sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Invulgaridades - SANDRA RAMOS

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Ao sábado à tarde ele enviava-lhe uma música. Quase sempre sem letra. Aquilo que queria dizer-lhe não caberia na letra duma canção, nem no entremeio escuso das palavras cantadas. A melodia era tudo o que lhe enviava, ele sabia que ela, mulher-poema, a preencheria como ninguém.
No domingo, pelo fim do dia, ela enviava-lhe um trecho dum livro, sem autor, sem referência. Sabia que os significados ganham mundo e não podem prender-se ao nome de quem os achou. O tom com que o diria travava-se na garganta, mas ele saberia encontrar a melodia certa para ler a mensagem.
Manuel procurava a ária precisa, nada menos que majestosa, para lhe enviar naquele correio semanal. Maria, se não a conhecia, procurava na imensidão do mundo, procurando infatigavelmente até descobrir. Rodrigo Leão, Majlo, Gotan Project vieram-lhe pelas mãos dele. Muito prazer.
Maria revia os inúmeros livros que lera em busca de uma resposta à altura. O insigne cumprimento de sábado merecia um excelso retorno. E ele procurava no mundo o autor daquelas palavras. Valter Hugo Mãe, Pessoa, Carlos Drummond, vieram-lhe pela mão dela. Muito prazer.
Conheceram-se naquele bar onde ele tocava ao vivo. Ele percebera que ela era muito mais do que a sua beleza, e que com certeza colecionaria já tantos e vulgares elogios ao seu sorriso, decote e andar. Ela percebera que a sensibilidade dele ia muito além da destreza e da carícia com que dedilhava a guitarra, e que com certeza colecionaria já tantas e vulgares admiradoras de si, no aparente e efusivo charme dum homem público.
Em consecutivas semanas, mantiveram o desfasado encontro, ele no sábado, ela no domingo. Com o tempo, ele começou a enviar-lhe músicas que ela não encontraria senão nele, fruto da combinação única das suas próprias notas. Ela devolvia-lhe a beleza em temas que ele não encontraria senão nela, fruto da combinação única das suas próprias letras.
Um sábado, ele enviou-lhe “Um olhar que era só teu”.
No domingo, ela não lhe enviou o texto.
Apresentou-se na porta dele.
Depositou-se, mulher-poema, nas mãos delicadas do cântico que ele era.

 EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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