domingo, 17 de outubro de 2021

A imigrante - MARIA CLEIDE BERNAL

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Maira nasceu em um lugarejo na caatinga do Nordeste, onde o verde da folhagem na estação invernosa se mistura com as chuvas que se derramam pela estrada e que se alastram em frente à casa dela. Três anos mais tarde começaria sua vida de imigrante, mudando-se para um lugar chamado Paracati, nas quebradas da Serra Grande. Ali viveria entre mangueirais e laranjeiras, desfrutando de banhos de cachoeira de corpo nu.
Seu pai era um camponês e a mãe uma mulher com fortes traços indígenas, mulher de muita fibra e de muito sofrimento, para criar os doze filhos do casal e digerir em silêncio a escassez, fazendo milagre com o pouco que extraía de uma terra árida e pedregosa. Até os sete anos ela tinha estudado, junto com seus irmãos, com um professor particular que lhe deu os primeiros passos na leitura. Um ano depois ela já estudava na sede do município, numa escola de religiosas que tinha um expediente dedicado aos filhos da burguesia da cidade e outro dedicado às crianças pobres que não podiam pagar a escola.
No período das férias Maira e seus irmãos voltavam para o pequeno sítio de onde saíram para rever os pais e conviver outra vez com o campo. Seu pai era uma figura autoritária e severa, mas de sentimentos e gestos nobres. Sabia que era difícil educar a todos os filhos, mas faria o possível e o impossível para que eles tivessem acesso à escola, por mais difícil que isto poderia ser. Uma vez ele me surpreendeu a menina a chorar, quando ela tinha ainda sete anos, porque queria estudar e ter uma profissão, sair daquelas quebradas de sol escaldante e sem perspectivas de futuro. Naquele momento seu pai tomou a firme decisão de alugar uma casinha na cidade e mandar suas duas filhas mais velhas tomarem conta da casa e das crianças para estudar na escola pública, mantida pela prefeitura do município e mais tarde na escola das freiras.
Na cidade a vida era muito diferente da que tinha levado nas quebradas do sertão. A pobreza era discriminada sem misericórdia na escola, no bairro, nas brincadeiras de roda, enfim por todos os lados. O colégio de freiras simbolizava a imagem do poder da burguesia local e a segregação daqueles que não podiam pagar o colégio, que para estudar teriam que ser bancados pela “bondade” das Irmãs de Caridade. O catecismo, a missa do domingo trajando o uniforme da escola, o medo do pecado e o sexo como coisa suja e pecaminosa, disseminado pelas freiras, eram cenas presentes no desabrochar da juventude naquela provinciana cidade. Assim, Maria cresceu entregue aos devaneios de vencer a pobreza, a discriminação e o preconceito. Um dia terminaria com tudo aquilo e iria morar na capital, conhecer gente educada e estudar em um colégio leigo.
Chegou à capital aos 12 anos, o pagamento do colégio provinha de uma bolsa de estudos arranjada por um político da cidade. A capital era um mundo totalmente novo, mas as dificuldades financeiras da família obrigavam a menina a trabalhar arduamente durante todo o tempo que não estivesse na escola. Trabalhou como operária de fábrica , professora primária e outras tantas oportunidades que lhe apareceram. Logo mais, veio a transferência para o Liceu, colégio público onde havia uma efervescência dos movimentos estudantis, aos quais se entregou.
Maira cresceu e tornou-se uma mulher bonita e sensual, era amada por muitos pela sua coragem e paixão por tudo que fazia e pela sua coerência, mas ao mesmo tempo antipatizada por aqueles que se sentiam ofendidos por este tipo de postura. Entrou na luta política desde os tempos da repressão aos movimentos populares e sindicais, durante os anos da ditadura militar.
A descoberta da sua sensualidade e da sua capacidade de sedução mudou o estilo de vida de Maira, que aos poucos foi deixando sua face severa para se transformar em alegre e cativante criatura. Foram muitos os seus amores e paixões, muitos até mesmo imaginários. A paixão pela vida e por tudo que se empenhava era a marca de sua personalidade.
Ser feliz era tudo que ela sempre desejou, numa trajetória de vida que cultivava a verdade, a ética e a solidariedade, buscando se afastar da hipocrisia e da percepção de um mundo falso e ilusório.
