LIVRO GENTILMENTE OFERECIDO POR IN-FINITA
Curitiba, anos 1980, Alameda Cabral. Você esbarrou em mim no restaurante macrobiótico, onde nossa turma costumava almoçar depois do colégio. Ao pé do meu ouvido, você disse que esqueci uma blusa de lã no seu apartamento. Eu era namorada do seu melhor amigo. E você, o melhor amigo do meu namorado. Ao lado do Teatro Guaira, o apartamento de seus pais era um dos pontos de encontro da nossa galera, em tardes vadias regadas a muito rock-in-roll.
Quando você me avisou da blusa, senti o cochichar de sua voz forte descer suave pelo meu ouvido. Percebi seu corpo quente precipitar-se junto ao meu. Uma estranha linguagem dos sentidos ali nos traia. Sempre que o via, algo me intrigava no jeito que você sentava no chão com as pernas entrecruzadas, a massagear os dedos dos pés. Algo me tocava fundo diante de seus brilhantes olhos e cabelos de escuridão. Nestes detalhes, parecia que um longo túnel de profundezas se abria entre nós. Grandes cílios ressaltaram sua beleza e eu começava a desejar que piscassem só para mim. Seus ombros fortes pareciam incansáveis a pedir um abraço meu. Seus braços e pernas torneados faziam minha imaginação deslizar no tobogã de suas curvas. Tudo em você era convite ao sensorial. Tornara-se cada vez mais incômodo convivermos, eu em par com outro, quem acredita amar, mas perturbava-me por desejar você. Já vinha de um tempinho a incomum taquicardia na sua presença. Mas eu não sabia se a via era única ou de mão dupla, até você me falar da blusa.
Contei as horas até ir buscá-la no seu apartamento. Dessa vez, estávamos só nós dois. No 15º andar do edifício, debruçados na janela do seu quarto, olhamos do alto a vida passar e esfuziantes estivemos ali juntos por horas! Sobre o que falamos? Não sei. Acho que o que foi dito pouco importou em meio a tantos gestos, sorrisinhos e olhares mútuos de cumplicidade e sedução. Depois desse encontro olho no olho, não pude mais nos negar. Chegara a hora de achar uma saída para o impasse, e, viesse o que viesse me permiti escolher você.
Sempre em grupo, ainda nos vimos umas tantas vezes, mas a água da chaleira seguia num crescente a ferver. Até o dia do casamento de seu irmão. A turma toda estava lá, e nós não conseguimos disfarçar que nos comíamos com os olhos. Eu de vestido rosa e ombros à mostra, emprestado da vizinha, dona de uma boutique chique. No cabelo, longo e ondulado, uma flor de mesma cor, tom sobre tom. Eu Rosa, você Cravo, como na canção de minha infância.
No fim da festa, você se ofereceu para me levar em casa. Fomos a pé, e a nossa própria festa começou no caminho. A chuva veio e molhou nossos corpos, tingindo-os de rosa paixão. Debaixo de uma marquise, nosso secreto e proibido amor foi finalmente assumido. O beijo e apertos que nos demos, pareceu engolir-nos por inteiro. Naquele raro momento de êxtase, acreditamos ter os nomes escritos lado a lado nas estrelas e, ingênuos nos entregamos às águas revoltas da lua.
O rock-in-roll que passamos a ouvir juntos no dia seguinte e por muitos e muitos outros dias, noites e madrugadas adentro, não mais tocou. O Rolling Stones ainda tem a sua cara, e as pedras rolantes que você me deixou nunca pararam de rolar.
Hoje é seu aniversário e acordei pensando em você. Há muito nos perdemos um do outro, quiçá noutra vida, noutro tempo, noutra imaginação. Muito antes de você embarcar numa viagem underground e deixar esse mundo.
A blusa que eu esqueci no seu apartamento muito nos aqueceu, mas findou por nos detonar. Seu tecido veio pouco a pouco a se esgarçar, até quando, já em retalhos, lancei-a ao mar.
Por vezes, sinto saudades de nossa juventude e de nós. Ainda amo aquele amor que senti por você, e parece que estou sempre a procurar por ele em outras plagas. Ao fim e ao cabo, percebo que o Cupido mora em mim e sua flecha sou eu.
Bendita maldita blusa!
EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA
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