS - COLETÂNEA - IN-FINITA

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Lomelinices 10 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

10

É preciso abrir os olhos, para lá dos limites da fisionomia, para avistarmos tudo aquilo que, pintado com as cores da nossa inocência, nada mais é do que engodo e simulação.

É preciso ver além do alcance da vista para entendermos como estes espectros furtivos, que nos iludem na invisibilidade das intensões, são seres de carácter pérfido, dissimulado, vil.

É preciso atenção microscópica e redobrada para entendermos quão elásticas (como interesseiras) são as aproximações que nos fazem, dependendo da utilidade, ou falta dela, que nos outorgam.   

É preciso dar uso a toda a prudência, que a natureza nos emprestou, para sabermos quando sugam o ar que nos mantém ou sopram o veneno que nos intoxica, como insecticida.

É preciso reparar que, quase sempre, os benefícios de um ombro, que vislumbramos como gesto puro e sincero, são maçãs armadilhadas de gentileza encantatória e enganadora.

É preciso enxergar para lá do horizonte mais próximo e observar a distância mais remota para vermos com clareza o quão camufladas são as pretensões daqueles que, com vozes sussurradas, nos entoam aos ouvidos cantos de sereia.

EMANUEL LOMELINO

domingo, 8 de setembro de 2024

Contos que nada contam 22 (A entrevista) - Emanuel Lomelino

A entrevista

- Encontra alguma razão que justifique terem-lhe atribuído este galardão, só agora, numa fase tão adiantada da sua carreira?

Herculano percebeu imediatamente, pelo extenso sorriso estampado nos lábios da jornalista, as intenções da pergunta colocada. Sem pestanejar, retribuiu o sorriso e respondeu:

- Eu poderia alegar vários motivos para esta distinção. Poderia falar em recompensa justa por todo o meu percurso. Poderia dizer que haviam retificado uma longa injustiça. Poderia afirmar que este júri foi menos parcial que os anteriores. Poderia referir que não houve concorrência à altura. Poderia alardear as minhas extraordinárias capacidades criativas. Poderia referir o meu estado de graça. Poderia falar da qualidade do meu trabalho. Poderia revelar conversas de bastidores. Poderia aludir a cunhas ou a aliciamentos. Poderia contar mil e uma histórias só para deleite de todos os telespectadores. No entanto, a verdade só pode ser uma de duas coisas… - fez uma pausa dramática, sentindo que a sua retórica estava a funcionar como previa, aguçando o apetite de escândalo que o rosto da jornalista revelava. – Finalmente, após décadas, consegui escrever um livro realmente bom ou, em contrapartida, e repetindo as suas palavras, quando anunciaram o meu nome, houve um engano. – não conseguiu evitar uma gargalhada perante o ar ofendido da jornalista, ao perceber que tinha caído no engodo. – Sinceramente, estou mais inclinado para aceitar a segunda hipótese. – concluiu triunfante, olhando directamente para a câmara.

EMANUEL LOMELINO

sábado, 7 de setembro de 2024

Lomelinices 9 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

9

Quando os pensamentos querem ser vistos transfiro-os para um suporte e visto-os de palavras. Essas dão os braços, umas às outras, como numa roda de dança, e fluem a seu belo prazer sem a minha intervenção.

No início, na inocência do meu desconhecimento, mal se expunham, tentava dar-lhes um sentido mais legível, mas esse processo acabava, inevitavelmente, por lhes cortar o fluxo e, o que era uma ideia sólida, diluía-se no tempo com a busca da alternativa de discurso e perdia a força da mensagem base.

Com o tempo, e a experiência, aprendi a ser paciente e comecei a esperar o fim da transição para depois, então, fazer as alterações necessárias.

É por isso que, mais do que escrever, gosto da transpiração de limar verbos, raspar pontuação, desbastar complementos, cinzelar advérbios, polir sentenças.

E se me perguntarem a razão deste trabalho eu respondo que o meu cérebro é disléxico e tem sempre muita dificuldade em estar sincronizado com os pensamentos que lê.

EMANUEL LOMELINO

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Contos que nada contam 21 (Não passa de amanhã) - Emanuel Lomelino

Não passa de amanhã

Serôdio semicerrou as pálpebras numa vã tentativa de enxergar os dois vultos embaciados, que passavam diante de si.

- Tens de ir ao oftalmologista! – aconselhou Beatriz pela milésima vez.

- Um dia destes…

- Respondes sempre isso, mas o dia nunca chega.

- Ando com o tempo ocupado.

- Pois. – disse Beatriz num suspiro de enfado. – Quando cegares de vez, quero ver como vais ocupar o tempo. – sentenciou.

