LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
Dedicado à Mãe Mena, à Tânia, à Sónia, ao Tucha, à Cláudia, ao Rui, à Sheila e à Gisa
– Vou sentir a falta da Mãe Mena. – Rui tartamudeava as palavras, em vez de as pronunciar nesse português angolano do qual gostava de fazer gala quando estava eufórico.
Eram todos tão pobres que até a alegria lhes era emprestada. A felicidade nunca se demorava muito tempo naquele bairro de lata. Havia a bebida e, claro, tareias das quais as mulheres emergiam com braços torcidos e narizes tortos, cobertas de hematomas e cheias de feridas no corpo e na alma. Tios e pais viviam abertamente com as respetivas filhas e sobrinhas, gerando filhos com deficiência que as mães abandonavam ou liquidavam discretamente.
Havia momentos felizes, quando chovia; a água corria fresca para o bidão comunitário e podia tomar-se banho de esponja ou de toalha. Também saía a sorte grande ao bairro inteiro quando alguém conseguia um emprego fixo, partilhava o pouco dinheiro que lhe sobejava e organizava uma festa.
D. Mena teve sorte. Todos os seus sete filhos trabalhavam e ela era a rainha daqueles telhados de zinco e chapa. Os meninos do bairro viviam lá, porque a barraca dela era a única onde havia comida. As mulheres depositavam algum dinheiro nas mãos de D. Mena para ela tomar conta dos meninos e meninas, porque não sabiam ser mães. Por vezes, ausentavam-se durante semanas enquanto tentavam agarrar um homem que as conseguisse resgatar da vida no bairro e dos filhos indesejados, tantas vezes fruto de violações sobre os becos cobertos de lama.
A Mãe Mena era única mulher daquele bairro que se depilava e que conseguia manter-se apresentável, com o cabelo desfrisado ou trançado. Também não gerou filhos com deficiência e conseguiu manter as filhas afastadas da prostituição aberta e os filhos longe da droga.
Quando morrera por não ter sido atendida a tempo pelo Serviço Nacional de Saúde (pois continuava pobre e os pobres tornam-se invisíveis até ser tarde demais), os meninos e meninas (agora homens e mulheres com vários tons entre o negro e o café com leite) e todos aqueles que haviam colhido as primeiras carícias das suas mãos e as primeiras papas das suas colheres se juntaram e regressaram ao bairro. Foi dali que saiu o cortejo funerário, embora os filhos do bairro já estivessem todos distribuídos há muitos anos pelos bairros sociais, prisões, morgues, cemitérios. Alguns trouxeram conjugue e filhos do estrangeiro.
Também eu fui uma das filhas da D. Mena, embora não vivesse no bairro de lata. Quando as coisas em minha casa azedavam, era lá que passava o meu tempo, e foi ela que me deu o primeiro apoio incondicional que recebi. Acordava picada das pulgas e percevejos, e apanhei piolhos várias vezes, mas os melhores banhos que tomei foram naquele bidão e as festas mais felizes que frequentei foram as da Mãe Mena.
Agora, movo-me noutros círculos, como ela sempre me afiançou que sucederia. Não me perdi nem me deixei aprisionar por homens violentos, como ela tanto temeu que me sucedesse assim que deitei corpo.
No meu novo mundo, as pessoas falam uma espécie de português emp(r)estado, sem a cadência quente que aprendi a amar. Os corações dessas pessoas são frios e repousam sobre a pedra de mil desculpas para se escudarem nas suas vidas de plástico. Não existe partilha de comida até à última migalha, apenas interesse em lucrar com o outro ou em derrubá-lo. Cada vez que oiço uma dessas pessoas entoar palavras com afetação, faço mil vezes o luto da Mãe Mena e da música que habitou os seus lábios para sempre como a mais bela canção de amor.
EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA
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