quinta-feira, 30 de setembro de 2021

A gaiola do vento - ROSA ALVES

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A rua estava deserta naquele dia. Não havia ninguém além de mim a espreitar da vidraça… Depressa desci as escadas e ganhei a rua.
No adro da Igreja de São Mamede, o vento se encarregou de espalhar as folhas rente ao chão. E no Jardim Botânico, permaneci sob a sombra das velhas árvores. Se eu dormir poderei acordar os sonhos escondidos entre as batidas do coração.
Levanto-me e volto a caminhar para o lago que reflete o que acontece no céu. Sua água calma e contida parece estar alheia ao que se passa. O lago é o mapa das emoções vividas e a memória do tempo que fatalmente evapora. Nele cabe toda a expressão do prazer e da dor e às vezes é necessário mergulhar e atravessar o limite para descobrirmos uma parte dos seus mistérios.
Ouço apenas as folhas secas quebrando-se na medida em que ando. Não é mais o silêncio mais que me incomoda – é a solidão repentina que me deixou apavorada e sem motivo para cuidar dos cabelos.
Nem mesmo o tempo, que testemunhou a tudo e conhece bem as verdades, saberia explicar-me agora essa pausa. O tempo, o vento, as folhas secas e os meus cabelos despenteados – é o que há e não há outra coisa para te contar a não ser que procuro pelas pessoas.
Preciso encontrar alguém que me explique o que se passou enquanto eu dormia. Ontem foi um dia normal…
E numa clareira lá embaixo, avisto uma pequena multidão! As pessoas estavam vestidas de preto e de costas para mim, que estou de branco. Parecem assistir a um espetáculo com a atenção concentrada e no mais absoluto silêncio.
Me aproximei devagar. Fui me infiltrando e esbarrando nas pessoas para perceber se estavam realmente vivas – elas respiravam! Eu é que estava com a respiração por vezes suspensa.
Ao centro estavam dispostas em círculo algumas gaiolas abertas. Os pássaros assustados com a audiência, desaprenderam suas cantigas. E o vôo? Será que ainda saberiam voar?
Cheguei mais perto deles e, como por um encanto, saíram finalmente de suas gaiolas e tomaram o seu destino.
Imediatamente, todos olhamos para cima... e suspiramos aliviados. E, como parte de um mesmo bando, o vento e as aves circularam livremente por entre as árvores em rumo ao infinito, como se todo o céu de Lisboa lhes pertencesse.

 EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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