sábado, 18 de setembro de 2021

Revisitando o espelho do meu quarto - DAIANA PASQUIM

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Claraboia de histórias. Quintal de arvoredo para abraçar troncos. Treze anos. Era a idade que eu tinha quando me mudei para aquela casa de alvenaria branca com janelas de alumínio Sasazaki. Daquela moldura apreciava o verde, o canto dos pássaros, convidando o universo ao meu quarto de adolescente. Tintas, papel, a máquina de escrever Olivetti de segunda mão, as cópias de minhas lições de datilografia, meus cartazes de Jornada Jovem... ah, isso era sensacional. Cada gaveta que eu abria, dava com um papelzinho que meus amigos haviam escondido para ocasiões inesperadas. Tinha aquele cheirinho inigualável da amizade, quando parece que a vida se mostra na antítese tão eterna, e tão efêmera. Tinha o cartaz: “não corra atrás das borboletas, plante flores que elas virão até você”, que eu reforçava a caligrafia anualmente, quando o frio, o calor, o sol, o tempo, iam apagando as letras.
Ah, espelho, espelho meu... que visão de mim você dá hoje? Cúmplice que mirava as coreografias inventadas deslizando meias pelo chão sintecado. Na parede sul, da mesa de madeira maciça construída pelo meu bisavô paterno, criava as mais incríveis cenas. Magenta, amarelo ocre, verde musgo, vinho, verde oliva, azul-celeste, roxo, vermelho escarlate – escolhia as cores para a arte da tarde. Era camiseta, cartaz, um simples papel, muitos panos de prato, algumas fraldas. Ursinho, frutas, flores. Meu quarto tinha cheiro de tudo, tudo que me revelava: da tinta, do suor da dança, do cheirinho gostoso da limpeza recém-feita e da madeira hidratada com a cera. Eu já falei que o meu espelho ficava no centro do guarda-roupa? Isso foi no começo, porque logo que eu comecei a trabalhar como recepcionista do hospital, a primeira coisa que fiz foi substituir o velho roupeiro prensado por um bem bonito. Era 1998, custou R$ 279 e tinha dois espelhos, um em cada porta central, do lado de fora. Eu me contemplava por inteiro. Era a minha caixa de pandora. Calça bailarina, camisetas, blusinhas curtas, abdominais, espelho, pinceladas, espelho. Puro vício inocente. Um dia, a professora da oitava série deu para lermos “Círculo Vicioso” e a cada três coisas que o personagem fazia, uma era “cigarro e fósforo”. Daí, saquei que minha fraqueza era espelho. Todas as noites ele me guiava os bobs, para acordar com o cabelo bonito na manhã de escola. Anos mais tarde, estudando Psicologia da Comunicação, descobri que se dá a isso o nome de Narcisismo. Larguei um pouco os arquétipos, para não perder o foco da vida.
Minha penteadeira era interna e rescendia perfume de moça, hidratante para o corpo e sabonetes. Ah, eu me sentia tão bem abrindo aquelas portas... o dono da parede oeste. Bijuterias de adolescência, só tinham valor sentimental. Muitas compradas em praias, que na metade do ano já estavam bem feias. Passava o ano esperando as férias para usar meus biquínis.
Minha cama era de casal e no criado mudo, o minisystem. Aprendi a fazer mágica e me beneficiar das palavras logo cedo. Aos 13 anos, ganhei um concurso de redação e transformei o prêmio em música. Tinha poucos CDs – que começavam a surgir no mundo. E uma infinidade de fitas k7. Uma delas estava sempre “no ponto” para gravar a transmissão da rádio FM. Largava a cera, o balde, a vassoura, a massa de pão, o que fosse, para correr e apertar “Rec”. Aos quinze, já tinha uma playlist interessante.
Entre as paredes branco-gelo, tinha a chuva de pensamentos que me assolava. Descrição galáctica de tarefa fatigante (por que precisamos de tantos trecos para sobreviver a este ciclo?). A âncora desta travessia foi a velha Olivetti, das lições de datilografia ao meu primeiro romance escrito, que se perdeu. Como adorava “batucar” as duras teclas e tecer, tessituras tantas, um macrocosmo de percepção juvenil. Vizinhava com a estante de aço, singelamente pintada de azul bebê, com todos os meus livros, cadernos, revistas femininas, penduricalhos e tranqueiras dessa fase tão bagunçada da vida. Embaixo, ficavam os calçados. Depois, vinham as revistas, embrião da minha trajetória jornalística.
Mas sabe qual era a parte mais importante do meu quarto? É uma que permanece comigo até hoje: a essência da minha alma. Hoje vislumbro tudo o que parecia nebuloso da moldura do bosque.
Virginiana às avessas, mantenedora de diversificados badulaques. É caixa dentro de caixa, para guardar outra caixa. Todas elas, artimanhas de narrativas: coloridas, bonitas, diversos compartimentos, enfeitadas, com adesivos. Meticulosamente, tudo separado, às vezes misturado. Caixas pra arrumação, caixas pra bagunça, caixa pra cintos e meias, para as cartas, bilhetes e marcas do namoro. Meu namoro com a vida, com a paixão de estar viva, com minhas relíquias íntimas, esse namoro em si mesma, apoiada na representação do real para não perder o norte. É este espelho, espelho meu, que me trouxe as fantasias que enlaçam meu além-mulher.

EM - UNIVERSO FEMININO - COLECTÂNEA - IN-FINITA

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