Serôdio sentiu todo o impacto das palavras proferidas pela esposa, mas não retorquiu. Sabia que a preocupação dela era legítima e verdadeira. Nos últimos meses os seus olhos revelavam a extensão do cansaço provocado por anos e anos de esforço a que tinham sido sujeitos. O óculo de relojoeiro ainda conseguia disfarçar a deterioração das duas vistas, mas ler os jornais diariamente, aquilo que mais gostava de fazer quando não estava a arranjar os mecanismos dos relógios, passou a ser uma tarefa árdua. As letras encavalitavam-se umas nas outras e, pouco a pouco, perante as dores que sentia para tentar decifrar o corpo das notícias, Serôdio começou a ler somente os títulos, e depois apenas as letras garrafais das capas. Mas o pior de tudo era quando queria ajudar Beatriz na cozinha. Os olhos já não ajudavam a identificar os frascos dos temperos e, acaso ela não estivesse atenta (às vezes acontecia), lá tinham de comer salada temperada com pimenta branca em vez de sal, ou sopa com vinagre em vez de azeite. Pelo menos por ela, a sua companheira de uma vida, ele tinha de arranjar tempo.

- Não passa de amanhã! – disse ele agarrando a mão de Beatriz.

EMANUEL LOMELINO

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Contos que nada contam 20 (O tímido ingrato) - Emanuel Lomelino

O tímido ingrato

Desde muito novo, e apesar de ser visto como o ser humano mais tímido do mundo, Martin granjeou, junto dos habitantes da sua aldeia, a fama de ser perfeccionista em tudo aquilo que fazia. Todos o admiravam e ninguém poupava palavras na hora de elogiar os seus trabalhos.

Na escola, as suas redações eram as que mais fascinavam os colegas e professores, que faziam questão de as lerem em voz alta, algo que ele nunca fazia.

No campo, quando ajudava na sementeira, ou na colheita, e apesar de nunca ter cantado as modinhas com os restantes, a sua dedicação era louvada por todos.

Na oficina de carpintaria, onde iniciou a sua carreira de marceneiro, todas as peças de mobiliário que produzia, mas sem revelar como haviam sido feitas, causavam espanto geral.

Nas festas da aldeia, ninguém dispensava comer as rabanadas confecionadas por ele, cujas receitas nunca revelou.

Foi assim na sua infância, na adolescência, nos primeiros anos da sua vida adulta. Elogios atrás de elogios.

Mas os anos passaram e os seus conterrâneos começaram a ficar aborrecidos com Martin, pela simples razão de nunca terem ouvido, da sua boca, a mais singela retribuição por todo o enaltecimento, aplausos e honrarias que lhe prestavam. Nem um assentimento de cabeça, ou um sorriso agradecido. Todos consideravam essa atitude como sobranceria e falta de humildade. Por isso, um dia, todos deixaram de elogiar Martin.

Esta história podia terminar aqui, mas a verdade é que, no dia da sua morte, toda a aldeia formou uma fila na porta da igreja, para pedir penitência ao padre, depois de ser revelado o segredo mais bem guardado de Martim: ele era surdo-mudo.

EMANUEL LOMELINO

Embarques (excerto) - Noemi Shigetomi

LIVRO GENTILMENTE CEDIDO POR IN-FINITA
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A vida é apenas uma grande viagem. Não sei bem ao certo onde começa e realmente desconheço se tem um término. Acredito que sou pura energia, movida por uma Força Divina que rege todos os multiversos e fragmentos dessa jornada que compõem a minha história.
Um destes fragmentos começa em uma estação de trem, onde um homem caminha pela plataforma no meio de uma manhã de nevoeiro. Ele nem percebe que um trem para e que, do último vagão, desce uma menina de casaco vermelho segurando uma pequena mala marrom.

EM - ESTRANGEIRAS - COLETÂNEA - IN-FINITA

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Lomelinices 8 - Emanuel Lomelino

Imagem thestrive

Lomelinices 

8

O dia voou-se-me pelos dedos com a fúria premeditada de lâminas rombas. As mãos choraram desconforto enquanto a alma – essa eterna chaga tresmalhada – regozijou-se por não ser corpórea e celebrou a sua indiferença ao beliscar do físico.

Os segundos latejaram-me na pele; os minutos picaram o ponto; as horas cauterizaram os sulcos, infamemente, enfaixados com gaze inexistente. E ela – a alma arredada de empatia – manteve-se fiel ao seu umbigo narcisista.

A tarde sucedeu à manhã, como é habitual nestas coisas do tempo, e a cada tique-taque da ampulheta moderna mais rugas decidiram enfeitar-me a derme irritada de poeira e sedenta de tréguas. Da outra – a alma desgarrada de afinidades – nem um sopro refrescante de interesse ou sinal de afectação.

