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Tantos meses trabalhando em casa... Não saía para nada, não via ninguém, não falava com ninguém. Duas mulheres juntas, uma jovem, uma idosa, mãe e filha, dividindo o pequeno apartamento vinte e quatro horas por dia. Como Leocádia sempre trabalhou fora, o contato com a mãe se resumia aos fins de semana. De repente, sua vida mudou. O ritual de acordar, tomar banho, se arrumar, engolir um café e sair de casa havia acabado.
Logo que a empresa se organizou para que a equipe toda estivesse ligada na plataforma para dar prosseguimento ao trabalho de forma virtual, Leocádia pensou que poderia dormir uma hora a mais. Mas estava enganada. Já que estava em casa, não era justo deixar tudo para a mãe. Havia o café da manhã, o almoço, que ajudava a preparar, as compras a fazer, o jantar e toda a louça a lavar. E assim se passou um ano inteiro sem encontrar as amigas antigas que costumavam se visitar, pegar um cineminha, comer pizza, tomar sorvete no shopping.
Dona Antônia era uma mulher boa, mas das antigas. Tinha tido uma criação muito rígida e passara isso a Leocádia, filha única. Quando o pai morreu, Leocádia tinha vinte e oito anos. Era independente economicamente, mas nunca pensou em sair de casa; esperava se casar e seguir o padrão tradicional de sua mãe.
Desde então já haviam se passado onze anos e o casamento não viera. No bairro, corria a voz de que os rapazes estavam envolvidos com droga, e ela e as amigas passavam bem longe deles. Formada em secretariado, começou a trabalhar na firma aos vinte e dois anos. Haviam se passado dezassete anos sem que ela percebesse. Nunca cogitou mudar de emprego. Entrou como assistente geral, tornou-se secretária e não almejou outro posto, preparando-se para ele ou fazendo politicagem e algo mais, como viu tantos fazerem. Leocádia vestia a camisa da empresa. Estava perfeitamente enquadrada, e nunca tinha tido problema com ninguém. Seu contato com os colegas era estritamente profissional; nenhuma colega tinha ido à sua casa nem ela tinha sido convidada para ir à casa de ninguém. De vez em quando, a jovem Míriam aparecia com um livro que vinha lendo no metrô. Muitos se interessavam e ela indicava a biblioteca pública da qual retirava os livros. Leocádia foi das poucas pessoas que acatou a dica, e os livros passaram a lhe fazer companhia. Apresentou os livros à mãe, e aos poucos Dona Antônia também se tornou leitora assídua. Elas viviam tranquilas; sem expectativas, ambições, desejos.
Quando o chefe de Leocádia anunciou que voltariam a trabalhar na sede da empresa, ela se reanimou. Foi só então que percebeu o quanto estava ansiosa para retomar seu trabalho de nove às seis, sua mesa, seu computador, sua agenda, suas responsabilidades. Percebeu que estava com saudades até do quilo sem-vergonha em que almoçava, o mais barato da região.
Nesse dia, Leocádia abriu um largo sorriso, que até a ela espantou. Correu a contar a notícia à mãe e às amigas e cuidou de se preparar para o grande dia. Toda animada, na véspera lavou os cabelos, fez uma escova e tirou as sobrancelhas. Preparou a roupa para o dia seguinte e foi se deitar mais cedo. Mas quem disse que conseguia dormir?
Pela primeira vez em dezassete anos, enxergou o chefe e os colegas de trabalho com outro olhar. A imagem deles lhe apareceu claramente, como numa tela de cinema, e ela enxergou a perfídia da moça bonita em relação a ela, o bullying que sofria dos rapazes, a implicância do chefe e a arrogância da diretora, que nunca a cumprimentou nesses anos todos.
EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA
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