LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
Ramiro tinha sido sempre um revolucionário no valor mais autêntico do termo. Era um visionário, um inovador, uma alma atrevida que agitava as ideias vigentes, todas, segundo ele, moralmente condenáveis. Na sua juventude fora um líder, arrastando com a maior das facilidades os que tiveram o privilégio de se cruzar no seu caminho. Chegara a estar preso durante umas horas por ser o mentor de ações clandestinas, cuja única intenção seria o combate vigoroso e a crítica mordaz ao regime ditatorial de Salazar. Nem isto lhe tinha usurpado a afoiteza e o devaneio. Agora, à beira de se jubilar, a história era outra.
Enquanto jantava, Ramiro ia vendo as notícias da noite. Não que ainda lhes ligasse grande coisa, mas ele, que era um pouco monofóbico, assim sentia-se acompanhado. Por entre as crises, as pandemias, os atentados e outros que tais, Ramiro ia ficando apreensivo, diria mesmo apavorado, ao perceber que a sua condição mais preciosa, o facto de ser livre, de poder desfrutar de livre-arbítrio, encontrava-se claramente em risco. Chegou a considerar que o jantar não lhe estava a cair bem e, por esse motivo, decidiu ir apanhar um pouco de ar para ver se a indisposição lhe passava.
Ao aproximar-se da porta do quintal que ligava à rua das traseiras, hesitara se haveria de puxar o trinco, movimento este tão banal que nunca tinha parado para lhe dar importância, mas desta vez a situação carecia de prudência. A pouca oleosidade do ferro obrigou-o a soltar um ruído estranho, e o nosso homem, que levava a boca tão cerrada como se estivesse amordaçado, ainda a pressionou mais, de tal modo que as gengivas começaram a sangrar. Tinha as bochechas fartas, como se ainda as mantivesse cheias da comida do jantar e o olhar deixava bem visível o seu estado de pânico ao abrir a porta com todo o cuidado. Depois, escancarou a boca, regurgitando num só grito a palavra que até então a enchera: MEDO! Ao contrário de outras palavras, esta não pairou no ar, pois não tinha qualquer leveza. De tão pesada, foi rastejando, sibilante, desenhando um sulco sinuoso por onde passava e, logo que pôde, porque só sobrevivia ao alimentar-se da energia dos seres que lhe servissem de hospedeiros, enfiou-se pela ranhura da janela do quarto de uma menina. Sem que esta sequer imaginasse, o seu quarto tinha sido invadido pelo MEDO, planando mesmo junto à sua cabeça, qual guilhotina ameaçadora. E a criança, que até então dormira tranquila, inspirou o MEDO para o interior de si, tornando-o personagem do seu sonho, agora pesadelo aterrador.
EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA
Sem comentários:
Enviar um comentário
Toca a falar disso