Foi apenas mais um dia que passou. O corpo ganhou umas quantas medalhas por continuar a superar etapas, enquanto a alma – vilã de si mesma – permanece na ignorância de que nada, nem ninguém, é imune à passagem do tempo e que este também se lhe aplica.

EMANUEL LOMELINO

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Lomelinces 7 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

7

Os dias tecem-se como macramé. Entrelaçam-se os nós à velocidade dos ponteiros, e a estética nunca é ditada pelo tecelão, mas sempre pelos fios do tempo. Os minutos são franjas e as horas urdem-se de forma aleatória, porém harmoniosa.

Hoje teci um dia pardo, entre refeições. Quis Aracne – deusa do ofício –, de porte altivo, como todas as divindades devem apresentar-se, que o padrão das pausas, para descansar as mãos doridas de tantas agulhadas, fosse obtuso, contudo geométrico. E os desenhos de mais um dia ficaram-me tatuados na pele.

A minha sorte é ter esta obsessão redundante pela etimologia das palavras e descobrir que, ao contrário de todos os “dejá vu” deste dia, macramé não tem origem francesa, antes árabe “migramah”, ou talvez do turco (língua aliada) “miskrama”.

Seja como for, assim que a noite se predispuser a embalar-me as escaras, enrolar-me-ei na tecelagem deste dia e dormirei na certeza de que na próxima alvorada serei artesão de outra arte qualquer.

EMANUEL LOMELINO

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Contos que nada contam 19 (O evento) - Emanuel Lomelino

O evento

Alcides era um amante das palavras quando, por uma das muitas casualidades da vida, assistiu a uma palestra realizada na sua livraria preferida.

No início, vendo toda a pompa e festança, sentiu-se um peixe fora de água, mas tentou disfarçar esse desconforto e obrigou-se a assistir à totalidade do evento.

O moderador deu as boas-vindas, apresentou os palestrantes e disse que cada um deles era um poço de conhecimento do universo da escrita e, no final, todos os presentes sairiam da livraria mais ricos de sabedoria.

Alcides escutou todos os discursos, em silêncio, como quem assiste a um sermão na missa de domingo, mas o seu âmago estava a ser esmagado pelas palavras que ouvia. A fanfarronice era proporcional à incoerência; o pedantismo vinha abraçado a exageradas doses de bazófia; e o ar estava impregnado de uma altivez elitista que feria todos os sentidos.

Com muito esforço, Alcides conseguiu resistir até ao final do evento. Angustiado, fez uma rápida reflexão sobre tudo o que acabara de ouvir e descobriu que o moderador só tinha dito uma verdade: realmente ele ia sair da livraria mais sábio. Agora compreendia as razões que levaram Pessoa a dizer que os poetas são fingidores, e entendia, finalmente, as palavras de Celso Cordeiro: “para deixar de ser jumento, não basta a um burro saber ler”.

EMANUEL LOMELINO

domingo, 1 de setembro de 2024

Lomelinices 6 - Emanuel Lomelino

Lomelinices 

6

Durante anos, por acreditar que a escrita é, mais do que um direito, um dever, e a ninguém deve ser retirada a possibilidade de o fazer, tive dificuldade em entender uma das frases mais icónicas de Saramago, em que ele considerava ser um crime continuar a escrever não havendo mais nada a dizer.

Rebati essa afirmação por ser apologista de que a escrita, independentemente do conteúdo, mesmo vazia e isenta de propósito literário, é um instrumento válido para a literacia e desenvolvimento intelectual das sociedades.

Mas, como muitas vezes acontece na minha vida, só mais tarde, ao ler uma entrevista de Bukowski, onde ele afirma que é preferível não fazer nada do que fazer as coisas mal feitas, explicando que o grau de autoconfiança dos maus autores iguala o grau de incerteza dos bons autores (algo que pude confirmar em diversas ocasiões) e, por esse motivo, os primeiros são mais requisitados para darem palestras, quase sempre enfadonhas como a sua escrita, para plateias compostas, essencialmente, por outros maus autores, esperançosos em serem os próximos palestrantes, é que consegui enxergar a profundidade da sentença no Nobel português.

Nesse momento de epifania, ao entender que ambos os ícones da literatura, embora distintos, tinham a mesma linha de raciocínio - um mais polido (Bukowski) outro mais cru (Saramago) -, passei a acreditar ainda mais que a escrita é um dever de todos, mas isso não significa que todos tenham direito a verem-se escritores.

EMANUEL LOMELINO