domingo, 19 de setembro de 2021

Uns com os outros - MARIA LAURINDA R. SOUSA (LAU)

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Meu corpo responde aos nomes pelos quais me chamam. Tenho memórias que são arquivos. Um olho voltado para trás – para o infinito de uma origem nunca alcançável. Outro, voltado para o presente-futuro. Esperançoso? Não sei. Dependo do que vier a construir. Com todos; uns com os outros.
Sou todos os nomes inscritos em mim; impressões que se misturam e compõem múltiplos mosaicos. Comecei Penélope. Diz a história, escrita por Homero, que fiquei em casa tecendo e destecendo num ardil para afastar os que queriam se casar comigo e tomar o lugar de Ulisses. Lugar de espera e afastamento do desejo. Nunca me deixaram registrar as lutas que enfrentei para salvar minha terra das invasões, enquanto ele, Ulisses, o herói, se afastava para seu mundo de aventuras. Pudesse eu ter escrito a Odisseia e o relato seria outro.
Foi com minha liberdade de águia - lá do alto do céu - que vi todas as árvores da floresta, diversidade de insetos, bichos e aves. Acompanhei os índios que deslizavam em canoas pelo rio Amazonas. Caçavam e pescavam nas margens de seus afluentes. Reverenciavam a mata que lhes garantia a vida. Foram meus olhos atentos que viram pequenos curumins pintados com as cores vermelhas daquelas árvores. Trepando nos cipós feito macacos. Brincando de imitar o som dos pássaros.
São meus olhos que veem, nestes últimos anos, as matas queimadas, o fogo comendo, como urubu fosse, as carcaças abandonadas do que antes eram corpos em vida e movimento.
Sobrevivi, por um tempo, à devastação provocada pelo monstro extrativista, mas as cenas de horror - dos corpos soterrados, das casas destruídas, do ar e água contaminados -, tomaram conta de minh'alma. Meu olhar vaga desolado pela paisagem. Feito pássaro velho, que não suporta a mudança de gaiola, morro de tristeza.
Sou todos os que migram. Aves voadoras que abandonam lugares inóspitos em busca de terras onde seja possível criar seus ninhos. Acompanho meu povo na travessia por outras águas e ocupo as ruas das terras invasoras para denunciar os ataques à minha gente e à floresta, e defender o direito legítimo de nosso território.
Sou essas mães pretas que choram, todos os dias, sobre o corpo de mais um de seus filhos e respondo de punho levantado, lutando por justiça. Por minha voz ecoa no mundo o abuso de tantas armas e falas assassinas.
Sou, enfim, todas as mulheres que cantam as artimanhas de suas lutas para vencer as guerras cotidianas e escrevem, hoje, novas narrativas de suas Odisséias.

 EM - MULHERIO DAS LETRAS PORTUGAL (PROSA E CONTOS) - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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