quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Esta mulher que não sou eu - ROSE PEREIRA

LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
Conheçam a IN-FINITA neste link

Até aqui, me custa aceitar no que tenho me tornado, onerada pela transformação natural exterior, que agora me impele na contramão do meu eu e me faz parecer cada vez mais distante do que pretendia para minha vida.
A expressão da verdade mora dentro de mim e vou fingindo, sobrevivendo, na esperança de logo me encontrar por inteira, de ser feliz pelo simples fato de existir. Não que eu me diga uma mulher infeliz, não é bem isso. Trata-se da resiliência com que sou vista e de fato vivencio, mas que por dentro não se recobra facilmente ou se adapta puramente à má sorte e às mudanças.
Ingratidão seria dizer que ainda procuro motivos na vida para me trazer contentamento, afinal, tenho filhos maravilhosos, perfeitos, saudáveis que me fazem sentir plena. Além disso, possuo adendos que também dão sustentação à felicidade humana, como moradia, salário razoável, amigos e afazeres prazerosos no cotidiano. Isso sem falar que ainda me acho bonita e atraente.
No entanto, alheia a minha própria vontade, a essência me cobra a alma. O fulgor de uma realização que me compraz, converge entre a vaidade e o desassossego. Disso venho escapando, me escondendo nas terapias, nas fotografias que faço em torno a mim, e, principalmente, nos vários relacionamentos amorosos que encarei ao longo do tempo, cada um, como metade de mim – e que descobria, depois, que não me encaixava a nenhum deles.
A solidão a dois, no contexto das minhas experiências, é o ponto que sempre me fez sentir oculta à vista do mundo, inferiorizada enquanto mulher, sem ação. Paradoxal, para uma ativista que faz da sua arte o resgate do sagrado feminino.
Talvez não me faça entender completamente, ou, quem sabe, exista quem conheça exatamente desse sentimento recato.
Se meu corpo por um lado expele desejos, desperta paixões e atrai facilmente, vivo um amor após o outro, sem procurar saber se dará certo ou não. Nessa luxúria, escolho o que não se espera, o problemático, o depressivo, o dependente e sempre com características físicas bem diferentes do anterior – isso pelo prazer de regozijar-me desse poder feminino e afrontar os meus juízes. Evidentemente, por outro lado, o cotidiano logo me mostra que uma convivência formada dessa maneira não se fortalece, e passo a culpar cada um deles pela repulsa que vou sentindo. A fadiga toma conta, o silêncio grita e o nojo de mim e de cada corpo vazio sobre mim imperam.
Mesmo sabendo, continuo insistindo nessa insensatez, talvez para desafiar a capacidade de mudar o que não pode ser mudado, por medo de ficar sozinha com minha presença, ou como mecanismo de autoflagelação.
Parece louco esse sentimento. De fato, enlouqueço, adoeço, perco as forças, e vou me calando, definhando à procura de uma solução para a culpa que carrego, premeditando dia e noite como livrar-me da sina e de como encarar, mais uma vez, os filhos e os outros, diante da minha inconstância.
Enquanto, por fora... sou aço!
Ainda vivo assim. Envergonhada de mim, sem conseguir relacionar-me de maneira saudável, esperando a perfeição dos outros. Experiências, ainda sem querer, cercadas das lembranças infantis que fomentam cada passo na vida. Tropeços submetidos às contradições, traições, violências, humilhações, costumeiras de todo tempo, e não me vejo no direito de requerer justiça, pela consciência de saber o que vivo, o que quero e o que não consigo ser.
Uma mulher em mim que não reconheço...

EM - UNIVERSO FEMININO - COLECTÂNEA - IN-FINITA

Sem comentários:

Enviar um comentário

Toca a falar disso