Ainda muito jovem Maira vivenciou o período da ditadura militar no Brasil e se engajou no movimento de resistência. Na época os movimentos por reformas de bases se fortaleciam com a chegada ao poder de um governo trabalhista. A oligarquia agrária e a burguesia industrial nascente temiam perder os seus privilégios fiscais e financeiros, que aliados aos militares promoveram um golpe de estado. Com a ditadura chegou também o cerceamento das liberdades individuais e coletivas, as perseguições políticas, as prisões, os exílios e todas as formas de opressão.
Os estudantes foram às ruas, a guerrilha floresceu na selva, surgiram os conflitos e as barricadas nas ruas das grandes cidades. Maira engajava-se na luta de resistência. Ela morava em um pequeno apartamento bem situado em um bairro de classe média, onde ninguém desconfiaria do que se fazia lá dentro. Foi aí que ela começou a acolher aqueles que fugiam das perseguições políticas e os mais ousados que atravessavam o país em busca de se engajarem na guerrilha do Araguaia, no norte do país.
Depois de 5 anos a ditadura já tinha eliminado muitas lideranças, colocaria os sindicatos sob intervenção militar e fecharia todas as possibilidades de resistência política. E veio a escuridão total com o endurecimento da ditadura, o ufanismo, o “milagre econômico” e o “ame-o ou deixe-o”. Maira, já profissional, se recolheu aos estudos, mas sem sossego, pois começaram as prisões de amigos e familiares, as perseguições da polícia política. Sofria ameaças em longos interrogatórios e estava quase sempre, seguida por pessoas suspeitas, até mesmo nos bares da cidade que eram frequentados pelos militantes de esquerda.
Um dia reconheceu que, sem alternativas para continuar a vida política, seria melhor um exílio voluntário. E ao conhecer Rodrigo, um dia preso em sua cidade como guerrilheiro colombiano, viveu um amor de companheirismo e cumplicidade. Casou-se de calça jeans e colar de búzios à maneira dos jovens da época, deleitada pelos ventos de liberdade que vinham de Liverpool. Casaram-se para ter as bênçãos da família e depois ela deixaria a cidade natal e as perseguições, fazendo uma pausa em sua militância apaixonada.
Uma longa viagem pela América do Sul afastava temporariamente a jovem das utopias e do desejo incansável de liberdade. Agora seria igual a tantas outras que encontram no casamento uma mudança de vida, muitas vezes sonhada. Entretanto, o casamento para ela seria a conjugação dos seus esforços por liberdades democráticas e ao mesmo tempo uma vida a dois em que as individualidades não seriam aniquiladas, como vinha ocorrendo com as pessoas de sua época.
Ao passar pelo Chile, o casal teve que seguir viagem sem demora, pois o toque de recolher cedo da noite, anunciava uma quartelada semelhante ou pior do que aquela que aconteceu no Brasil. Chegando à Colômbia, seu porto seguro, o primeiro desejo foi conhecer as Forças Revolucionárias colombianas que já dominavam quase um terço do território. Foi naquele momento que percebeu que seu sonho ficava distante. Seu companheiro, chegando ao país de origem, esboçava suas primeiras manifestações de desaprovação dos movimentos de libertação e de tantos outros de contestação aos governos déspotas aliados da Aliança para o Progresso e do governo norte-americano que tinha articulado junto com os políticos conservadores o golpe militar n o Brasil.
Pobre moça sonhadora, Maira nem sequer desconfiava que seus sonhos de liberdade estariam abalados diante da descoberta de uma “nova” concepção política do companheiro, muito mais conservadora do que aquela que ele expressava quando vivia no Brasil, mostrando uma repentina personalidade machista que ele assumia então, ao chegar em seu território de origem.
Os ventos de liberdade e de uma nova moral sexual que chegavam da Europa, depois da revolução de maio de 1968 na França, haviam gerado em Maira o desejo de ser feliz e conhecer pessoas libertárias para compartilhar um novo estilo de vida, uma nova moral nos costumes que revolucionavam a época. Mas no país distante os costumes eram ainda mais conservadores do que aqueles que ela tinha deixado em seu país. Como suportar mais uma desilusão? A trajetória libertadora de Maira apenas havia começado, longe do seu país e de sua gente.

 EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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