LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
A fita clara no cabelo escuro brilhava como a lua no firmamento, dando ao seu rosto uma aparência mágica. Era bonita, sem dúvida. Sempre olhou o mundo com olhos coloridos, como se tivesse às mãos potes de tinta. Os vidrinhos que colocava no parapeito das janelas de seu quarto refletiam luzes multicores quando surgia o sol, tingindo tudo à sua volta, criando o belo onde existiam cinzas.
Das histórias que ouvia, não lhe encantava a força dos super-heróis. Não, os homens são prepotentes, autoritários, maliciosos. E as mulheres de sua geração, tão caladas! Sempre submissas, a refletirem a cor pálida da tristeza. Quando adolescente, ela sonhava em se rebelar. Fazer o que bem entendesse da vida, dar um grito, sumir dali. Mas criada com tanta repressão, sua voz era fraca, quase inaudível. Não tinha o costume de emitir opiniões. Na verdade, falava pouco, pouco demais, não tinha boca pra nada, diziam as más-línguas. Nem todos sabiam, mas sempre foi uma pessoa de opinião formada, e criativa também.
Naqueles tempos de sua juventude, as mulheres não tinham o costume de reclamar das ofensas, das violências, dos assédios e abusos que sofriam. Não, certos assuntos não eram para ser comentados, discutidos, denunciados. E, envergonhadas, calavam-se.
E foi calada que ela encontrou uma maneira de se defender do assédio dos homens nos coletivos. Pela manhã, antes de sair de casa para o trabalho, olhava para o céu investigando o tempo e se perguntava: guarda-chuva de cabo longo ou sapatos de salto alto? Não gostava muito de saltos, mas caso não fosse chover, os sapatos eram bons aliados.
A condução era muito ruim (na verdade, não melhorou com o passar dos anos). Formavam-se três, quatro filas no ponto inicial, inutilmente, pois quando o ônibus abria as portas, os homens se amontoavam na frente, empurravam as mulheres e entravam primeiro. Assim sendo, ela sempre ia em pé no coletivo. Estava criada a oportunidade para algum cafajeste se encostar, se esfregar, passar a mão.
– Não sei por que apelidaram essa investida de mão-boba, quem faz isso tem é mão muito intencionada, isso sim! – concluía ela. Em situações como essa, era hora de usar suas armas para se defender, o guarda-chuva em dia fechado, o salto alto em dia ensolarado.
Nessa época, o pai de seu namorado pegava o ônibus no mesmo horário que ela para ir ao trabalho. O homem era estranho, calado, usava um óculos de lentes grossas, nunca a cumprimentava.
– Deve enxergar pouco, vai ver não me reconhece – pensava ela.
Um belo dia, não é que foi ele, o sogro, quem ficou se esfregando atrás dela? Ah, ela não teve dúvida. Era um dia ensolarado, sem dizer uma só palavra, com uma das pernas, fincou o salto alto (desses bem fininhos) sobre o pé do homem, colocando ali todo o peso de seu corpo. O homem até gemeu de dor e, com muito esforço, conseguiu se libertar, saindo imediatamente de trás da moça.
Nesse dia, sua raiva foi tanta que lamentou não estar também com o guarda-chuva; se tivesse, faria um ataque duplo. Ah, ele ia ver só...
No final de semana, ela foi à casa do namorado. O sogro passou por ela mancando. O homem nunca falava com ela, mas ela fez questão de perguntar-lhe:
– Tá mancando, seu Zé? O que foi, machucou o pé?
EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA
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