segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Em carne viva - FÁTIMA D'OLIVEIRA

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Foram estas as tuas exatas palavras: queres casar comigo?
E foi assim, com três simples palavras em forma de questão, que viraste todo o meu mundo do avesso; que me abriste uma ferida, que pulsa e lateja.
Aconteceu de repente, sem menos nem mais e quando nada o fazia prever: fomos para o terraço para tentar fugir da opacidade que teimava em transformar a nossa existência ainda mais baça e da azáfama e lufa-lufa diária, assim como do irritante e incessante ruído de fundo que ameaçava transformar-se na banda sonora das nossas vidas e estávamos muito quietinhos a observar as estrelas, envolvidos pelo abraço terno da noite e acariciados pela brisa suave e fresca que corria solta e livremente, quando... aquilo aconteceu, quando a tua malfadada espontaneidade tomou conta de ti e tu, muito pura e simplesmente, te deixaste ir.
E o que é pior... quer dizer, pior não sei: mas irónico, sim – com toda a certeza. Bom, seja como seja O que eu sei, e sei-o no mais íntimo e profundo de mim, sinto-o marcado a ferro e fogo nas minhas entranhas, é que a tua pergunta foi, se calhar, extemporânea. Porque tu não me amas: nem sequer estás apaixonado por mim. Então, porque raio queres casar comigo?... E permite-me responder: tu não queres. Tu apenas... entusiasmaste-te. Eu explico: quando estávamos no terraço, alguém tinha uma janela aberta e podia ouvir-se, a altos berros, a voz quente e insinuante do John Legend a cantar “All of me”. Embalado pelas palavras doces de mel e canela, fizeste-me a tal pergunta. Curiosamente, toda esta nossa situação, este belo berbicacho onde nos encontramos, também me lembra uma canção, mas não é “All of me”: é antes “I’m not in love”, dos 10CC. Conheces? Assenta que nem uma luva neste... neste... neste imbróglio que tu e só tu te atreveste a criar.
Mas o que magoa mais e rói e remói bem no fundo cá dentro, é a quase certeza absoluta, mas absolutíssima mesmo, absolutérrima, de que tu, assim que proferistes aquelas palavras agora malditas, te apercebeste do tamanho do erro, da enormidade do que tinhas acabado de fazer. E tu, em vez de o assumires e reconheceres o engano, como que te encolheste e ficaste muito quietinho no teu canto. Não sei se por alguma noção ridícula e ultrapassada de cavalheirismo, se por orgulho, se por cobardia, não quiseste dar o dito por não dito. E isso doi, sabias?... Doi muito, doi até demais. Porque mais valia arrogares o teu momentâneo lapso de discernimento e consequente deslize de língua, e arcares com as consequências do teu equívoco, responsabilizando-te assim pelo sucedido. Mas não: mais do que fazeres absolutamente… nada, tu na verdade... paralisaste. E chega a ser doloroso, sabes? Mais do que ver o desespero perfeitamente espelhado no teu olhar, observar a aflição completamente escarrapachada no teu rosto, chega ser cómico. Sarcasticamente falando, é claro. Porque tu transbordas medo. E dúvida. Até pode ser que involuntariamente, mas a verdade é que me estendeste uma passadeira vermelha e convidaste-me a ser a má da fita desta nossa história. Mais do que isso, rogaste-me. Suplicaste-me.
E agora? O que é que eu faço? O que é que tu achas que eu devo fazer?... Ser aquela pessoa adulta, segura e madura que ambos merecemos e ser racional, ter os pés bem assentes na terra e assumir, de uma vez por todas, este papel de bruxa má da nossa história que à força tanto tentas enfiar por mim abaixo? Ou então, seguir a tua deixa, não fazer absolutamente nada e abandonar-me ao sabor da maré para, por um lado, castigar a tua precipitação tão completamente fora de tempo, incapacidade de reconhecer isso mesmo e a tua recusa em não deixar cair o ônus da responsabilidade quando o devias ter agarrado com unhas e dentes e, por outro, condenarmo-nos a alguns possíveis infortúnios, amargos de boca e malas-ventura?... O que achas?... Fecho a ferida de uma vez por todas e coloco um ponto final neste nosso parágrafo, ou deixo-a aberta e que seja o que nós quisermos, com um ponto de interrogação e reticências?... Sim? Não?... Sim? Sopas?... Diz-me!...

EM - MULHERES A UMA SÓ VOZ - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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